Em memória de dois amigos
Na madrugada de 27 de Maio de 1977, um grupo armado assaltou a cadeia de S. Paulo, em Luanda. Depois, tomou conta da Rádio Nacional de Angola. Na vizinhança, tinham-se concentrado algumas centenas de manifestantes. As tropas fiéis a Agostinho Neto e os militares cubanos dispararam sobre os populares e retomaram o edifício. Por volta das 14 horas, ocuparam também o quartel da 9ª Brigada, onde teria estado preso Saidy Mingas.
O exército cubano, que tinha dado um contributo decisivo para o desfecho da guerra civil e constituía a força militar mais poderosa em Angola, apoiou o presidente Neto e garantiu-lhe uma vitória rápida. Foi decretado o recolher obrigatório.
No dia seguinte, foram encontrados na zona da Boavista, dentro de um jipe e de uma ambulância, os corpos de oito pessoas, entre as quais se encontravam três membros do Comité Central do M.P.L.A.: Saidy Mingas, ministro das Finanças, Veríssimo da Costa (Nzaji), chefe da Segurança das F.A.P.L.A., e Paulo Mungungu (Dangereux).
Do grupo, faziam ainda parte os cadáveres de Eurico Gonçalves, comandante do M.P.L.A., que se encontrava doente com filaríase, e Garcia Neto, antigo estudante de Direito da Universidade de Coimbra, que vira o Curso interrompido por agentes da P.I.D.E. e passara vários anos nos calabouços, até ser libertado no dia 26 de Abril de 1974. Alheios à contenda entre Nito e Neto, foram sacrificados por acaso. Eram amigos um do outro e do Comandante da Polícia de Luanda, João Saraiva de Carvalho. Tinham vivido juntos em Coimbra, na República do Kimbo dos Sobas. Ao saberem que se estavam a passar movimentações anormais, dirigiram-se a casa do João, para se informarem. O Chefe da Polícia ausentara-se. Foram apanhados pelos revoltosos, que vinham procurá-lo, e passados pelas armas.
Numa praia de Luanda, apareceram ainda vários cadáveres carbonizados. Houve quem afirmasse que os homens tinham sido queimados vivos.
A vingança não se fez esperar. O ódio soltou-se nas ruas da capital e propagou-se a Angola inteira. Os nitistas foram trucidados.
O número total de mortos é desconhecido. Bastantes meses depois, a Amnistia Internacional calculava que tivessem sido executadas, sem julgamento, entre vinte e quarenta mil pessoas, mas ninguém sabe como essas contas foram feitas. Ao que parece, ocorreram fuzilamentos em todas as Províncias. Terão sido muitas vezes precedidos de tortura. Em Luanda, prosseguiram durante meses a fio.
Consta que foram abatidos muitos jovens. Diz-se que alguns nem sabiam quem era Nito Alves. Sem fontes credíveis que permitam uma boa aproximação à verdade histórica, vive-se muito do que se ouve. Terão desaparecido turmas inteiras de alunos das Faculdades de Angola. No Lubango, alguns dirigentes da J.M.P.L.A. poderão ter sido amarrados de pés e mãos e empurrados para o abismo da Tundavala.
O fim de alguns conspiradores mais conhecidos transpirou, ainda que os relatos disponíveis devam ser encarados com reserva.
A ordem para o fuzilamento de Nito Alves terá partido do Presidente da República Popular de Angola. Escreveu-se que João Jacob Caetano, o Monstro Imortal das lendas da guerra da independência, morreu garrotado. Sita Valles entrou de mão dada com o marido, José Van Dunem, nas instalações do Ministério da Defesa. O casal terá sido enviado para o Forte de S. Miguel. Nenhum dos dois saiu de lá com vida.
A história do 27 de Maio está por fazer. Quem sabe o que se passou, ou esteve ligado ao processo contra-revolucionário, ou dá-se com quem esteve, e cala-se. Há quem afirme que a dissidência de Nito Alves poderia ter tido solução política. Certo é que a repressão foi desproporcionada e que pereceram muitos inocentes.
Uma das consequências da revolta falhada foi a centralização do Poder. O debate político empobreceu, no interior do M.P.L.A., em parte por falta de interlocutores. Reduziram-se as possibilidades de exprimir pontos de vista diferentes e de defender posições de grupos sociais específicos.
Modificado de Retornados - O Adeus a África. Editorial Cristo Negro, Lisboa, 2009.
Fotos pequenas: Internet.
Foto grande: festa da minha formatura. Eurico Gonçalves é o terceiro da direita, na fila detrás e Garcia Neto o segundo da esquerda, na fila da frente.
Também publicado em decaedela.
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