*É um Lusófono com L grande? Então adira ao MIL: vamos criar a Comunidade Lusófona!*

MIL: Movimento Internacional Lusófono | Nova Águia


Apoiado por muitas das mais relevantes personalidades da nossa sociedade civil, o MIL é um movimento cultural e cívico registado notarialmente no dia quinze de Outubro de 2010, que conta já com mais de uma centena de milhares de adesões de todos os países e regiões do espaço lusófono. Entre os nossos órgãos, eleitos em Assembleia Geral, inclui-se um Conselho Consultivo, constituído por mais de meia centena de pessoas, representando todo o espaço da lusofonia. Defendemos o reforço dos laços entre os países e regiões do espaço lusófono – a todos os níveis: cultural, social, económico e político –, assim procurando cumprir o sonho de Agostinho da Silva: a criação de uma verdadeira comunidade lusófona, numa base de liberdade e fraternidade.
SEDE: Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa)
NIB: 0036 0283 99100034521 85; NIF: 509 580 432
Caso pretenda aderir ao MIL, envie-nos um e-mail: adesao@movimentolusofono.org (indicar nome e área de residência). Para outros assuntos: info@movimentolusofono.org. Contacto por telefone: 967044286.

NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI

Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra).

Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa).

Desde 2008"a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".

Colecção Nova Águia: https://www.zefiro.pt/category/zefiro-nova-aguia

Outras obras promovidas pelo MIL: https://millivros.webnode.com/

"Trata-se, actualmente, de poder começar a fabricar uma comunidade dos países de língua portuguesa"

"Trata-se, actualmente, de poder começar a fabricar uma comunidade dos países de língua portuguesa"

Nenhuma direita se salvará se não for de esquerda no social e no económico; o mesmo para a esquerda, se não for de direita no histórico e no metafísico (in Caderno Três, inédito)

A direita me considera como da esquerda; esta como sendo eu inclinado à direita; o centro me tem por inexistente. Devo estar certo (in Cortina 1, inédito)

Agostinho da Silva
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terça-feira, 9 de novembro de 2010

UM BILHETE DE AGOSTINHO DA SILVA



Este é um dos "Bilhetes" que George Agostinho da Silva fez publicar no jornal "África" entre Julho e Setembro de 1990. Escolhi-o por falar do tempo em que o filósofo viveu em Barca d`Alva.
A Barca é a última estação do caminho de ferro da Linha do Douro. Estudei em Coimbra, na década de 60, e passava a Páscoa e as férias grandes em casa da minha avó, em Almendra, a estação penúltima.
Viajava sempre de comboio. Barca d`Alva ficava para além e ganhava o encanto do desconhecido. Lembro-me de pensar, e de dizer, que tinha o nome mais bonito das terras de Portugal. Visitei-a, pela primeira vez, muitos anos depois.



Tive a grande sorte de nascer no Porto e posso então dizer que sou, por naturalidade e por natureza, perfeitamente republicano quando se trata de delegar em outros, mais competentes do que eu por isto ou por aquilo, os poderes que eu próprio tenho. Mas na vida tenho encontrado muita gente superior a mim e a ela podia confiar o encargo de me dirigir no proceder, poupando-me muitas das tolices que tenho cometido; bastaria citar professores como Teixeira Rêgo, Leonardo ou Pires Lima ou mestres como Sérgio e, no Brasil, Lauro Travassos, mas logo de princípio tive como perfeita guia minha avó materna, viúva de pescador de Olhão; e aí, como se não tratou de delegar poderes mas de os reconhecer como bem mais acima do que eu e de os seguir, fui, e ainda lhes sou, monárquico; no que sou o que foram os portugueses dos melhores tempos, monárquicos quanto ao superior, republicanos quanto ao igual, tomando ainda a precaução de apreciar o candidato a rei antes de o reconhecer como tal e de o pôr de parte sem cerimónias quando ele se revelava incompetente para a missão. Seja tudo como for, não fui crescendo no Porto, mas me levaram os destinos, ou a liberdade de criar, que é o fundamental do mundo, para a Barca de Alva, dura aldeia naqueles princípios de século e nela aprendi a conhecer o Povo de Portugal, e alguma coisa do de Espanha, e me lembro muito bem do que ia acima de tudo que hoje se apelida de cultura a daqueles analfabetos, cultura humana que é a que importa, firme nos ideais e objectiva na vida, bem para lá daquele saber que com cultura se confunde e que pode estar mais completo nos livros e nas fitas gravadas - e que é em grande parte a cultura de tantos europeus, ou melhor, «ceéeus», tão privado de humanidade que já nem sabem ter filhos. Pois do que também me lembro muito bem, daqueles três primeiros anos da Barca, é da morte de minha primeira irmã, logo a seguir a mim, aquela Estrela Estefânia que nunca andou, que nunca vi alegre, afinal nunca me apareceu senão que em braços embalada para morrer. Aldeia de matar, a Barca. Pois hoje a mesma terra, ligada a Trás-os-Montes por ponte acho que do Edgard, mas nem o comboio, que levava viajantes para Salamanca ou Lourdes, tem desde há pouco um Douro navegável do Porto até à fronteira, o que dá a Castela, ou a Leão-Castela, como quiserem, um porto de mar uns 200 quilómetros mais perto do que seria, por exemplo, o Santander no Cantábrico. E vede só: o que me acontece é que, estranhamente mas profundamente, ligo a chegada do transporte fluvial ao cais da Barca àquele não poder de vida que foi a Estrelinha como se, morta para nós, tivesse vivido mais que inteira para outra vida, a de conseguir que mais crianças do interior não fossem as vítimas que ela foi; passou a Barca de aldeia que mata a terra que dá vida e anima, como deviam ser, e o são, todas as aldeias de Portugal; ou todas as aldeias do mundo, se plenamente nos cumprirmos nós nas nossas.

Comentários, não estou à altura de os fazer. Tiro o chapéu a mestre Agostinho e agradeço ao meu amigo Leston Bandeira, que dirigiu galhardamente o jornal "África" durante cerca de 10 anos, a preservação dos textos que tencionamos publicar brevemente em forma de livro.

Fotografias:
Agostinho da Silva: internet.
Rio Douro, junto a Barca d`Alva: autor.

sábado, 16 de outubro de 2010

A Leva da Morte

Na tarde de 16 de Outubro de 1918, Francisco Correia de Herédia, primeiro e único visconde da Ribeira Grande, foi assassinado.
Chegara a ser uma figura importante do Partido Progressista de José Luciano de Castro. Abandonara-o, com José Maria de Alpoim, quando da Dissidência Progressista. Fidalgo cavaleiro da Casa Real, ostentou várias comendas e foi governador dos distritos de Beja, Bragança e Lisboa.
Numa reunião efectuada em sua casa, na Avenida da Liberdade, em 11 de Julho de 1907, foi decidido passar à acção directa contra a ditadura de João Franco. Estavam presentes, para além de Herédia, José Maria de Alpoim, Afonso Costa e Alexandre Braga.
Eram precisas armas. Pagou-as o visconde. Levantou-as, na loja de um carbonário, no começo de Janeiro de 1908. Eram nove carabinas Winchester calibre 351 e um lote de pistolas FN-Browning. Foram escondidas nos Armazéns Leal, na Rua de Santo Antão. Alguma informação terá chegado aos ouvidos do comandante da Polícia, pois mandou revistar a loja. Afonso Costa foi avisado. Enroladas em tapetes, as armas foram levadas no automóvel de Ribeira Brava para a casa de Luís Grandela, irmão do proprietário dos Armazéns Grandela.
A 28 de Janeiro de 1908, os líderes revolucionários aguardaram no Elevador da Biblioteca, a S. Julião, a notícia da morte de João Franco e do triunfo da rebelião. As horas passaram, sem que chegassem boas novas. João Franco não estava em casa e escapou. As entradas e saídas no Elevador deram nas vistas da Polícia. Foram presos mais de 100 conspiradores. Contavam-se entre eles Afonso Costa, Ribeira Brava e Egas Moniz. Alpoim conseguiu fugir, de automóvel, para Espanha.
Quatro dias depois, a 1 de Fevereiro de 1908, Manuel Buíça atirou contra o rei e contra o príncipe D. Luís Filipe com uma carabina Winchester, enquanto Alfredo Costa, com o pé no estribo da carruagem real, fazia fogo com uma pistola Browning. As armas faziam parte do lote que Ribeira Brava pagara e levantara na loja do carbonário Gonçalo Heitor Ferreira.

Em 1910, o visconde ia nos 58 anos. Juntou-se ao Partido Republicano Português e manteve-se sempre chegado a Afonso Costa. Abandonou o título, mas juntou Ribeira Brava aos seus apelidos. Foi eleito Deputado da Nação, como já tinha sido durante a Monarquia. Teve grande influência política na Madeira, de que foi governador.
Em Outubro de 1918, a agitação social contra o governo de Sidónio Pais recrudesceu. Houve tumultos espontâneos e acções organizadas pela oposição democrática.
Na manhã do dia 12, um regimento de Coimbra levantou-se contra o governo. O alferes Sidónio Pais, filho do Presidente, foi perseguido pelas ruas da cidade.
Em Lisboa e no Porto não chegou a acontecer nada. As coisas terão corrido mal aos revoltosos, pois é difícil acreditar que os de Coimbra tentassem deitar abaixo Sidónio sem contarem com apoios importantes no resto do País. Terá sido essa a interpretação do Presidente. Face à ameaça de insurreição generalizada, decretou o estado de sítio. As cadeias encheram-se de democráticos. Ribeira Brava também foi preso.
Quatro dias depois, já não cabiam mais prisioneiros nos calabouços do Governo Civil de Lisboa. As autoridades decidiram transferir uns tantos para os fortes do Campo Entrincheirado (São Julião da Barra, Alto do Duque e Caxias).
Ao fim da tarde do dia 16, cento e cinquenta presos foram reunidos no pátio do Governo Civil. Saíram dali, enquadrados por mais de duzentos e cinquenta guardas armados. Deveriam dirigir-se ao Cais do Sodré, onde os aguardavam um comboio especial.
A coluna atravessou o Largo da Biblioteca e chegou à Rua Vítor Córdon, Ouviu-se um tiro e a confusão estabeleceu-se. Os guardas disparavam para onde estavam virados. Quando o tiroteio cessou, havia no chão sete mortos, entre os quais se contava um guarda. O corpo de Ribeira Brava foi encontrado numa valeta, degolado por um golpe de baioneta. O antigo visconde tinha 66 anos.
No dia seguinte, um comunicado do governo "esclarecia" o incidente. Francisco Herédia recebera, na prisão, uma pistola escondida num tacho de açorda. Procurara fugir, atirando contra os guardas da escolta.
A pistola nunca foi encontrada. Há quem diga que alguém disparou contra a Polícia de uma janela de um bordel da Calçada do Ferragial. A voz do povo fez o seu julgamento: a matança terá sido organizada pela polícia sidonista.

Fonte: República - A Luz e a Sombra, de A. Trabulo.
Fotos: net.
Também publicado em decaedela.

sábado, 9 de outubro de 2010

Escrever Português

Reflectir sobre a vivência da nossa língua e de quem a fala chega a magoar gente como eu, que aprendeu a escrever em África e conheceu Camões na idade em que se deitou com as primeiras raparigas negras.

Não sou tonto que baste para julgar a História. Poucos, em Angola, terão sido tão argutos que antevissem o seu rumo, a distância eficaz. Cinjo-me à memória e faço o que está ao meu alcance: conto.
As recordações apagam-se com a vida. Urge escrever, pois, quando a geração a que pertenço se extinguir, ficarão poucos testemunhos de um passado que fez parte da existência de centenas de milhar de portugueses.
Aqui fica um tributo ao Lubango (Sá da Bandeira), a cidade onde me conheci. Por muito que lhe queiram bem os moradores actuais, dificilmente a estimarão mais do que eu. Falta-lhes o tempero da perda que amplifica o amor.
Com este romance, encerro a trilogia que iniciei com "Os Colonos", antes de saltar para "Retornados". Na primeira obra, descrevi a fundação e desenvolvimento da cidade. Na segunda, contei como foi abandonada, como outras terras de Angola, pelas famílias brancas assustadas. Agora, falo de "estar". Ocupo-me da minha família e da minha infância. Relato um modo português pouco conhecido de colonizar e de se enraizar no mundo.
Ao mesmo tempo, solto a alma e crio histórias. As personagens que invento libertam-se das ruas do Lubango para se integrarem no mapa do romance. Poucas têm alguma relação com vidas reais.

Também publicado em decaedela.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Fernando Pessoa e Afonso Costa

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Fernando Pessoa não morria de amores por Afonso Costa. Pela mão de Álvaro de Campos, enviou ao jornal "A Capital", a 6 de Julho de 1915, uma carta em que negava a conotação de futurismo, aplicada ao drama que o grupo da Orpheu tencionava apresentar. Rematava do seguinte modo:

Passo em branco sobre a atribuição de futurismo que nos pretendem lançar. De resto seria de mau gosto repudiar ligações com o futurismo numa hora tão deliciosamente mecânica em que a própria Providência Divina se serve dos carros eléctricos para os seus altos ensinamentos.

O jornal publicou apenas a última frase.


Dois dias antes, Afonso Costa, acompanhado por alguns amigos, resolvera dar um passeio até Algés, para gozar a brisa fresca do mar. Quando o veículo chegou à Avenida 24 de Julho, viu-se um clarão e ouviu-se o que parecia ser um disparo. Costa julgou que o tentavam matar e atirou-se pela janela do eléctrico em movimento. Fracturou o crânio e ia morrendo. Correu em Lisboa uma adivinha malévola:

Qual é a coisa, qual é ela, que entra pela porta e sai pela janela?

Dias depois, Álvaro de Campos voltou a atacar Afonso Costa, noutra carta endereçada ao mesmo jornal. A redacção achou melhor guardá-la na gaveta. Rezava assim:

O chefe do Partido Democrático não merece a consideração devida a qualquer membro da humanidade. Ele colocou-se fora das condições em que se pode ter piedade ou compaixão pelos homens. A sua acção através da sociedade portuguesa tem sido a dum ciclone, devastando, estragando, perturbando tudo, com a diferença, a favor do ciclone, que o ciclone, ao contrário de Costa, não emporcalha e enlameia. Para o responsável máximo do estado de anarquia, de desolação e de tristeza em que jazem as almas portuguesas, para o sinistro chefe de regimentos de assassinos e de ladrões, não pode haver a compaixão que os combatentes leais merecem, que aos homens vulgares é devida. Costa nem sequer tem o relevo intelectual que doure a sua torpeza. A sua figura é a dum sapo que misteriosamente se tornasse fera...
... Por isso eu quero frisar - e sei que ao frisá-lo estão comigo os votos de grande número de portugueses, dos católicos oprimidos, das classes médias atacadas, dos cidadãos pacíficos assaltados nas ruas, de todos aqueles que o general Pimenta de Castro representava - que só não me regozija, no desastre acontecido a Costa, a circunstância, que infelizmente se parece confirmar, do seu restabelecimento.

Referências:
Obra essencial de Fernando Pessoa, Prosa publicada em vida, Edição de Richard Zenith, Assírio e Alvim, Lisboa, 2006.
República - A luz e a sombra, A. Trabulo. A publicar em breve.
Foto e caricatura: Net.

domingo, 12 de setembro de 2010

A Alimentação a Bordo dos Navios Bacalhoeiros




Comia-se bem, a bordo do navio-hospital Gil Eannes, no final da década de 60. As refeições dos oficiais consistiam em sopa, prato de peixe, prato de carne e sobremesa. O resto da tripulação não passava nada mal e os doentes cumpriam as dietas indicadas. Os navios de pesca tinham a vantagem de poderem dispor do peixe do dia.
Nas viagens de longo curso, antes de haver frigoríficos, a alimentação era sujeita a grandes restrições. Levava-se o que não se estragava: biscoitos, salgados e conservas. Ainda hoje, na Ilha Terceira, na costa oposta a Angra do Heroísmo, existe a povoação de Biscoito, que terá ganho o nome da provisão que ali iriam fazer os navios do largo.
Durante as travessias, raramente se podia pescar. A comida era um enjoo. Os navios costumavam levar galinhas e uma vaca, ou algumas cabras. Os animais ocupavam espaço e a alimentação deles também. Para mais, faziam muita porcaria. Os maiores eram abatidos cedo. Quando se matavam, era uma festa, mas a carne tinha de se consumir depressa para não se estragar.
Ao passar ao largo dos Açores, rumo à Terra Nova, lá se apanhava alguma tartaruga que permitia cozinhar belas canjas. Uma vez por outra, arpoava-se um golfinho que se divertia a acompanhar a embarcação. Dizia-se que dava bons bifes de cebolada.
Vale a pena passar os olhos numa lista de produtos alimentares embarcados para uma viagem de cerca de seis meses num lugre de 30 pescadores, durante a década de 1920-30:

40 barricas de farinha de trigo

18 barricas de carne de vaca salgada
50 kg de carne de porco
1350 kg de batatas
1100 kg de feijão seco encarnado e branco
150 kg de feijão frade
150 kg de grão-de-bico
100 kg de arroz
100 kg de açúcar
10 kg de especiarias
90 kg de banha
200 kg de toucinho
60 kg de café moído
5 kg de chá
360 kg de cebolas
Duas latas de chouriço
400 l de azeite
200 l de vinagre
40 l de óleo para frituras
400 l de vinho
400 l de aguardente
8 fardos de bacalhau seco
120 garrafas de cerveja
12 garrafas de vinho do Porto

O chouriço parece pouco... É curioso reparar em que o número de litros de aguardente era igual ao de vinho tinto.
Viviam-se tempos duros. Inventavam-se pratos a fingir carne, como o arroz de corações de bacalhau, mas as opções eram reduzidas. As cagarras, uma variedade de gaivota, davam uma bela caldeirada, depois de passarem 3 dias em vinha-de-alhos, para perderem o gosto a peixe.
As gaivotas espreitavam a escala, em grandes bandos. A sua pesca era cruel: iscava-se o anzol com um pedaço de fígado de bacalhau e atirava-se ao vento. Não se podia escolher quem vinha ao isco e, às vezes, sacrificavam-se inutilmente gavinas e albatrozes.
A adaptação de motores aos navios de madeira iniciou-se no começo da década de 30. Muitos lugres tinham propulsão mista, à vela e a motor. Alguns passaram a dispor de frigoríficos para o isco e para as provisões dos tripulantes.
Ainda hoje, o cozinheiro é o homem mais importante a bordo, a seguir ao capitão. Acima desse, só Deus, e mora longe... Os pescadores eram sujeitados a uma vida de extrema dureza. A satisfação do estômago foi das poucas a que passaram a ter acesso nos longos dias do mar, com o advento da refrigeração.

Fonte: Francisco Correia Marques, em: Oceano, nº 45, Janeiro/Março 2001.
Fotografia do autor.
Também publicado em decaedela.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

27 de Maio de 1977



Em memória de dois amigos


Na madrugada de 27 de Maio de 1977, um grupo armado assaltou a cadeia de S. Paulo, em Luanda. Depois, tomou conta da Rádio Nacional de Angola. Na vizinhança, tinham-se concentrado algumas centenas de manifestantes. As tropas fiéis a Agostinho Neto e os militares cubanos dispararam sobre os populares e retomaram o edifício. Por volta das 14 horas, ocuparam também o quartel da 9ª Brigada, onde teria estado preso Saidy Mingas.

O exército cubano, que tinha dado um contributo decisivo para o desfecho da guerra civil e constituía a força militar mais poderosa em Angola, apoiou o presidente Neto e garantiu-lhe uma vitória rápida. Foi decretado o recolher obrigatório.

No dia seguinte, foram encontrados na zona da Boavista, dentro de um jipe e de uma ambulância, os corpos de oito pessoas, entre as quais se encontravam três membros do Comité Central do M.P.L.A.: Saidy Mingas, ministro das Finanças, Veríssimo da Costa (Nzaji), chefe da Segurança das F.A.P.L.A., e Paulo Mungungu (Dangereux).

Do grupo, faziam ainda parte os cadáveres de Eurico Gonçalves, comandante do M.P.L.A., que se encontrava doente com filaríase, e Garcia Neto, antigo estudante de Direito da Universidade de Coimbra, que vira o Curso interrompido por agentes da P.I.D.E. e passara vários anos nos calabouços, até ser libertado no dia 26 de Abril de 1974. Alheios à contenda entre Nito e Neto, foram sacrificados por acaso. Eram amigos um do outro e do Comandante da Polícia de Luanda, João Saraiva de Carvalho. Tinham vivido juntos em Coimbra, na República do Kimbo dos Sobas. Ao saberem que se estavam a passar movimentações anormais, dirigiram-se a casa do João, para se informarem. O Chefe da Polícia ausentara-se. Foram apanhados pelos revoltosos, que vinham procurá-lo, e passados pelas armas.

Numa praia de Luanda, apareceram ainda vários cadáveres carbonizados. Houve quem afirmasse que os homens tinham sido queimados vivos.

A vingança não se fez esperar. O ódio soltou-se nas ruas da capital e propagou-se a Angola inteira. Os nitistas foram trucidados.

O número total de mortos é desconhecido. Bastantes meses depois, a Amnistia Internacional calculava que tivessem sido executadas, sem julgamento, entre vinte e quarenta mil pessoas, mas ninguém sabe como essas contas foram feitas. Ao que parece, ocorreram fuzilamentos em todas as Províncias. Terão sido muitas vezes precedidos de tortura. Em Luanda, prosseguiram durante meses a fio.

Consta que foram abatidos muitos jovens. Diz-se que alguns nem sabiam quem era Nito Alves. Sem fontes credíveis que permitam uma boa aproximação à verdade histórica, vive-se muito do que se ouve. Terão desaparecido turmas inteiras de alunos das Faculdades de Angola. No Lubango, alguns dirigentes da J.M.P.L.A. poderão ter sido amarrados de pés e mãos e empurrados para o abismo da Tundavala.

O fim de alguns conspiradores mais conhecidos transpirou, ainda que os relatos disponíveis devam ser encarados com reserva.



A ordem para o fuzilamento de Nito Alves terá partido do Presidente da República Popular de Angola. Escreveu-se que João Jacob Caetano, o Monstro Imortal das lendas da guerra da independência, morreu garrotado. Sita Valles entrou de mão dada com o marido, José Van Dunem, nas instalações do Ministério da Defesa. O casal terá sido enviado para o Forte de S. Miguel. Nenhum dos dois saiu de lá com vida.

A história do 27 de Maio está por fazer. Quem sabe o que se passou, ou esteve ligado ao processo contra-revolucionário, ou dá-se com quem esteve, e cala-se. Há quem afirme que a dissidência de Nito Alves poderia ter tido solução política. Certo é que a repressão foi desproporcionada e que pereceram muitos inocentes.

Uma das consequências da revolta falhada foi a centralização do Poder. O debate político empobreceu, no interior do M.P.L.A., em parte por falta de interlocutores. Reduziram-se as possibilidades de exprimir pontos de vista diferentes e de defender posições de grupos sociais específicos.

Modificado de Retornados - O Adeus a África. Editorial Cristo Negro, Lisboa, 2009.


Fotos pequenas: Internet.
Foto grande: festa da minha formatura. Eurico Gonçalves é o terceiro da direita, na fila detrás e Garcia Neto o segundo da esquerda, na fila da frente.

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quinta-feira, 13 de maio de 2010

Paradoxo

Não sei como foi negociada a visita de Bento XVI a Portugal. Limito-me a registar um facto.
Tenho quatro netos. Dois frequentam o ensino oficial. Ficaram hoje em casa. Os outros dois estudam em colégios católicos. Estão nas aulas.
Será uma questão de contrapartidas ou apenas interesse do governo em distrair os eleitores?

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Vice-Presidente

O rumor posto hoje a circular sobre a existência de ameaças contra a vida do Presidente da República Portuguesa (PRP) levou-me a pôr por escrito uma ideia antiga. A meu ver, a próxima revisão constitucional deveria incluir a criação do cargo de Vice-Presidente da República.

Os candidatos a PRP vão tendo, cada vez, mais anos. A morte, natural ou resultante de atentado ou acidente, a renúncia ao cargo, ou a impossibilidade física ou intelectual para continuar a exercer as funções irão conduzir, algum dia, à vacatura do lugar.

A nossa Constituição prevê essa possibilidade:

Art.º 125.º - O PR será eleito nos 60 dias posteriores à vacatura do cargo.

Art.º 132.º - Durante a vacatura do cargo, até tomar posse o novo PRP, assumirá as funções o Presidente da Assembleia da República.

É de supor que o funcionamento normal das instituições sofra alguma perturbação até à posse de um novo PRP. Por outro lado, as qualidades adequadas ao exercício da Presidência da República e da Assembleia da República são diferentes. De outro modo, uma das funções poderia nem existir.

As eleições são dispendiosas e, ao contrário da voz corrente, os titulares dos cargos mais altos da hierarquia do Estado são relativamente mal pagos.

Não dispondo de dados que me permitam fazer contas, ainda que aproximadas, atrevo-me a presumir que, mesmo que um Vive-Presidente apenas venha a entrar em funções uma vez em cada cinco mandatos presidenciais, ainda ficaria mais barato aos cofres do Estado do que um processo de eleição antecipada,

Por outro lado, em condições normais de funcionamento das instituições democráticas, o Vice-Presidente, oriundo da mesma família política e eleito na mesma lista que o PRP, seria o primeiro assessor do Presidente, que delegaria nele parte das funções. Os contribuintes nem teriam de pagar um novo posto de trabalho.


Imagem: busto da República, existente no Museu Militar de Lisboa.
Também publicado em decaedela.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Lubango




Às vezes, um homem resguarda-se nas recordações. Há dias, deu-me para procurar um álbum velho de fotografias. Abri-o e vi-me menino.

Nessa noite, sonhei que tinha morrido e que me iam meter num caixão grande demais. Era como se tivessem esperado que eu continuasse a crescer e me fizesse maior do que sou.

Numa parte do sonho, alguém pegou num retrato meu. Rasgou-o em pedaços e foi-se embora. Antes de sumir, voltou-se para trás e mandou-me reconstituir a minha própria fisionomia.

Não sei quem era o mandante, mas detinha algum ascendente sobre mim. Esforcei-me por obedecer. Não fui, porém, capaz de encaixar os retalhos num todo coerente. As peças não se ajustavam. Pareciam provir de existências diferentes.

Acordei a meio da noite e preocupei-me. Se calhar, andava a sonhar os sonhos de outrem.

Vou adiantado em anos. Há que dar sentido ao mundo e entender os passos dados. Resolvi regressar a Sá da Bandeira, à procura do fio condutor que faltava à minha vida.

Não o fiz de forma física. A minha cidade fica longe, no espaço e no tempo. Não a visito desde 1964. Havia de ter dificuldade em reconhecê-la, pois a guerra transformou Angola toda. A maioria dos habitantes brancos refugiou-se em Portugal.

O nome do baptismo, Sá da Bandeira, foi riscado do mapa. Desapareceu da geografia, mas não da memória. Dantes, tinha duas denominações. Agora, chama-se apenas Lubango.

Existe, hoje, outra povoação onde moram homens e mulheres diferentes. Estou certo de que, se regressar, me irei sentir estranho. Afundei raízes deste lado do mar. Se voltasse, poderia perder-me nos caminhos novos e até nos velhos.

No entanto, ao percorrer as ruas da lembrança, o asfalto ainda lá está, como um tapete liso. Os jardins são bonitos e as árvores frondosas. Os pássaros esvoaçam, como sempre. As montras permanecem espelhadas e cheias de coisas que apetecem. As cascatas da Huíla e da Hunguéria refrescam os sentidos. Os precipícios do Bimbe e da Tundavala continuam a assustar.

Posso imaginar, representadas numa única fotografia, as pessoas que foram importantes para mim, enquanto crescia. Estão lá todas. Ninguém morreu nem fugiu. Não há quem retoque a memória com os estragos do tempo. As moças da minha geração não engordaram nem envelheceram. Ao fundo, reina a Ponta do Lubango. É a mãe de todas as recordações.

Um homem não manda nas lembranças, mas consegue orientar-se por elas. Pode, também, inventá-las ou usar as de outros e fingir que são suas. Foi assim que este livro começou a nascer. Não é uma autobiografia, embora mostre coisas que me pertenceram ou que ainda são minhas.

Acho que fiquei obcecado pela ideia da fotografia. No centro da imagem que construí, está o meu pai. Eu apareço muitas vezes, com estaturas e rostos que vão mudando. As outras pessoas figuram apenas uma vez.

Não se admirem se as qualidades de alguns e os defeitos de muitos vos pareçam exagerados, nem se espantem por me escaparem acontecimentos óbvios. Eu era pequeno e olhava o mundo de baixo. Qualquer obstáculo me limitava o campo de visão. E, depois, as palavras hão-de parecer sublinhadas, especialmente quando falo do meu pai.

Constatei cedo que a história de um rapazinho não chegava para preencher um volume de duzentas páginas sem entediar o leitor e que a descrição da minha vivência familiar era importante apenas para mim e para os meus irmãos. Servia, no entanto, de testemunho de uma certa forma de colonização. É isso que vale e por isso fica.

Ainda pensei em enfeitar o texto com episódios conhecidos, mas arrependi-me logo. Por um lado, vim de lá novo e sei pouco. Por outro lado, alguns intervenientes estão vivos e poderiam não gostar do modo como seriam retratados. Soltei, pois, a imaginação, com os perigos que ela comporta.

Do prólogo do romance "Lubango", a publicar em breve.

Fotos: Internet.
Também publicado em decaedela.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

A Batalha do Lys – O Alcácer-Quibir da República

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No inverno de 1917-1918, a vontade de combater do Corpo Expedicionário Português era quase nenhuma e a situação disciplinar estava a degradar-se. Alguns oficiais que iam de licença a Portugal "esqueciam-se" de regressar.
Muitos políticos portugueses tinham considerado que a entrada do País na guerra, ao lado dos britânicos, implicaria o reconhecimento internacional da República e poria um travão às intenções inglesas e alemãs de tomarem conta das nossas colónias. A própria existência de Portugal como Nação independente estava em risco. Sabia-se que, em 1913, a Inglaterra e a Alemanha tinham iniciado negociações para uma eventual partilha das colónias portuguesas. O rei de Espanha chegara a informar os ingleses que, em caso de chegarem a acordo com a Alemanha nesse sentido, a Espanha exigiria para ela o território do Portugal europeu.
A verdade é que Portugal entrou no conflito cerca de dois anos antes da declaração formal de guerra. A 11 de Setembro de 1914, partira de Lisboa, em direcção às colónias, o primeiro contingente militar. No fim desse ano, as nossas forças já lutavam contra os alemães no sul de Angola e no Norte de Moçambique.
Acordou-se que Portugal enviaria para a guerra 56.000 soldados. Correspondiam à força necessária para a ocupação de 12 quilómetros de frente, no sector inglês da Flandres. Os portugueses embarcaram entre Dezembro de 1916 e Abril de 1917. Chegaram pouco antes da primeira divisão americana.
Os beligerantes estavam a sofrer desgastes terríveis. Em 1917, dos 3.600.000 franceses mobilizados em 1914, restavam apenas novecentos e tal mil. Os restantes tinham sido mortos, feridos ou capturados. Apesar das incorporações sucessivas, o exército francês de 1917 era mais reduzido que o de 1914. Ocorriam motins e fuzilamentos nas trincheiras.
A 21 de Março de 1918, o sector inglês teve de enfrentar a ofensiva alemã da Primavera. Revelou-se a mais violenta desde 1914. Os alemães tinham dado conta de que a chegada das tropas americanas estava a desequilibrar a guerra em seu desfavor e resolveram atacar, enquanto podiam. O Quinto Exército inglês foi obrigado a recuar cerca de 60 quilómetros e deixou de existir enquanto força de combate.
Os efeitos da derrota britânica fizeram-se sentir no moral das nossas tropas. A 4 de Abril, uma brigada que fora mandada avançar, para substituir a que se encontrava na linha de frente, recusou cumprir a ordem. Era a insubordinação. Alarmado, o general Tamagnini de Abreu solicitou ao comando britânico que substituísse temporariamente toda a I Divisão portuguesa. Os ingleses não estavam em condições de o atender.

A 8 de Abril, parecia que a investida alemã tinha perdido força e a I Divisão do C.E.P. começou a retirar. Estava prevista para o dia seguinte a retirada da II Divisão. Não houve tempo.
Na madrugada de 9 de Abril de 1918, os portugueses sofreram um bombardeamento violento. Seguiu-se o assalto do Exército alemão. Deu-se a "batalha do rio Lys". No espaço de poucas horas, foram abatidos 7.000 soldados e mais de 300 oficiais portugueses. Era o maior desastre militar lusitano desde Alcácer-Quibir.
Os destroços do C.E.P. foram transferidos para a retaguarda. A desmoralização das tropas portuguesas era notória. Embora os ingleses ainda tenham integrado algumas unidades nas suas forças, a guerra, para nós, terminara.

Referências: História de Portugal, direcção de José Mattoso. Círculo de Leitores, 1994.
Fotografias: Internet.

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domingo, 28 de março de 2010

Fernando Pessoa e a Geração de Orpheu

O primeiro número da revista Orpheu foi publicado no começo de 1915. Resultou da iniciativa de um grupo de jovens intelectuais que ambicionavam introduzir o modernismo em Portugal e no Brasil. A equipa não era homogénea. Cada um se esforçava por entender e aceitar a própria individualidade. Nas páginas da revista, coexistem simbolismo e decadentismo.

De um modo geral, as culturas desenvolvem-se em zonas de encruzilhadas, onde as influências se misturam e facilitam o germinar de ideias novas. Num País plantado no extremo ocidental da Europa, a inovação cultural era geralmente importada. Mário de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso passaram temporadas em Paris. Ronald de Carvalho era brasileiro e Luís de Montalvor vivera no Brasil. Quanto a Pessoa, tinha crescido na África do Sul e estudado em Durban, onde o padrasto fora cônsul de Portugal. A cereja no bolo era figurada por Ângelo de Lima, poeta internado no Hospital Psiquiátrico de Rilhafoles desde 1900. Era outra forma de ser estrangeiro.

Curiosamente, António Ferro que, anos mais tarde, criaria laboriosamente a imagem do Estado Novo, aparece como editor da revista. Diz-se que ganhou o cargo por ser menor de idade. Se o projecto conhecesse a insolvência, ele seria inimputável.

Os dois números da Orpheu garantiram-lhe um lugar na história da literatura portuguesa do séc. XX mas, na altura, o sucesso mediu-se sobretudo pelo escândalo que a ousadia dos textos provocou.

No primeiro número, a contribuição de Pessoa consistiu no "drama estático" O Marinheiro, assinado por ele mesmo e no Opiário e na Ode Triunfal, rubricados por Álvaro de Campos. No número 2 aparecem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa, e a Ode Marítima, de Álvaro de Campos.

O terceiro número não chegou a sair. O pai de Mário de Sá-Carneiro, sem o pretender e talvez sem o saber, era o principal financiador da Orpheu. Ao recusar enviar mais dinheiro ao filho, deu um golpe violento na cultura portuguesa.

A geração de Orpheu foi dizimada cedo. Mário de Sá-Carneiro suicidou-se em 1916. Amadeo e Santa-Rita morreram em 1918. Antes de falecer, Santa-Rita Pintor pediu à família que destruísse as suas obras. Infelizmente, foi atendido. Restam poucos quadros dele.

Deixo aqui fragmentos de poemas publicados por Pessoa no segundo número da Orpheu.

CHUVA OBLÍQUA (Excerto)

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei com quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem, renque de árvores, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
Echega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...

ODE MARÍTIMA (Excerto)

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?

A meu ver, resulta destes versos uma estranha unidade que Pessoa talvez não desejasse, ao dar-lhes assinaturas diferentes. Pode-se repartir o "eu" em duas, em quatro e até em setenta partes, mas o Homem lá está! Máscaras e espelhos poderão ajudar o poeta a tentar ver-se de fora e a conhecer-se melhor.

Referências: Simões, João Gaspar. Em: Fernando Pessoa, ensaio interpretativo de uma vida e de uma obra, Obra Poética de Fernando Pessoa, Círculo de Leitores, 1986.
Dicionário de Literatura Portuguesa. direcção de Jacinto do Prado Coelho, Figueirinhas, Porto, 1992.
Wikipedia.

Quadros: Amadeo Souza-Cardoso e Santa-Rita Pintor, Internet.

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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Organismos Geneticamente Modificados

Há dias, um amigo convidou-me a aderir, no Facebook, a uma organização que se opõe à utilização dos OGM.
Confesso que não identifiquei logo a sigla. Quando o fiz, dispus-me a reflectir sobre o assunto.
A questão não é recente. Os OGM entraram já nas nossas despensas, nos nossos frigoríficos e em alguns dos medicamentos que tomamos. A engenharia genética está a expandir-se e a controvérsia tornou-se inevitável.

Os pessimistas consideram que se está a abrir uma caixa de Pandora que irá soltar no mundo uma imensidão de monstros desconhecidos e talvez incontroláveis. Os genes alterados poderão induzir perturbações de dimensão e de alcance impossíveis de calcular.
Os optimistas acham que se vai tornar possível erradicar doenças hereditárias como a Trissomia 21 (mongolismo) e algumas formas de hemofilia, para referir apenas duas das patologias genéticas mais conhecidas. O combate à malária irá dispor de armas novas. Poderão criar-se castas de videiras capazes de resistir a doenças comparáveis à filoxera, que devastou as vinhas europeias no séc. XIX, ou tornar as batatas imunes a pragas do tipo da que espalhou a fome na Irlanda a partir de 1840.

Estamos a assistir à alvorada de uma tecnologia que irá permitir, eventualmente, recuperar espécies animais e vegetais extintas. Provavelmente, o Parque Jurássico, dentro de algumas dezenas de anos, deixará de ser ficção científica. No limite, Orfeu poderia conseguir uma Eurídice igualzinha sem ter de se aventurar no Inferno.
Nenhum governo e nenhuma organização serão capazes de se opor ao desenvolvimento de uma tecnologia tão prometedora. Diga-se o que se disser, pense-se o que se pensar, os estudos genéticos irão prosseguir e as suas aplicações práticas conhecerão um âmbito cada vez mais alargado. Não se levantam barreiras ao progresso erguendo bandeiras e fazendo tocar os sinos a rebate. Seria precisa uma nova Inquisição.
A genética vai continuar a desenvolver-se. Põem-se questões até há pouco desconhecidas. Poderá vir a ser possível criar, em laboratório, raças humanas superiores. Aberrações assim terão de ser proscritas. De outro modo, quem não pudesse pagar a tecnologia veria os seus filhos transformados em cidadãos de segunda ou de terceira classe. A Ética irá comportar novos capítulos que mal começaram a ser escritos. As legislações hão-de tornar-se ecos dela. As Tábuas da Lei de Moisés não podiam conter mandamentos contra pecados que as técnicas de então não tinham ainda permitido imaginar.
É indispensável criar regras novas e assegurar mecanismos eficazes para as executar.
Os riscos da introdução de organismos geneticamente modificados na alimentação humana e animal não podem ser negligenciados. Devem ser objecto de atenta monotorização, a cargo de organizações independentes das associações de produtores.
É sobre a vigilância, a transparência, a regulamentação e a aplicação de padrões humanistas às novas tecnologias que devem incidir as nossas preocupações. Tentar criar barreiras ao desenvolvimento de técnicas revolucionárias não é possível nem desejável.


Foto: Internet
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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O Messias Ovimbundo

Contam-se hoje oito anos passados sobre a morte de Jonas Malheiro Savimbi.

Ainda me lembro dele, nos tempos do Liceu, em Sá da Bandeira. Era um negro elegante e muito educado, protegido pelos Irmãos Maristas. Naquele tempo, não era conhecido por Savimbi. Toda a gente lhe chamava Jonas.

Duas décadas depois, as suas imagens apareciam em toda a parte: jornais, revistas e televisões. Mudara. Ganhara peso e passara a usar barba. Tive dificuldade em reconhecê-lo e perguntei à gente da minha idade:

- É mesmo o Jonas?

Era. Liderava a UNITA. O seu Movimento chegou a colaborar com os militares portugueses no Leste de Angola, por volta de 1973, durante a famosa Operação Madeira. Mais tarde, aliou-se aos sul-africanos. Para enfrentar o MPLA, até se teria juntado ao diabo. Pretendia ganhar um lugar ao sol da independência.

Desempenhou o papel que a História lhe reservara. Ele, que nunca foi um democrata, cresceu com a democracia. Arrastava multidões atrás da sua palavra. Terá sido um dos maiores oradores da África moderna. Diziam as más-línguas que, nos seus longos discursos, ao falar em umbundo, perspectivava, para os negros que o escutavam, uma realidade bem diferente da que prometia aos seus ouvintes europeus.

Foi abatido em 22 de Fevereiro de 2002.

Não se pode saudar a morte de um homem, mas podem-se dar vivas à paz que se lhe seguiu.


Fotos: Comício: Fernando Castro. Savimbi: Internet.
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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Um Olhar Sobre Camões


“Camões” é o nome duma povoação galega. A família do poeta ter-se-á fixado no concelho de Chaves, antes de se mudar para Coimbra e, depois, para Lisboa.
Curiosamente, não se sabe quando e onde nasceu, nem onde estudou. A sua cultura excepcional não estava ao alcance de um auto-didacta. É provável que tenha frequentado a Universidade de Coimbra, a única do Portugal do seu tempo, embora não haja registos da sua passagem pela cidade. Sabe-se que tinha um tio padre, D. Bento de Camões, no Mosteiro de Santa Cruz. Na época, poucos nobres sabiam ler. Quem aprendia eram os judeus e os clérigos. Judeu, Camões não era. Terá pensado em ser padre.
Entre 1542 e 1545, andou por Lisboa.
Esteve em Ceuta por volta de 1549. Lá perdeu um olho, durante um cerco.
Em 1550 foi registado na Armada para embarcar para a Índia: "Luís de Camões, filho de Simão Vaz e de Ana de Sá, moradores em Lisboa, na Mouraria; escudeiro, de 25 anos, barbirruivo, trouxe por fiador a seu pai; vai na nau de S. Pedro dos Burgaleses".
Ia assentado entre os homens de armas, mas não embarcou.
A ser verdade o registo, terá nascido em 1525. No entanto, as informações contradizem-se. Em 1551, segundo outra fontes, ainda estaria em Ceuta.
Dali voltou, por algum tempo, a Lisboa e à vida boémia.
No dia de Corpus Christi de 1552, lutou com Gonçalo Borges, “que tinha cárrego dos arreios do Rei” e feriu-o. Preso, foi libertado por carta régia de perdão, em Março de 1553: “é um mancebo e pobre e me vai este ano servir à Índia”.
À segunda, foi de vez. Camões embarcou, semanas mais tarde, na Armada de Fernando Álvares Cabral. Foi registado como “gente de guerra, escudeiro”, e recebeu 2400 réis, como os demais.
Viveu diversos anos em Goa, e aí escreveu boa parte de “Os Lusíadas”. Integrou várias expedições militares.
Em 1556 foi para Macau, onde continuou a escrever. Numa das suas viagens, naufragou na foz do rio Mekong. A sua companheira chinesa, a quem noutros poemas chamou Dinamene, faleceu nesse naufrágio. Nasceu então a cacofonia mais famosa da língua portuguesa:

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Algua cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Pede a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

Luís de Camões regressou a Goa em 1560 e foi preso por dívidas.
De volta a Portugal, terá passado dois anos na ilha de Moçambique, “tão pobre que vivia de amigos”. Onde terá Camões conhecido a escrava Bárbara? Enquanto se demorou na ilha de Moçambique, sem dinheiro para pagar a passagem até à Pátria, ou nas ruas de Lisboa?

Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar...


Diogo do Couto encontrou-o em Moçambique e pagou-lhe a viagem de regresso a Portugal. Camões embarcou na nau Santa Clara. À chegada, em Abril de 1570, teve de esperar em Cascais que fosse aberta a barra de Lisboa, encerrada devido à peste.
Publicou “Os Lusíadas” em 1572. Foi-lhe concedida uma tença de 15.000 réis. Paga com irregularidade e, provavelmente, mal administrada, não o livrou da miséria.
Luís Vaz de Camões ainda assistiu, em 1580, à partida do exército de D. Sebastião rumo a Alcacer Quibir. Faleceu, pouco tempo depois, numa casa de Santana, em Lisboa, sendo enterrado em campa rasa.
As suas ossadas estarão depositadas no mosteiro dos Jerónimos. Contudo, o terramoto de 1755, ao deitar abaixo a igreja de Sant`Ana, próxima do actual Campo dos Mártires da Pátria, misturou os despojos. Ninguém pode garantir que os restos mortais transportados para o belo jazigo do Mosteiro sejam mesmo os seus. Provavelmente, já antes do terramoto seriam difíceis de localizar. A verdade é que tanto dá...
Praticamente ignorado em vida, Camões tornou-se muito depressa um dos símbolos da identidade lusitana. A união de Portugal e Espanha sob os Filipes deu novo alento ao nacionalismo português. As edições de “Os Lusíadas” repetiram-se.
O diplomata e escritor espanhol Valera escreveu, séculos depois, que “Os Lusíadas son el mayor obstáculo à la fusion de todas las partes de esta Península. Camões se levanta entre Portugal y España qual firme muro, más difícil de derrubar que todas las plazas y los castillos todos”.
A colonização portuguesa foi diferentes da restantes. A vocação universalista e o entendimento do “outro” que se esconde sob uma pele de cor diferente, são características nossas. Não foram os portugueses que inventaram os mulatos, mas foram quem mais os produziu.
Já no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, publicado em 1516, D. João Manuel cantara “uma escrava sua”. Talvez por não abundarem as Natércias nas paragens que frequentou, Camões parece ter-se apaixonado, pelo menos, por uma chinesa e por uma negra.
Amou-as e cantou-as. Não tenho conhecimento de poemas de amor desta grandeza dedicados por europeus a mulheres de outras raças. Luís de Camões fê-lo durante o século XVI. Se outros contributos não tivesse dado à cultura mundial, estes sonetos e estas endechas bastariam para que se fosse da lei da morte libertando.

Referências:
Dicionário de Literatura. Direcção de Jacinto do Prado coelho. Figueirinhas, Porto, 1992.
Lírica de Camões, Círculo de Leitores, 1972.
Wikipedia.
Imagens:
Lírica de Camões
Gravura de Eduardo Malta
Internet



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domingo, 31 de janeiro de 2010

31 de Janeiro

O 31 de Janeiro constituía o tema favorito do sargento João Madruga. Embora tivesse acabado mal, fora a manhã mais bonita da sua existência. Madruga meteu na boca a última garfada de carne, limpou os lábios ao guardanapo, bebeu mais um gole de vinho tinto, e começou.
– Nós fomos para a revolução prontos para matar e morrer, mas aquilo quase não passou de um desfile. Às duas da manhã, saímos para a rua com dois regimentos. Estava nevoeiro e fazia frio. Eu estava colocado em Caçadores 9, que tinha o quartel na Rua de S. Bento. Juntámo-nos no Campo de Santo Ovídio com o pessoal de Infantaria 10 e com muitos soldados da Guarda-Fiscal, uns a pé, outros a cavalo. Os sargentos eram unidos e estavam do nosso lado, mas poucos oficiais nos quiseram acompanhar. Vieram apenas o capitão Leitão, o tenente Coelho e o alferes Malheiro.
Na madrugada do dia 31, os oficiais talassas conseguiram impedir o Regimento de Infantaria 18 de se juntar a nós. No entanto, alguns chefes militares não tinham ideias muito claras. Nem queriam estar contra Deus nem contra o Diabo. Houve ainda oficiais superiores que nem souberam, até ser dia, que estávamos na rua. Bom, quando nos pusemos em marcha, íamos cheios de ilusões. Julgávamos que era só chegar fogo a palha seca. Deitávamos os primeiros foguetes e a festa começava...
Não aconteceu assim, embora tivéssemos chegado a dispor de superioridade militar. O Governo ficou com a Guarda Municipal e com a artilharia da Foz e da Serra do Pilar. O destacamento de Cavalaria 6 andava por ali, sem saber para que lado cair. Contávamos que bastasse ter os regimentos na rua para que surgissem generais ou coronéis dispostos a comandar-nos. Não apareceram. Nem os civis que se juntaram a nós foram tantos como esperávamos. O Partido Republicano andava muito dividido e teve pouco a ver com a revolução.
Não se combatia. Esperava-se. A Guarda Municipal retirou quando viu chegar o Regimento de Infantaria 10, mas voltou a ganhar ânimo e foi rodeando as nossas tropas em Santo Ovídio. O subchefe do Estado-Maior da guarnição do Porto, tenente-coronel Magalhães, atreveu-se a entrar a cavalo no Campo, sem que alguém o impedisse. Quis falar com o capitão Leitão. Levaram-no junto dele. Magalhães tentou convencer o capitão a desistir da revolta, mas o homem era teimoso e estava decidido a seguir em frente.
De manhã cedo, um grupo de estudantes veio juntar-se a nós, dando vivas à República. A malta animou-se. Esperava-se que o Regimento de Infantaria 18 acabasse por aderir ao levantamento. As praças lá permitiram que os civis arrombassem uma porta. Santos Cardoso, um fala-barato em que poucos revoltosos confiavam, entrou no quartel acompanhado do actor Miguel Verdial e começou a arengar aos oficias. A acreditar no que o homem dizia, o rei já tinha fugido para um navio e navegava àquela hora para Inglaterra. Fora proclamada a República! O governo ameaçava expulsar do Exército os oficiais que se lhe opusessem.
A palestra surtiu algum efeito e a confusão instalou-se no Regimento.
Entretanto, a banda de Infantaria 10 desceu a Rua de Almada, a tocar “A portuguesa”. Nós e os civis íamos atrás. Não estávamos alinhados para o combate, mas para um desfile. Ocupámos a Praça de D. Pedro por volta das seis da manhã. A nossa bandeira foi hasteada na Câmara Municipal do Porto. Houve discursos. Ninguém os ouviu, mas não fazia mal. Era a República! Tínhamos governo e tudo!
As horas passaram. A tropa tinha fome. Estavam ali 600 homens, e pouco pão se pôde arranjar. Fui conversando com os colegas. Demos conta que não havia propriamente um plano militar e que nenhum ponto estratégico tinha sido ainda tomado. Começámos a preocupar-nos.
Os nossos oficiais resolveram então formar uma coluna. Subimos a Rua de Santo António em direcção à Batalha. A banda pôs-se outra vez à frente, a dar música ao povo.
A Guarda Municipal tinha-se posicionado no adro da Igreja de Santo Ildefonso. Já não estava sozinha. Do lado do Teatro de S. João, alinhava o destacamento de Cavalaria 6, que acabara por se inclinar para o campo dos talassas. Do outro lado, havia uma centena de praças da Guarda-Fiscal. A Guarda-Fiscal estava dividida. Metade alinhou connosco e metade com o Governo. Os municipais, não. Eram quase todos monárquicos. A nossa coluna não pretendia lutar, mas sim chamar para o nosso lado o resto da tropa. Acreditávamos que tanto a população como os soldados queriam mesmo a República. A essa hora, ainda dispúnhamos de vantagem em termos de efectivos. Dificilmente a Guarda Municipal seria capaz de enfrentar dois regimentos do Exército. A ser um ataque, estaria a ser conduzido de forma idiota. Marchávamos em coluna de quatro e subíamos uma rua íngreme, direitinhos às balas do inimigo. Os civis iam-se misturando connosco.
Alguns populares correram à frente da banda e insultaram os soldados da Municipal. Os gajos estavam cheios de medo e dispararam alguns tiros. Foi a debandada. Os civis correram rua abaixo pelo meio da formação, desorganizando completamente a nossa coluna. Alguns militares fugiram também, abandonando as armas. Quando conseguimos reunir de novo a tropa, éramos apenas 150 a defender a República. Retirámos para os Paços do Concelho.
Aos poucos, as tropas governamentais foram aparecendo. As peças trazidas da Serra do Pilar foram apontadas para nós. Era impossível oferecer resistência. Por volta das dez e meia da manhã, acabámos por desistir. A República durara três horas.

Excerto do romance 1910 (António Trabulo, Editorial Cristo Negro, Lisboa)

Um Pouco Da História Da Pesca Do Bacalhau

I

A EXPANSÃO


A nau de um deles tinha-se perdido
No mar indefinido.
O segundo pediu licença ao Rei
De, na fé e na lei
Da descoberta, ir em procura
Do irmão no mar sem fim e a névoa escura.

Tempo foi. Nem primeiro nem segundo
Volveu do fim profundo
Do mar ignoto à pátria por quem dera
O enigma que fizera.
Então o terceiro a El-Rei rogou
Licença de os buscar, e El-Rei negou.

Fernando Pessoa

Carta de doação de D. Manuel
a Gaspar Corte Real, em 1500

O “terceiro” era Vasqueanes Corte Real. D. Manuel I não permitiu que fosse em busca dos irmãos e chamou a si essa responsabilidade.
A importância crescente da pesca do bacalhau levou o rei, em 1506, a reservar para si o dízimo dos proventos da pesca da Terra Nova nos portos de Aveiro e Viana do Castelo.
Gaspar Corte Real descobriu a Terra Nova por volta do ano 1500. Que significa “descobrir”? Estas paragens foram provavelmente visitadas, séculos antes, por vikings e por pescadores islandeses. Uma ilha, ou a costa de um continente, só pode considera-se descoberta quando quem lá chegar saiba como voltar, e o transmita. Em termos práticos, tal acontece quando é assinalada num mapa e se conhece a latitude, o rumo a seguir e uma estimativa da longitude, uma vez que esta coordenada só ganhou precisão muito tempo mais tarde.

Pormenor do Planisfério português dito de "Cantino", datado de 1502


A primeira evidência dessa descoberta é o planisfério “Cantino”. Assinale-se que, nas cartas mais antigas, a posição da Terra Nova foi convenientemente deslocada para Leste, de forma a caber na parte do mundo que o Tratado de Tordesilhas reservara aos portugueses.
Não se pode falar dos mares que banham as costas do Canadá sem referir os nomes de Giovanni Cabotto, cujo nome foi anglicizado para John Cabot, e de João Fernandes Lavrador. Ambos partiram do porto de Bristol e navegaram ao serviço de rei Henrique VII de Inglaterra, embora Lavrador tivesse obtido antes do rei D. Manuel autorização para explorar ilhas e terra firme. As viagens do português que deixou o nome ligado à costa do Labrador, terão sido efectuadas após Cabotto desaparecer no mar, em 1498.
A importância do pescado na alimentação fazia-se sentir desde há muito e aumentou com o crescimento demográfico que ocorreu durante o século XV. Não abundavam, na Europa, as fontes de proteínas. Ainda por cima, a igreja católica proibia o consumo de carne nos dias de abstinência, que eram quase 150 por ano.
Os ingleses pescavam bacalhau nos mares da Islândia. Secavam-no a bordo, consumiam-no e comercializavam-no. Portugal tinha bom sal que exportava para a Europa. O intercâmbio com os pescadores ingleses terá começado desse modo. Bascos, portugueses e bretões habituaram-se também a pescar naquelas águas.
Entretanto, a situação geo-estratégica modificou-se. As lutas pelo domínio das áreas geográficas onde existem recursos importantes são tão velhas como as Nações. As áreas de pesca não escaparam aos conflitos. Em 1478, as autoridades dinamarquesas encerraram aos estrangeiros os pesqueiros da Islândia, que então controlavam.
Os pescadores tiveram de procurar outras zonas de pesca. Os portugueses deram com a “terra nova dos baccalhaos”. Dizia-se que havia tanto peixe nos seus bancos que os cardumes chegavam a impedir o avanço dos barcos.
A notícia da abundância de pescado propagou-se e a Terra Nova passou a ser procurada por pescadores de várias nacionalidades. Os portugueses foram os primeiros a instalar colónias fixas na Terra Nova e no Labrador a partir de 1506. O mapa de Cantino de 1502 assinala com nomes portugueses diversos pontos da costa.
As nações europeias foram dando conta da necessidade de povoar as terras recentemente descobertas. A pressão do crescimento demográfico fez-se sentir. Ingleses, franceses e bascos foram tomando posições na região. De início, instalaram-se em torno do estreito de Belle Isle.
A pesca era fonte considerável de riqueza. Companhias bascas e portuguesas exportavam, para a Inglaterra e Irlanda, bacalhau e sal de Setúbal.
Cerca de 1530, um grupo de portugueses partiu de Viana do Castelo em direcção à Terra Nova. Pretendia-se reforçar a colónia que controlava boa parte do litoral da região. O financiamento era feito por comerciantes de Aveiro e da Ilha Terceira. A colónia manteve-se, pelo menos, até 1579, como demonstra a nomeação de um descendente dos Corte Real para a Capitania da Terra Nova. A ocupação era essencialmente sazonal.
Nos primeiros anos do século XVI saíam anualmente, só de Aveiro, 60 navios pesqueiros com destino à Terra Nova. Em 1550, o seu número rondava os 150. Os bacalhoeiros tinham pequena tonelagem. Cada um era tripulado por 20 a 30 homens. A campanha ocupava a Primavera e o Verão. No resto do ano, os barcos eram rentabilizados na navegação de cabotagem.

Referências:
Canas, António José Duarte.
Guerreiro, Inácio.
Matos, Luís Jorge Semedo de.

Salgado, A. Alves.
Varela, Consuelo. (traduzida do espanhol por Eduarda Pinto Basto).
Todos em: Revista Oceanos, nº 45, Janeiro/Março 2001.

Gravuras e fotografias: idem.

O autor, nos mares da Terra Nova, em 1970
Também publicado em decaedela

domingo, 10 de janeiro de 2010

Funchal Antigo


O fogo nasceu do mar. Retorceu as ondas, libertou-se e procurou o céu. O fumo cobriu as águas. Ao dissipar-se, emergira uma grande massa de rocha preta. Subia centenas de metros acima do oceano. Ali ficou.
Quem a viu primeiro foi uma gaivota.
A chuva, o vento nervoso e o impacto das ondas foram desgastando a pedra. Formou-se areia, cada vez mais fina.
Vieram mais gaivotas. Descansaram na rocha. Algumas fizeram ninho.
As suas fezes amassaram-se com grãozinhos de areia. Constituíram o primeiro solo fértil. Transportavam sementes. Germinaram. Deram flores e frutos. A ilha fez-se verde.
Muitos, muitos anos depois, apareceu ao longe uma vela. Acostou uma embarcação tripulada por homens barbudos. Demorou-se pouco tempo, mas deu notícia do achado. Outros barcos chegaram, e houve gente que escolheu viver ali.
Fixou-se “em hum valle formoso cheyo de funcho até ao mar”.



Não se conhecem documentos sobre a descoberta da Madeira. Há indicações de que os arquipélagos da Madeira e das Canárias começaram a ser visitados por marinheiros portugueses durante o século XIV. Na carta “de Medici”, desenhada por volta de 1370, já aparecem as indicações de “porto sancto”, “i. de lo legname (madeira) e “i. deserta”.
Em 1433, o rei D. Duarte cedeu o arquipélago da Madeira ao seu irmão D. Henrique. No entanto, a povoação das ilhas terá começado por volta de 1425, antes da autorização do rei. Escreve o infante D. Henrique: “comecei de povoar as minhas ilhas de Madeira haverá ora trinta e cinco anos”, na carta de doação do espiritual das ilhas da Madeira, Porto Santo e Deserta à Ordem de Cristo, datada de 1460. Dois escudeiros da casa do infante, João Gonçalves Zarco e Tristão Teixeira, “desanimados com a proliferação de coelhos que eles mesmo tinham largado na ilha de Porto Santo”, mudaram-se para a Madeira. Zarco viria a conseguir obter a maior capitania da ilha, ficando Tristão Teixeira com a região do Machico.
João Gonçalves Zarco e a sua família instalaram-se na zona do Funchal. A fertilidade dos solos e a existência de um bom porto natural facilitou o desenvolvimento da povoação e da ilha.


Em 1566, as ilhas do Arquipélago foram invadidas por uma armada francesa que partiu de Bordéus. Depois de saquearem Porto Santo, os corsários, comandados por um fidalgo da corte de Carlos IX, ancoraram na praia Formosa e desembarcaram. Os oitocentos homens armados venceram facilmente a resistência com que depararam até à fortificação do Funchal. As peças de artilharia estavam apontadas para o mar e não puderam ser reposicionadas a tempo. O forte foi tomado e, durante quinze dias, os franceses roubaram tudo o que na cidade tinha algum valor.
Casa arrombada, trancas na porta! O arquitecto militar Mateus Fernandes foi enviado, no ano seguinte, para o Funchal e a defesa da cidade foi reformulada.
No século XVII, fixaram-se no Funchal comerciantes ingleses de vinho que iriam deixar a sua marca na economia, na arquitectura e no modo de vida da cidade. Mais tarde, o clima da ilha ganhou fama de favorável à recuperação da tuberculose e foram várias as figuras da grande nobreza europeia que passaram longos períodos de tempo na Madeira. O turismo é ainda hoje a principal fonte de rendimento da Região.


Referências: Albuquerque, Luís de. Os descobrimentos portugueses. Publicações Alfa, Lisboa, 1985.
Wikipedia.
Fotografias: várias fontes.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Bocage em Macau




Manuel Maria Barbosa du Bocage esteve em Macau de Outubro de 1789 a Março de 1790. Viera de Surrate, na Índia, e passara por Cantão.
O poeta procurava dar-se bem com os poderosos. O governador interino, Lázaro da Silva Ferreira, facultou-lhe o regresso a Lisboa. Bocage chegou a Portugal em Agosto de 1790. Agradeceu a Lázaro, com um poema, e retratou noutro o estado da Macau que conhecera:

Um governo sem mando, um bispo tal,
De freiras virtuosas um covil
Três conventos de frades, cinco mil
Nhon's e chinas cristãos, que obram mui mal.

Uma Sé que hoje existe tal e qual,
Catorze prebendados sem ceitil
Muita pobreza, muita mulher vil,
Cem portugueses, tudo em um curral;

Seis fortes, cem soldados, um tambor,
Três freguesias, cujo ornato é pau,
Um Vigário-Geral, sem promotor,

Dois colégios, e um deles muito mau,
Um senado que a tudo é superior,
É quanto Portugal tem em Macau.

O poder de síntese de Bocage é quase insuperável: traçou nos catorze versos dum soneto a caricatura de uma cidade.
O padre Manuel Teixeira explica a sátira do poeta.
O governador não tinha poder civil: mandava apenas nos soldados e nas fortalezas. Não havia bispo desde 1780. As clarissas eram as únicas pessoas elogiadas pelo poeta. A palavra “covil” referia-se à clausura rigorosa dessas freiras. Os três conventos eram os de São Francisco, Santo Agostinho e São Domingos. Nhons (a palavra significa senhor) eram os mestiços. Os padres censuravam repetidamente a corrupção dos costumes da época.
A Sé Catedral datava de 1622 e não recebera melhoramentos. Prebenda era o direito dum eclesiástico a receber um subsídio, mas o Senado não tinha dinheiro para o pagar.
Os cristãos chinas e portugueses estavam reduzidos à indigência. Em boa parte em resultado da pobreza, havia muita “mulher vil”. Os “portugueses europeus” em 1775 eram apenas 108 e viviam todos na cidade amuralhada.
Cerca de 100 soldados distribuíam-se por seis fortes. As igrejas paroquiais eram pobres e sem valor artístico. O Vigário-Geral era o governador do Bispado. Não houve promotor
de justiça do Juízo Eclesiástico nos anos de 1789 e 1790.
O Colégio muito mau era o de S. Paulo, que se encontrava degradado, tendo sido já demolidas algumas oficinas em ruínas. A finalizar, quem mandou sempre em Macau foi o Senado.
A Bocage aconteceu o mesmo que ao seu Portugal: voltou do Oriente tão pobre como partira de Lisboa. Enriqueceu apenas no conhecimento da natureza humana e alargou o espírito no contacto com outras civilizações.

Referências:
Teixeira, Manuel. Macau no século XVIII. Imprensa Nacional, Macau, 1984.
Fotografias:
A China e os Chineses, Auguste Borget. Instituto Cultural de Macau, 1990.
Macau, Daniela Carvalho Faria e Eduardo Grilo, Primeira Impresão Ldª, Macau, sem data.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Natal de 1884, O Nascer de uma Cidade

Sá da Bandeira (Lubango)
Vista geral da povoação (por volta de 1886)


O Brasil perdera-se de vez e há muito que a economia portuguesa precisava de outros arrimos. A África constituía o último quintal de Lisboa e seria oportuno olhar a sério para o continente negro.
Portugal tinha mais olhos que barriga. Pretendia conservar um império colonial de uma vastidão desmesurada sem dispor dos meios humanos e técnicos nem das capacidades financeiras indispensáveis para enfrentar a concorrência de nações europeias mais ricas e desenvolvidas.
A Conferência de Berlim abalou profundamente as pretensões portuguesas: os alegados direitos históricos só seriam atendíveis quando corroborados pela “existência de uma autoridade suficiente para fazer
respeitar os direitos adquiridos e a liberdade de comércio e de trânsito”. Coincidiu, no tempo, com a criação da Colónia Sá da Bandeira, inserida num tíbio conjunto de medidas destinadas a travar o expansionismo de outros estados europeus.
A Colónia Agrícola Sá da Bandeira foi programada em Lisboa. Os trabalhos de preparação decorreram, em parte, nas secretarias do ministério da Marinha e Ultramar. Nenhuma outra tentativa de fixação de população europeia em Angola merecera antes tanto cuidado. Mesmo assim esbarrou em múltiplas dificuldades.
A instalação foi relativamente pacífica. A zona a ocupar estava quase deserta. Os muílas eram senhores de áreas vastas e não queriam saber daquele pedaço de terra.
A bacia do Lubango situa-se a uma altitude de 1.800 metros e cobre uma área superior a 1.000 hectares. É rodeada por uma cadeia de serras que se abre apenas a Leste. É por ali que entra o vento e sai o rio.
Quem olha em volta, pela primeira vez, fixa os olhos no Sul. A Ponta do Lubango interrompe bruscamente a serra do Mucoto e ganha para sempre espaço em muitos sonhos.
Há pequenos ribeiros que levam água todo o ano. Juntam-se no lugar da Maxiqueira, ali bem perto, para formar o Caculovar, que vai desaguar na Itambala (ou Lagoa dos Cavalos-marinhos).
Os colonos foram recrutados na Ilha da Madeira e transportados no navio “India”. Desembarcaram em Moçâmedes em 19 de Novembro de 1884 e esperaram durante algumas semanas pela caravana bóer que havia de transportar os seus haveres serra acima.
A primeira leva de colonos subiu a Chela a pé e chegou ao Lubango na véspera do Natal de 1884. Os seus modestos bens, as alfaias agrícolas, os doentes e as crianças de colo viajaram nos carrões bóeres contratados. A viagem demorou nove dias.
As carroças foram descarregadas. Na manhã seguinte, os bóeres voltaram com os carros, serra abaixo, para buscar a gente que ficara.
Os madeirenses
deitaram logo mãos à obra. Os primeiros trabalhos foram colectivos. Na margem direita do rio Caculovar abriu-se uma clareira onde foram construídos dois grandes barracões de pau-a-pique, um para os homens e o outro para as mulheres e crianças. Edificaram-se, em acampamento separado, cubatas para instalar o director da Colónia, o médico, a secretaria provisória e a ambulância.
A 16 de Janeiro chegou o resto do pessoal. Eram 220 pessoas, entre homens, mulheres e crianças.
Depois de levantados dois novos barracões, os homens empenharam-se na escavação de uma levada para rega. A chuva atrasou os trabalhos, e a vala, de três quilómetros de extensão, só ficou pronta no fim de Fevereiro.
Acabada a vala, procedeu-se à delimitação do povoado, a uns três quilómetros dos barracões originais. Cada chefe de família recebeu dois hectares de terreno e ergueu uma casa pequena com paredes de pau e argila e tecto de capim. As habitações eram semelhantes às cubatas indígenas, mas tinham base rectangular e dividiam-se em dois compar
timentos.
Os problemas começaram cedo. Os cofres do Estado português encontravam-se vazios e o subsídio que devia sustentar os agricultores até às primeiras colheitas revelou-se insuficiente.
A diferença maior no viver dos colonos e dos negros que os rodeavam estava no ensino. Logo no primeiro ano, a escola
primária contou com 36 alunos, todos rapazes. A sala de aulas e a capela compartilhavam o mesmo barracão. Uma cortina de pano separava o ensino público
do culto divino.

A meio de 1891, a Colónia de Sá da Bandeira contava 1.064 brancos, 12 mestiços e 208 negros.
Fui lá plantado sessenta anos depois. Ali fiz toda a instrução primária e liceal. Foi naquela terra que aprendi a conhecer-me. É a minha cidade.


Rua Pinheiro Chagas, futuro "Picadeiro"


Referências:
Sá, Albino. A portugalização do Sul de Angola, terceiro período. Boletim da Câmara Municipal de Sá da Bandeira nº 22, Julho/Agosto/Setembro, 1968.
Sousa Dias, Gastão. A cidade de Sá da Bandeira. Edição da Câmara Municipal. Sá da Bandeira, 1957.
Trabulo, António. Os Colonos. Esfera do Caos, Lisboa, 2007.
Fotografias:
Moraes, J. A. da Cunha. Álbum photographico e descriptivo, África Occidental (Mossamedes, Huíla e Humpata), David Corazzi Editor, Lisboa, sem data.