*É um Lusófono com L grande? Então adira ao MIL: vamos criar a Comunidade Lusófona!*

MIL: Movimento Internacional Lusófono | Nova Águia


Apoiado por muitas das mais relevantes personalidades da nossa sociedade civil, o MIL é um movimento cultural e cívico registado notarialmente no dia quinze de Outubro de 2010, que conta já com mais de uma centena de milhares de adesões de todos os países e regiões do espaço lusófono. Entre os nossos órgãos, eleitos em Assembleia Geral, inclui-se um Conselho Consultivo, constituído por mais de meia centena de pessoas, representando todo o espaço da lusofonia. Defendemos o reforço dos laços entre os países e regiões do espaço lusófono – a todos os níveis: cultural, social, económico e político –, assim procurando cumprir o sonho de Agostinho da Silva: a criação de uma verdadeira comunidade lusófona, numa base de liberdade e fraternidade.
SEDE: Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa)
NIB: 0036 0283 99100034521 85; NIF: 509 580 432
Caso pretenda aderir ao MIL, envie-nos um e-mail: adesao@movimentolusofono.org (indicar nome e área de residência). Para outros assuntos: info@movimentolusofono.org. Contacto por telefone: 967044286.

NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI

Sede Editorial: Zéfiro - Edições e Actividades Culturais, Apartado 21 (2711-953 Sintra).

Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa).

Desde 2008"a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".

Colecção Nova Águia: https://www.zefiro.pt/category/zefiro-nova-aguia

Outras obras promovidas pelo MIL: https://millivros.webnode.com/

"Trata-se, actualmente, de poder começar a fabricar uma comunidade dos países de língua portuguesa"

"Trata-se, actualmente, de poder começar a fabricar uma comunidade dos países de língua portuguesa"

Nenhuma direita se salvará se não for de esquerda no social e no económico; o mesmo para a esquerda, se não for de direita no histórico e no metafísico (in Caderno Três, inédito)

A direita me considera como da esquerda; esta como sendo eu inclinado à direita; o centro me tem por inexistente. Devo estar certo (in Cortina 1, inédito)

Agostinho da Silva
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domingo, 1 de setembro de 2013

A função social dos intelectuais na atualidade – abordando a tese ideológica de Vasco Graça Moura

“(…) O discurso que confunde globalização com a extinção das diversidades humanas e culturais, é um método injusto e frustrado de tentar colonizar os espíritos em detrimento da necessária solidariedade plural. (…) de acordo com a tese de Herbert Marcuse, houve uma instrumentalização do saber e da técnica, o que levou Jurgen Habermas a publicar o útil ensaio sobre Técnica e Ciência como Ideologia (1968). (…) tenho concluído que o Norte do Globo, que se definiu como afluente, consumista, e até unidimensional, derivou para um credo de mercado, hierarquizou os saberes em termos de encontrar para essa economia um paradigma de legitimação, limitou profundamente o papel, que fora dominante, das faculdades de humanidades, colocou o preço das coisas no valor das coisas, e desenvolveu, ao lado da ameaça das armas de destruição maciça, a ameaça igual entre sociedades ricas e sociedades pobres. (…)”


Adriano Moreira, “Discurso de Doutoramento Honoris Causa na Universidade do Mindelo – Cabo Verde”, in Nova Águia, nº 9, Sintra, Editora Zéfiro, 2012, pp. 216, 217 e 218.

“(…) Os intelectuais, no sentido elitista que a expressão teve em França e no século XX, estão em vias de extinção. (…) Há uma interacção entre a ideologia política, a tecnocracia, a formação crítica e o imediatismo impaciente que distorce a função intelectual. (…) A crise das elites não é um fenómeno português. Generalizou-se pela excessiva especialização das formações universitárias, pela empresarialização obsessiva da instituição universitária, pelo postergamento das humanidades e da cultura geral no sentido nobre do termo. Deixou de haver elites no sentido humanístico e cívico para haver especialistas que só vêm o seu próprio quintal e nem sempre…Portugal, se não tiver cuidado, para lá caminha. (…)”

“Vasco Graça Moura ‘Os intelectuais estão em vias de extinção – entrevista de Margarida Bon de Sousa a Vasco Graça Moura”, (jornal), 17 de agosto de 2013, p. 25

O intelectual é, por definição, “a pessoa que cultiva preferencialmente as coisas do espírito, do entendimento”[1] que valoriza o espírito crítico na construção de um conhecimento global. Como alguns exemplos de intelectuais, de grande relevo, da atualidade refiro Adriano Moreira, Edgar Morin, Eduardo Lourenço, José Mattoso, José Gil, Boaventura Sousa Santos, Noam Chomsky, Manuel Clemente, António Lobo Antunes, Jurgen Habermas, etc, além de uma nova geração de discípulos influenciada por estes mestres do pensamento sistémico.  

O episódio histórico de Alfred Dreyfus, na viragem do século XIX para o XX, foi um escândalo que agitou a sociedade francesa devido à errada condenação pelo sistema judicial deste militar que, sendo inocente, foi considerado traidor por espionagem internacional. Os eminentes escritores Émile Zola e Anatole France, secundados por diversos outros intelectuais, defenderam a inocência deste militar e assumiram a missão de desmascarar o preconceito racial existente contra os judeus e a verdade dos factos. Portanto, os intelectuais têm esta missão de intervenção social em defesa de ideais e de valores julgados sacrossantos face aos princípios universais dos Direitos Humanos.

A ideologia neoliberal, do fim século XX e início do século XXI, imposta pelos poderes estabelecidos pelo sistema da Globalização Financeira, que esquece o Desenvolvimento Integral do Homem e o Desenvolvimento Sustentável do planeta está a tentar “colonizar” a mentalidade dos cidadãos das democracias enfraquecidas neste contexto mundial, na sábia conceptualização de Adriano Moreira.

A crise das Humanidades[2], pela desvalorização estabelecida pelo pragmatismo reinante, que deu azo à excessiva valorização das Ciências Exactas, em infeliz detrimento das Ciências Humanas dada a inviabilidade da sua imediata aplicabilidade prática, originou um sistema tecnocrático que tem irradiado uma crescente desumanidade pela reconhecida incompreensão da complexidade das problemáticas humanas.

Por conseguinte, tudo o que não esteja articulado com a aplicabilidade imediata e com o valor de mercado perde um referencial de importância estratégica e, consequentemente, os currículos educativos dos sistemas de ensino fazem perder peso a essas disciplinas consideradas pouco úteis para o funcionamento material e prático das sociedades contemporâneas.

Este caminho encetado pelo pragmatismo niilista, esvaziando os significados simbólicos inerentes ao espírito humano, tem potenciado através dos meandros da financeirização da economia uma crescente subjugação dos cidadãos e das democracias aos preponderantes interesses financeiros.  

Nestas sociedades contemporâneas, exponencialmente tecnocráticas em que a inteligência técnica é sobrevalorizada em relação à inteligência humanística, os intelectuais constituem, ainda assim, o autêntico baluarte dos valores e dos ideais humanísticos que é necessário preservar para garantir níveis de bem-estar que compaginem o desenvolvimento material e espiritual.

Com efeito, a sensibilidade associada ao entendimento dota os intelectuais de uma percepção mais apurada dos valores profundos dos seres humanos (a verdade, a justiça, a paz, o amor, a beleza, etc) e dos ideais que elevam o Homem acima da brutalidade da Natureza. Mais do que nunca, a função social dos intelectuais assume-se como imprescindível ao equilíbrio Ecológico e Ético do futuro da Humanidade numa Era em que os valores são menosprezados pelos verdadeiros detentores dos poderes económico-financeiros.

A tese ideológica de Vasco Graça Moura de que “os intelectuais estão em vias de extinção”, apresentada em entrevista ao jornal i em agosto de 2013[3], é resultante do seu desencanto com a importância que os intelectuais têm no mundo atual e com a sua própria opção ideológica favorável à minimização do Estado no plano Cultural.

Manuela Canavilhas, por exemplo, no jornal das 9, do dia 29 de agosto de 2013, da SIC Notícias considerou, em antítese, que o Estado no caso da Exposição da artista Joana Vasconcelos deveria ter assumido este projecto estratégico de investir para colher os previsíveis lucros, dado o êxito internacional da artista no Palácio de Versalhes. Por oposição, Vasco Graça Moura assumiu uma posição de resignação perante a realidade incontornável de aceitação incondicional dos critérios dos mercados e menorizou no seu pensamento, concomitantemente, o papel das redes sociais e dos opinion makersnos meios de comunicação social. Revelou, assim, um completo desencanto e resignação como intelectual perante a ideologia dominante e, deste modo, limitou o seu próprio poder de intervenção social como membro da intelectualidade europeia.

Em síntese, é imperioso lutar contra a rendição das elites intelectuais ao poder tecnocrático, sob o risco da inexistência de visões amplas da vida humana nas sociedades pseudodesenvolvidas aprofundar a desumanidade das instituições e das estruturas internacionais. Por esta razão, constitui um imperativo Ético a intervenção social dos intelectuais na presente conjuntura, desta Globalização desregulada, que nos submerge numa exasperante apatia cívica.


[1] “Intelectual”, in Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, Editora Verbo, 2001, p. 2129.
[2] Adriano Moreira, “Discurso de Doutoramento Honoris Causa na Universidade do Mindelo – Cabo Verde”, in Nova Águia, nº 9, Sintra, Editora Zéfiro, 2012, pp. 215-218.
[3] “Vasco Graça Moura ‘Os intelectuais estão em vias de extinção – entrevista de Margarida Bon de Sousa a Vasco Graça Moura”, i(jornal), 17 de agosto de 2013, p. 25.

Nuno Sotto Mayor Ferrão

Publicado originalmente, com documentos complementares, no blogue Crónicas do Professor Ferrão

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A Doutrina Social da Igreja no contexto dos paradoxos da Globalização atual



A Doutrina Social da Igreja é o conjunto de princípios que a Igreja Católica preconiza para uma vida saudável das sociedades contemporâneas que se baseie na fé revelada e na racionalidade fundamentada no conhecimento da autêntica Natureza Humana. Os valores desta Doutrina são fundamentais neste contexto da Globalização desregulada, que tem favorecido as desigualdades sociais como nos reconhecem os relatórios anuais do PNUD das Nações Unidas. O Papa Bento XVI, na sua Encíclica escrita em 2009, fez uma análise da situação internacional à luz das causas sistemáticas dos vícios da Globalização e dos valores inscritos na matriz da Doutrina Social da Igreja sustentando a necessidade de uma novo paradigma de Ética Pública que reconfigure as instituições que se deixaram endeusar pelos critérios dos mercados e dos lucros.

No decurso da História Contemporânea, de 1891 a 2009, foram numerosas as Encíclicas e os documentos pontifícios que foram dando corpo à Doutrina Social da Igreja ao indicarem os princípios e os valores perenes da Humanidade (a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a paz, a justiça, a verdade, a caridade, etc.). Estes ensinamentos foram instilados, desde o Concílio Vaticano II, nos leigos para que possam insuflar as realidades temporais (o mundo profano) de valores perenes. A Doutrina Social da Igreja tem sido bastante crítica em momentos de crise Civilizacional (na questão operária no fim do século XIX, na atrocidade Nazi em pleno século XX e nas injustiças provenientes da presente Globalização). Com a crescente complexidade dos fenómenos contemporâneos, a par do vertiginoso ritmo das mudanças sociais e tecnológicas, importa saber que a Doutrina Social da Igreja defende que os Estados Nacionais e Supranacionais devem salvaguardar a justiça social nos recursos disponíveis do Bem Comum.

Historicamente foi a teoria de Karl Marx do século XIX, da previsível luta de classes entre operários e patrões, a par da concomitante proliferação de massas operárias indigentes nas sociedades do Ocidente, que obrigou a Igreja Católica a reagir às evidentes alterações das estruturas sociais e económicas, com a Encíclica Rerum Novarum do papa Leão XIII que inaugurou o legado da Doutrina Social da Igreja, clamando pela necessidade de se criarem condições para a prática da justiça social. Mais tarde, também o Papa Pio XI se preocupou com esta problemática repudiando as ideologias totalitárias, designadamente o Nazismo. Importa, no entanto, lembrar que nos nossos dias se vive sob uma nova ideologia totalitária imposta pela ditadura dos mercados.     

 Convém, ainda, compreender as principais consequências práticas da Doutrina Social da Igreja instauradas sob o impulso do Concílio Vaticano II. Além das decisões já conhecidas, importa, em primeiro lugar, salientar a aproximação entre a Igreja Católica e as outras comunidades cristãs. Em segundo lugar, a abertura desta instituição às sociedades contemporâneas traduziu-se nas diversas Encíclicas papais de intervenção cívica a favor dos Direitos Humanos, da proteção dos grupos mais desfavorecidos e das reflexões críticas sobre as situações internacionais. Na verdade, os Papas João Paulo II e Bento XVI frisaram o papel renovador do Concílio Vaticano II na Igreja Católica, não obstante a revolução juvenil de maio de 1968 tenha atenuado, aparentemente, a importância das mudanças sociais encetadas pela Igreja Católica.

De facto, João Paulo II foi um peregrino de espírito ecuménico na senda do Concílio Vaticano II, enquanto o Papa Bento XVI tem sido um intérprete atento dos tempos atuais, dando inteligibilidade aos fenómenos da política nas relações da comunidade internacional, sendo exemplo disso a encíclica Caridade na Verdade[1]. Em terceiro lugar, as decisões conciliares, vertidas nos diversos documentos oficiais, acabaram por ter reflexos jurídicos que se encontram já consignadas no Código de Direito Canónico.

De facto, a Doutrina Social da Igreja, em particular com a Encíclica Caridade na Verdade do Papa Bento XVI, tem criticado a Globalização desregulada que criou uma série de constrangimentos à justiça social devido ao endeusamento dos mercados e do lucro fácil. Por esta razão, Bento XVI pugna por um novo paradigma das relações internacionais que se baseie em valores e princípios sãos. A Doutrina Social da Igreja assente em valores perenes (a dignidade humana, a participação cívica, a proteção social dos mais desfavorecidos, a verdade, a liberdade, a justiça e a paz), tantas vezes esquecida, faz falta nestes tempos de negligência das questões Éticas. A História da Humanidade está presentemente dirigida por um destino comum de problemas e soluções que carecem de estratégias globais que arrede, para o segundo plano das relações sociais, os individualismos e os egoísmos nacionais. Assim, a linguagem do Amor, marca fundamental dos ensinamentos de Jesus Cristo, constitui a argamassa essencial das relações sociais harmoniosas para se ultrapassarem as tensões entre grupos sociais. Na verdade, a desumanidade das sociedades atuais decorre das relações humanas se basearem erroneamente no critério primordial da eficácia, porquanto a sensatez cristã manda que se baseiem fundamentalmente no valor da dignidade da pessoa humana.

Em suma, esta dinâmica histórica decorre da crise de valores que se acentuou com a sacralização ideológica do ultraliberalismo que tem feito esmorecer a vida Moral e Espiritual da Humanidade. Os Estados devem ser os garantes do Bem Comum, pois a socialização atual, em particular, através da ideologia neoliberal pode incitar à temível despersonalização do Homem. Este é um paradoxo crucial do contexto desta Globalização desregulada e a leitura atenta da Doutrina Social da Igreja faz-nos perceber a premência de definir outro paradigma para que os dirigentes locais, nacionais e mundiais possam encontrar novos caminhos mais consentâneos com o Humanismo Ético. 

Nuno Sotto Mayor Ferrão


[1] Bento XVI, Caridade na Verdade, Prior Velho, Paulinas Editoras, 2009.

Publicado inicialmente, com documentos complementares, no blogue Crónicas do Professor Ferrão

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

A década de 2001-2010 do nosso mundo: linhas de força de sociologia histórica

A primeira década do século XXI, a nível internacional, foi marcada por uma crise global a múltiplos níveis (Ética, Política, Económica, Social, etc.) que resultou da acelerada Globalização que tornou o mundo mais complexo e suscitou uma perplexidade das elites para lidarem com as estruturas internacionais em mudança. Na verdade, na transição do século XX para o XXI o mundo deixou de ser bipolar, com o fim da guerra fria, e passou a ser multipolar com o aparecimento do G7, do G8 e do G20. As ameaças naturais e humanas proliferaram, com as catástrofes naturais a pontuarem a primeira década do século XXI e as armas de destruição massiva a ameaçarem expandir-se a novos países.


Este período da História da Humanidade tornou-se uma Era da incerteza com o colapso das velhas estruturas, históricas do pós-guerra, e dos valores tradicionais que colocaram o Homem face a um paradoxal individualismo em virtude das ameaças globais que emergiram. Esta tendência, que se desencadeou em função de uma Globalização desregulada, gerou uma crise múltipla que desembocou numa mentalidade pessimista que varre a maioria das potências ocidentais, em visível declínio. Com efeito, verifica-se que a Globalização tem despoletado efeitos sociais bastante nocivos, não obstante as inegáveis vantagens que a mesma induziu.

O primeiro exemplo da crise global reside na mundialização da insegurança criada pelo terrorismo global, de que o primeiro acontecimento foi o atentado de Nova Yorque, em 11 de Setembro de 2001, ao edifício do World Trade Center e a edifícios da administração norte-americana em Washington D.C.. Surgiu como suspeito principal Osama Bin Laden, líder da Al-Qaeda, que ameaçou os interesses norte-americanos no mundo. O Presidente norte-americano G.W. Bush lançou de imediato uma guerra ao terrorismo. A escalada internacional de terrorismo prosseguiu com o atentado à estação de comboios da Atocha, em Madrid a 11 de Março de 2004, o que tornou a insegurança um sentimento que se generalizou no mundo do início do século XXI. O alerta dos países face ao terrorismo reforçou as cautelas de segurança internacional sobretudo nos aeroportos e nos locais de embarque e desembarque de pessoas. Apesar destas prevenções ainda sucedeu no Metropolitano de Londres um novo atentado terrorista a 7 de Julho de 2005 que causou dezenas de mortos .

A Globalização, não regulada, tem feito sentir as suas desvantagens ao potenciar as várias crises que na primeira década do século XXI se manifestaram. À crise da segurança mundial esteve associada uma crise ética, que possibilitou a G. W. Bush e a Tony Blair mentirem sobre as armas de destruição massiva, que existiriam no Iraque, para justificar a guerra preventiva que se desencadeou à revelia da autorização do Conselho de Segurança da ONU , que foi muito contestada na Europa continental. A Globalização do comércio e da informação tem permitido espaços clandestinos favoráveis à corrupção, à especulação financeira e ao contrabando de estupefacientes e de armas convencionais e não convencionais. Deste modo, a Globalização padece, actualmente, de uma entidade reguladora que poderia ser a ONU, se tivesse força económica e coerciva, o que não é o caso. Nesta conjuntura de uma Globalização desregulada verifica-se a impossibilidade de uma cabal defesa empírica dos Direitos Humanos, tanto mais que a ONU tem perdido poder e capacidade de acção.

O contexto histórico da Globalização, sem contrapoderes efectivos, foi o terreno fértil para que, num mundo em que as economias de mercado se impuseram, triunfasse um Capitalismo Financeiro, despudorado e afastado da economia real, e uma concomitante ideologia neoliberal (perante a adesão da China e da Europa de Leste à “teologia de mercado”) que fizeram culminar a Humanidade numa violenta crise económica e financeira internacional desde 2008. Com efeito, em Setembro desse ano rebentou a crise financeira dos EUA com a falência do centenário banco Lehman Brothers e da Seguradora AIG . No final de 2008 é preso Bernard Madoff acusado da maior fraude financeira da História devido às mentiras na questão do negócio do “subprime”.

De 2008 a 2010 a crise financeira expandiu-se pelo mundo e gerou uma crise económica global, que afectou, primeiro, as velhas potências históricas (EUA e a União Europeia). Em 2010 começou a crise das dívidas soberanas, com a Grécia a dar o alerta, em Abril, pedindo ajuda ao Fundo Monetário Internacional, em que os países do Ocidente começaram a dar sinais de abrandamento económico em virtude de endividamentos excessivos. Na verdade, o ano de 2010 marcou o culminar da crise do Estado-Providência na Europa (do Modelo Social Europeu) que resultou da disparidade entre o exagerado crescimento das despesas públicas e o insuficiente crescimento económico, agravados pelo decréscimo demográfico Europeu , potenciado pela iníqua competitividade dum sistema internacional em que países respeitadores dos Direitos Humanos competiam em igualdade de circunstâncias com países que os menosprezavam. Ora esta conjuntura dos países ocidentais com elevadas despesas públicas, à custa de endividamentos externos, criou dificuldades de sustentabilidade financeira nos Estados-Providência da Europa, o que levou os partidos de Esquerda no poder a adoptarem políticas neoliberais. Face a esta indesmentível realidade houve uma crise da ideologia social-democrata/socialista democrática que não se soube adaptar em plena coerência com a conjuntura especulativa que perpassou a primeira década do século XXI.

A agressiva administração norte-americana de G.W. Bush imprimiu ao sistema internacional, durante os seus mandatos de Janeiro de 2001 a Janeiro de 2009, uma marca de anomia ética e legal que começou, em Março de 2001, com a retirada dos EUA do Protocolo de Kyoto de 1997 que obrigava os países signatários a reduzirem a emissão de gases de efeito de estufa. Esta anomia ética continuou com a invasão do Iraque, em 20 de Março de 2003, que foi justificada pelo argumento da posse ilegal de armas de destruição massiva da parte do regime de Saddam Hussein, que se revelou um descarado embuste da administração Bush. Assim, dentro desta lógica da acção preventiva se pôde violar os normativos éticos em vigor na comunidade internacional, em conformidade com a ideologia neoconservadora sustentada por Paul Wolfovitz, que facilitou o ambiente radical que tornou possíveis as torturas nas prisões de Abu Ghraib e de Guantánamo. Na realidade, a Presidência de G.W. Bush (2001-2009) favoreceu políticas atentatórias dos Direitos Humanos do ponto de vista ambiental e militar, à revelia do Acordo de Kyoto e das Convenções de Genebra.

Esta década da História da Humanidade (2001-2010) foi caracterizada por importantes alterações climáticas decorrentes, sobretudo, da crescente poluição industrial do nosso mundo. As alterações climáticas têm consistido no aquecimento global e na instabilidade atmosférica que tornam as estações do ano muito atípicas. A par dos fenómenos da exponencial imprevisibilidade climatérica surgem catástrofes naturais, como cheias e secas, mais frequentes, que assolam várias regiões do planeta. Estes factores são reveladores da vulnerabilidade humana, não obstante todo o progresso tecnológico galopante que o mundo tem vivido nos últimos anos, daí o peso que as crenças religiosas continuam a ter num mundo de crescentes incertezas. Por exemplo, em 28 de Agosto de 2005, nos EUA, o furacão “Katrina” devastou grande parte da região de Nova Orleães. No entanto, a imprevisibilidade do nosso mundo está, também, patente na instabilidade tectónica que “prega partidas” ruinosas em muitas partes do mundo. Assim, recordemos que o Tsunami do Oceano Pacífico de 26 de Dezembro de 2004 chamado pelos técnicos de terramoto de Sumatra-Andaman provocou ondas gigantescas, na região, que afectaram o litoral de 14 países e mataram 230 mil pessoas.

Se houve épocas na História da Humanidade em que os Homens, ou alguns povos, se julgaram “deuses”, depreciando o valor da transcendentalidade metafísica das religiões, podemos afirmar que face aos ingentes desafios da Globalização e à crescente frequência das catástrofes naturais urge cultivar os sentimentos de solidariedade colectiva, em prol da defesa efectiva dos Direitos Humanos, e da humildade generosa perante um mundo em crescente complexificação.

Outra linha de força, desta primeira década do século XXI, é a Globalização da informação através dos meios de comunicação social e da Internet e os actos de “pirataria” informática para efeitos de espionagem industrial ou de denúncia de escândalos públicos de actos com coberturas oficiais de determinados Estados. O surgimento do site “Wikileaks”, de Julian Assange, em Dezembro de 2006, é um exemplo dos movimentos de cidadania global que começaram a emergir nesta década da História da Humanidade. Aliás, antes da guerra do Iraque, na Primavera de 2003, salientaram-se na Europa grandes manifestações cívicas de carácter pacifista. Por detrás destes fenómenos esteve o emergir de sociedades da informação que atravessaram todos os países livres nesta Era da Globalização.

Em 20 de Janeiro de 2009 com o começo da Presidência norte-americana de Barack Obama iniciou-se uma nova fase, mais desanuviada, do cenário internacional que foi plasmada na sua frase de propaganda que contagiou a opinião pública mundial: “Yes, we can!” . Com efeito, a sua eleição foi promissora pelo sentido intercultural de ter sido o primeiro mulato a ser Presidente dos EUA, o que galvanizou a comunidade internacional e levou a que lhe atribuíssem, no final do ano, como Património Imaterial de uma Esperança que se abriu ao mundo, o Prémio Nobel da Paz. Aliás, a tensão internacional que existia entre o Irão e os EUA, vinda do mandato da Administração Bush, a propósito da suspeita da corrida iraniana ao armamento nuclear foi reduzida sob os auspícios do Presidente Barack Obama, não obstante tenha havido alguns recuos nesta aproximação diplomática.

Em suma, as linhas de força que atravessaram a primeira década do século XXI (2001-2010) apontam para uma série de grandes desafios que a Humanidade tem de enfrentar, nesta conjuntura da Globalização desregulada, para se salvaguardar uma intransigente defesa dos Direitos Humanos a nível planetário. Só com um Espírito Humanista, moldado por líderes como Barack Obama, será possível ultrapassar os vícios tecnocráticos em que as sociedades oligárquicas do início deste século se deixaram enredar. Assim, urge um Espírito Universalista que infunda um cunho Ético às relações da comunidade internacional transformando o cerne da Globalização .

Nuno Sotto Mayor Ferrão
Publicado originalmente, com documentos complementares, em Crónicas do Professor Ferrão

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Portugal, Camões e a universalidade da Alma Lusófona

“Perdigão perdeu a pena

Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha.

Perdigão que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.

Quis voar a uma alta torre,
Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha.”

Luís de Camões

A 10 de Junho celebra-se, anualmente, o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. O poema “Perdigão perdeu a pena”, aqui citado, representa de forma satírica o pessimismo enraizado na índole portuguesa. Este dia foi escolhido para prestar preito a Portugal por vários motivos: é o dia em que se assinala a morte do poeta, é o poeta épico que exalta as glórias da época áurea dos Descobrimentos Marítimos Portugueses, é o poeta que consta terá dito ao ver a Pátria desfalecer perante a crise dinástica que abriu as portas à União Ibérica: “Morro com a Pátria”.

O poeta Luís Vaz de Camões (1524-1580) é um escritor de dimensão universal, porque canta os grandes temas da condição humana (o amor, a mudança, o envelhecimento, etc) e se fez ouvir além fronteiras desde a sua morte. A sua obra-prima “Os Lusíadas” evoca a epopeia das Descobertas Marítimas que “abriram novos mundos ao mundo”, sendo nesta medida o cantor da Globalização iniciada pelos povos ibéricos. A universalidade do escritor mede-se, ainda, no ritmo cadente e melodioso dos seus poemas que encantam vários cantos da Humanidade, onde chega pela via das traduções.

O Dia de Portugal começou a ser celebrado durante o Estado Novo, mas já antes no fim do regime Monárquico e durante a 1ª República, o dia da morte de Camões, e a sua efeméride, passou a conter um eivado e exaltante sentimento patriótico. Foi, aliás, a comemoração do tricentenário da sua morte, em 1880, em Portugal promovida por figuras cimeiras da História do país, como Luciano Cordeiro ou Teófilo Braga, que permitiu a intensificação da propaganda dos ideais Republicanos por associá-los à ideia da sua inevitabilidade política para o ressurgimento da pátria, porquanto a ideia da decadência de Portugal tinha transcorrido grande parte do século XIX.

O Brasil também se associou ao tricentenário da morte de Camões com a inauguração de uma Exposição na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, presidida pelo Imperador D. Pedro II, com o início da construção do Gabinete Português de Leitura, com a realização de um espectáculo de música, teatro e recitação em homenagem do poeta no Teatro D. Pedro II e com uma regata na baía de Botafogo em que os vencedores receberam exemplares d’ “Os Lusíadas”. O espírito lusófono que portugueses e brasileiros sentiram nesta obra-prima, que exalta o encontro de povos e culturas, deu o mote para se irmanarem num ambiente de uma mútua aculturação, apesar da separação política.

No dia de Portugal, a 10 de Junho de 2011, o Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, agraciou com as ordens honoríficas várias dezenas de personalidades que se destacaram na sociedade portuguesa em várias áreas. Maria Fernanda Rollo historiadora, professora universitária e vice-presidente do Instituto de História Contemporânea, da Universidade Nova de Lisboa, recebeu a Comenda do Infante Dom Henrique pelos relevantes serviços culturais prestados como investigadora e divulgadora da História de Portugal Contemporâneo. Foi coordenadora, conjuntamente com o historiador Fernando Rosas, da obra colectiva “História da Primeira República Portuguesa”e fez parte da Comissão Nacional para a Comemoração do Centenário da República. Tem estado ligada aos estudos de História económica e da engenharia nacional e à compreensão das dinâmicas nacionais nas relações internacionais do pós-guerra.

Nuno Sotto Mayor Ferrão
Publicado originalmente com um documento complementar em: Crónicas do Professor Ferrão

domingo, 15 de maio de 2011

Um Manifesto de cidadania activa, para os tempos da Globalização, de uma personalidade ímpar da História Universal - Stéphane Hessel "Indignai-vos!"

No Auditório José Gomes Mota, da Fundação Mário Soares, foi apresentado o livro “Indignai-vos!”, de Stéphane Hessel, no dia 3 de Maio de 2011, com a presença do autor, do Dr. Mário Soares, do representante da Editora Objectiva e do Embaixador Francês em Portugal. O Dr. Mário Soares fez o prefácio desta edição e apresentou, nesta sessão, o autor ao público presente.

Este livro, agora traduzido para português, é um “best-seller” em França e no mundo pelas tiragens impressionantes e pela expansão internacional da sua tradução em mais de vinte línguas. O prefaciador, deste livro, diz-nos que partilha muitas convicções com o autor, designadamente o diagnóstico de que a crise Europeia torna premente a necessidade de mudar de paradigma político de desenvolvimento (neo-liberal) – de um modelo monetário num modelo global de intervenção internacional, da União Europeia, nos vários níveis de acção que co-responsabilize todos os seus Estados-Membros.

Stéphane Hessel neste seu apelo à indignação cívica, dos cidadãos do mundo, explicita os seus fundamentos Éticos e vivenciais, que assentam no Programa da Resistência Francesa à qual pertenceu ao lado do General De Gaulle, que se moldam à actual crise política internacional. O autor critica o facto dos grandes poderes económicos actuais tentarem por várias vias domesticar o espírito crítico dos cidadãos, deturpando a base das democracias. Como socialista, o autor frisa que a actual falta de recursos dos Estados decorre da desigual distribuição de rendimentos em que os oligopólios se recusam à prática da generosidade social. Deste modo, este entusiasmado cidadão, de 93 anos, apela para que nos indignemos, como o fizeram os heróis da Resistência Francesa contra o Nazismo, também contra a actual ditadura dos mercados financeiros. A sua postura, de idealista pragmático, faz com que apele ao Direito à indignação como um imperativo Ético em contextos sociais pouco respeitadores dos Direitos Humanos.

A sua visão Hegeliana da História imprime um sentido teleológico ao caminho da Humanidade em direcção à liberdade humana. Considera, por isso, que, não obstante a nossa sensação de pequenez face à complexidade do mundo actual, Globalizado, o pior inimigo do Homem “de bom coração” é a indiferença cívica que aniquila o Direito democrático à indignação e à militância transformadora das realidades que nos rodeiam. Como dizia, no tempo de G.W. Bush, um editorialista crítico da administração norte-americana, num periódico de Nova Yorque, só a emergência de uma nova potência mundial – a cidadania activa global - poderá pôr cobro às crescentes injustiças da Globalização. Na verdade, Stéphane Hessel crê no poder das Organizações Não Governamentais e na eficácia destas em concertação com a acção em rede dos cidadãos e dos meios de comunicação social para poder gerar transformações empíricas.

O autor tributário de várias correntes filosóficas contemporâneas, do Existencialismo de Jean-Paul Sartre, da Fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty e do Idealismo Hegeliano, é empurrado para a entrada na História Universal com a sua oposição activa contra o Nazismo, numa atitude declarada de Idealista Pragmático. Esta sua experiência da guerra leva-o a pugnar por um exercício de uma cidadania activa, não-violenta, que suscite soluções de esperança para os conflitos duradoiros das nações e das relações internacionais. É, nessa medida, que nos deixa o seu exemplo concreto da actual indignação que nutre contra o belicismo Israelita exercido sobre os Palestinianos, uma vez que os sionistas se esqueceram dos valores subjacentes aos Direitos Humanos que lhes deram a possibilidade de surgirem como Estado-Nação em 1948.

Na sua lúcida visão e corajosa intervenção cívica, que consubstancia uma indesmentível autoridade moral, a utopia é a força motriz transformadora do mundo, pois sem esta não há esperança e a indiferença instala-se inexoravelmente. Stéphane Hessel diz-nos, neste livro indispensável, que se não transcendermos o Materialismo desta Globalização não chegaremos ao primado das questões Éticas que se impõem como fulcrais para a beleza da própria Humanidade, no sentido de realizar as suas últimas finalidades, nesta sua pertinente leitura de Filosofia da História. Em suma, o espírito de resistência é, na sua perspectiva de aprofundada compreensão da natureza humana, potencialmente criador de uma esperança revivificante que mobilize e galvanize os indivíduos e as sociedades. É, por esta razão, se tantas outras não houvessem, que recomendo a leitura deste fascinante Manifesto cívico.

O testemunho da sua vida, rica em posições humanitárias, tendo sido preso pelos Nazis, pertencido à Comissão que redigiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, tendo sustentado no pós-guerra o direito da Argélia à autodeterminação, elucida este Manifesto que apela à ultrapassagem de uma apatia cívica, face à anomia da conjuntura internacional, sem se incorrer em posições extremadas.

Nuno Sotto Mayor Ferrão

Publicado originalmente com documentos acrescidos em: Crónicas do Professor Ferrão

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Fórum Económico Mundial em Davos e os paradoxos da presente Globalização

O Fórum Económico Mundial que se realizou em Davos, na Suíça, de 26 a 30 de Janeiro revelou a confiança dos participantes no crescimento económico dos países emergentes. Não obstante, debateram-se, também, os múltiplos constrangimentos mundiais, desta nova configuração geoeconómica internacional, em particular: o abrandamento do progresso económico Europeu e a crise da dívida soberana da zona Euro, a tendência perigosa para o aumento dos bens alimentares geradores de crispações sociais como tem sido visível na Grécia e em alguns países do Norte de África (designadamente no Egipto na luta contra o opressivo regime de Hosni Mubarak ).

Esta nova estrutura económica mundial procedente da Globalização e das políticas de desregulamentação dos mercados financeiros originaram a grande crise económica de 2008 e tem gerado um fenómeno paradoxal: uma diminuição das disparidades económicas entre países de grande dimensão territorial, por acção da revolução tecnológica e da capacidade demográfica, e um aumento das desigualdades sociais internas com o crescente fosso entre ricos e pobres e a gritante diminuição do grupo dos “remediados”.

Em 1970 iniciou-se o primeiro Fórum Económico Mundial criado pelo Professor Klaus Schwab. O novo panorama mundial em termos de geoestratégia económica é dominado pela transferência dos poderes económicos mundiais do Hemisfério Ocidental para o Oriental (China, Índia, Paquistão, Tailândia, etc) e do Hemisfério Norte para o Sul (Brasil, México, Chile, etc).

As diversas sessões deste Fórum que reuniu 2500 pessoas (gestores, políticos, empresários, banqueiros, etc) abordaram temas quentes da nova Era Internacional e tivemos oportunidade de assistir ao discurso dos mais importantes líderes Europeus (David Cameron, Nicolas Sarkozy, Ângela Merkel, Jean Claude-Trichet, etc) e de muitos líderes dos países emergentes. Para inculcar, na opinião pública mundial, a ideia do universalismo deste Fórum estiveram presentes líderes religiosos, culturais e membros de Organizações Não Governamentais.

Na verdade, o declínio Civilizacional Europeu resultou dos nacionalismos exacerbados que se traduziram nas duas Guerras Mundiais do século XX e do actual insucesso de uma Europa coesa, incapaz de recompor os sistemas de Segurança Social e que investiu numa estratégia precipitada de desmesurado alargamento geográfico dos confins do espaço da União Europeia. O Fórum Económico Mundial reflectiu sobre a necessidade de estabelecer novas regras perante um espaço económico internacional mais vasto e mais inseguro pela sua crescente complexidade e pela retumbante crise financeira de 2008.

Esta nova dinâmica económica, de esteios éticos titubeantes, tem potenciado crescentes desigualdades sociais, dentro dos países desenvolvidos entre ricos e “remediados” (classe média) e entre países ricos e países pobres como tem sido denunciado pelos relatórios das Nações Unidas, constituindo um paradoxo iniludível da presente Globalização. Não espanta que esta dicotomia mundial entre o aparente progresso económico e o significativo retrocesso social tenha reforçado o movimento de Alter-Globalização e a crescente importância do Fórum Social Mundial que tem sido especialmente apreciado pelas populações das potências emergentes como o Brasil ou a Índia.

Nuno Sotto Mayor Ferrão

Publicado originalmente, com documentos acrescidos, no blogue: Crónicas do Professor Ferrão

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Tony Judt (1948-2010), breve recensão crítica do livro "Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos"

Tony Judt (1948-2010) foi um reputado historiador, escritor e professor universitário britânico que leccionou na Grã-Bretanha e nos EUA. Foi galardoado com vários Prémios nos últimos anos: finalista do Prémio Pulitzer em 2006, vencedor dos Prémios (Hannah Arendt em 2007, Livro Europeu em 2008 e Menção Honorária George Orwell em 2009). O seu livro mais emblemático intitula-se Pós-Guerra – Uma História da Europa desde 1945, que já se tornou um clássico da historiografia europeia. Veio a falecer em Agosto de 2010 com uma esclerose lateral amiotrófica. Tornou-se um pensador das implicações da actual Globalização e um crítico contundente das posições de Israel e da política belicista dos EUA levada a cabo por G. W. Bush. Em 1996 criou na Universidade de Nova York um centro de estudos europeus designado “Remarque Institute”.

Este pequeno, mas substantivo, livro[1] procura responder a quatro grandes questões que se revelam de enorme actualidade:

  • Que factores históricos levaram à crise do Estado-Providência dos países Ocidentais nos últimos 35 anos (1975-2010)?
  • Que lição histórica nos legou a mega Crise do capitalismo industrial de 1929?
  • Por que razão as sociedades actuais dos países ocidentais se sentem descontentes?
  • Como podem os países Ocidentais enfrentar os crescentes problemas socioeconómicos que os afectam?

Esta pertinente reflexão política, de base histórica, tem como objectivos centrais despertar a consciência crítica e cívica dos nossos prezados concidadãos ocidentais, que vivem numa gritante indiferença ideológica, por se terem deixado iludir pelas virtualidades do mercado livre (teologia de mercado[2]) que conduziu à redução dos mecanismos de intervenção do Estado.

Efectivamente, após 30 anos milagrosos, de prosperidade económica e de garantias de segurança, dados pelos Estados-Providência aos cidadãos ocidentais (1945-1975) a Europa e os EUA iniciaram uma inversão ideológica que desembocou numa crise múltipla, já no período de transição do século XX para o XXI, geradora de um mal-estar colectivo destas sociedades. Este transviado caminho começou com a liberalização económica extrema iniciada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, influenciados por ideólogos famosos como Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Milton Friedman, por escolas de gestão que proliferaram, que implementaram políticas neoliberais, conducentes à desregulamentação da economia e das finanças internacionais, com o pressuposto de que o individualismo geraria concorrência saudável e eficiência em muitos serviços prestados ao público.

Esta opção ideológica permitiu a onda de privatizações que varreu grande parte da Europa. Esta fase histórica foi impulsionada pela queda do muro de Berlim (1989) e dos regimes comunistas no leste do “velho continente” que deu a sensação a alguns, que subscreveram a tese de Francis Fukuyama[3], que o rumo político da História era uno para toda a Humanidade (“fim da História”). Contudo, com a implosão do capitalismo financeiro, em 2008, a opinião pública mundial percebeu a falta de esteios Éticos por parte dos Estados que deviam ter sido mais interventivos e vigilantes. Depois dos “calafrios” do cataclismo do sistema financeiro norte-americano, Henry Paulson, Secretário de Estado do Tesouro de G. W. Bush pediu autorização Estatal para injecções de capitais no periclitante sistema financeiro. Este ponto de chegada (a crise financeira de 2008) resultou da irresponsabilidade política dos dirigentes ocidentais na transição do século XIX para o XX.

Esta actual situação pantanosa das finanças internacionais, resultante da liberdade absoluta que foi dada aos especuladores e investidores privados, procedeu dos mitos impostos pelos defensores do Neoliberalismo, designadamente dos princípios seguintes encarados como dogmas: o culto das privatizações e do sector privado como favorável à eficiência e à qualidade dos serviços; a ilusão de que mercado livre iria permitir o crescimento ilimitado das economias; a virtude da desregulamentação do sector financeiro e de um Estado reduzido à dimensão mínima. Este credo Neoliberal foi mais absorvido pelos EUA, que acabaram por sofrer terrivelmente com a implosão do sistema financeiro, uma vez que estava minado por especuladores sem escrúpulos.

Esta crise actual, que se expandiu globalmente a outras regiões e a outros sectores, traduz a degradação Ética que colheu a sua seiva no sistema da competição selvagem que se instalou com os Governos de matriz neoliberal. Por exemplo, a Irlanda, que seguiu de perto os modelos britânico e norte-americano, foi considerada durante muitos anos como um modelo a imitar por várias nações que se queriam alçar nos “rankings” de crescimento económico, viu o seu sistema financeiro entrar em ruptura.

O economicismo como estratégia política tem degradado a Civilização Ocidental, que naufraga à vista de todos os honrados cidadãos, porque na visão de Tony Judt tem faltado aos Governantes um pensamento político de fundo e as opiniões públicas não despertaram ainda para esta situação de calamidade social com taxas de desemprego exorbitantes, em vários países, e com uma visível degradação do nível de vida das classes médias. Não obstante, esta apatia, das opiniões públicas, tem havido vários alertas de sumidades para a desconfiança que se deve manter perante o sistema financeiro, e os seus agentes, pois as verdades proclamadas contaminaram a credibilidade do capitalismo sem peias que foi fustigado por mentes conscienciosas de diferentes convicções ideológicas (Papa Bento XVI[4], Dr. Mário Soares[5], Professor e Pensador Vitorino Magalhães Godinho[6], o Historiador e Pensador Tony Judt, etc).

Como soluções de emergência, para obstaculizar as bancarrotas nacionais, os Estados, anteriormente tão odiados, foram em socorro dos bancos e das empresas injectando dinheiro dos contribuintes nesses sorvedouros resultantes da imoderada especulação e do lucro fácil que atraiu incautos cidadãos. Neste contexto, generalizado, de insucesso das políticas neoliberais as teses Keynesianas (economista John Maynard Keynes[7]) foram reabilitadas, porque importava fortalecer os Estados e tornar os Governos mais intervencionistas nas economias.

Tony Judt, com a acutilância da sua argumentação histórica, denuncia neste excelente ensaio que as rupturas do Estado-Providência e dos Sistemas de Segurança Social não se devem só ao factor da quebra demográfica Europeia, como os políticos e muitos comentadores gostam de sublinhar, mas fundamentalmente ao desmantelamento do Estado e dos seus Bens Patrimoniais por via das opções neoliberais. Com efeito, na sua percepção, a social-democracia esboroou-se dos cenários políticos das últimas décadas com o fenómeno das privatizações que fragilizou os Estados, com o processo da internacionalização das economias nacionais (vulgo Globalização económica) que facilitou a fuga de capitais aos mecanismos de tributação, por via dos paraísos fiscais, e com a crise demográfica procedente do envelhecimento da população Europeia.

Na sua vasta lucidez, o autor não evita a questão da falta de sustentabilidade económica dos Estados-Providência, mas afirma que tal possibilidade implica uma tributação elevada, geral ou selectiva, dos contribuintes e uma redefinição dos Serviços Básicos do Estado Social. Apenas evita falar em socialismo democrático por uma razão de convicção ideológica. Por outro lado, apresenta as emergentes potências mundiais (China e Índia) como países em contra ciclo económico, pelos níveis acelerados de crescimento dos últimos anos, que apenas proporcionam riqueza a uma minoria das suas sociedades.

Importa reter, também, algumas lições da História Contemporânea que Tony Judt como um reputado historiador nos deixa. Na realidade, os 30 anos do pós-guerra de 1945 a 1975 permitiram aos países mais desenvolvidos do Ocidente erguer Estados-Providência, ou no mínimo edificar um Estado Social de protecção dos cidadãos mais desfavorecidos, que contribuíram para diminuir as desigualdades sociais internas em várias nações Europeias devido às orientações social-democratas. Esta consciência construtiva dos Estadistas Europeus do pós-guerra adveio da recordação histórica, gravada na memória colectiva, da Grande Depressão de 1929 e das suas nefastas consequências sociais, políticas e militares (desemprego gritante, ascensão das ditaduras de extrema direita e eclosão da Segunda Guerra Mundial), tendo levado os Governos do Ocidente ao Planeamento, à Regulação e à Intervenção em todos os aspectos da vida da sociedade e da economia, embora com um sacralizado respeito pelos Direitos e Liberdades dos cidadãos.

De facto, a seguir à Segunda Guerra Mundial houve um consenso político-ideológico que congregou economistas, políticos, analistas e cidadãos em torno da necessidade de aceitar tributações elevadas para suprir as exigências das Despesas Públicas com os Serviços Sociais, o que se ficou a dever às lições da absurda beligerância das nações Europeias. No entanto, o predomínio da tendência individualista e as iniciativas políticas da “Dama de Ferro” e do “Cowboy”[8], dos filmes Western, vieram a mudar o paradigma e a mentalidade política prevalecente nos anos 80, 90 e nesta primeira década do século XXI com os ruinosos resultados que hoje são visíveis.

A solução para o futuro, na visão deste esclarecido e prudente historiador, está na reinvenção de um novo paradigma, sem dogmas, que implique o reencontro com os princípios da social-democracia e do socialismo democrático para que a Civilização Ocidental possa caminhar para a superação dos dilemas que agora a afligem. Acredita, pois, no papel do Estado e do sector público para a viabilização do Bem Comum e de uma Sociedade mais justa. Tony Judt lembra-nos que é nos países que adoptaram a social-democracia como paradigma político (a Suécia, a Finlândia, a Noruega, a Dinamarca, a Holanda, etc) que se manifesta uma maior justiça social, um maior bem-estar dos cidadãos com uma riqueza mais bem distribuída constituindo a argamassa que salvaguarda a coesão das próprias sociedades. Sem este indispensável investimento estratégico na revitalização, exequível, dos Estados-Providência continuaremos a viver na conjuntura internacional de uma Globalização, egoísta, que tem conduzido às crescentes desigualdades sociais internas e ao flagelo do desemprego em larga escala.

Nuno Sotto Mayor Ferrão

Publicado originalmente e com documentos complementares em: Crónicas do Professor Ferrão


[1] Tony Judt, Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos, Lisboa, Edições 70, 2010.

[2] Adriano Moreira, “A perspectiva da Globalização do passivo”, in Estudos da Conjuntura Internacional, Lisboa, 2000, p. 296.

[3] Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, Lisboa, Edições Gradiva, 1992.

[4] Bento XVI, A Caridade na Verdade – Encíclica, Prior Velho, Edições Paulinas, 2009.

[5] Mário Soares, Elogio da Política, Lisboa, Sextante Editora, 2009.

[6] Vitorino Magalhães Godinho, Os Problemas de Portugal – Os Problemas da Europa, Lisboa, Edições Colibri, 2010.

[7] John Maynard Keynes, Teoria geral do Emprego, do Juro e da Moeda, Lisboa, Relógio de Água, 2010.

[8] Margaret Thatcher ficou assim conhecida nos meios de comunicação social dos anos 80 e 90 pela sua intransigência e Ronald Reagan já era conhecido, antes de exercer a Presidência dos EUA, como um actor de filmes de cowboys.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Cimeira da Nato (OTAN), em Lisboa - Breves considerações históricas e geopolíticas

A 19 e 20 de Novembro realizou-se a Cimeira da Nato em Lisboa. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO) foi criada em 1949 no contexto inicial da guerra fria entre as duas superpotências (EUA-URSS), tendo Portugal ingressado no período do Estado Novo, de forma imediata nesta Aliança de defesa militar, pela sua política geoestratégica de protecção das suas colónias no conturbado ambiente anticolonialista do pós-guerra. Constituiu-se, assim, como uma aliança militar anti-soviética em pleno período de corrida ao armamento e de tensão entre os dois blocos rivais, capitalista e comunista. Aderiram à Nato os países da América do Norte e da Europa Ocidental, integrantes do modelo capitalista.

Após a queda do muro de Berlim (1989) e a desintegração da URSS (1991) o mundo deixou de ser bipolar, passando a ser unipolar por uns anos, mas com as incapacidades político-militares reveladas pelos EUA tornou-se evidente que o mundo passou a ser, na Era da Globalização, multipolar e, como prova disso, sucedeu o alargamento do G7 para G8 e, posteriormente, para G20. Com o trágico acontecimento de 11 de Setembro de 2001, o mundo aprendeu a viver nas incertezas, de um planeta demasiado intercomunicante, que o transformou numa pequena aldeia de grandes vulnerabilidades.


Assim, neste contexto do início do século XXI, emergem novas ameaças a que a Nato, superiormente representada pelo Conselho do Atlântico Norte, procura dar uma resposta eficaz. Das ameaças à segurança dos países membros sobressaem: o perigo terrorista, a eventualidade de uma guerra clássica, a proliferação de armas de destruição maciça (designadamente das bombas atómicas nas mãos de vários países), o risco de uma guerra química ou biológica e o vazio institucional de alguns países que se tornaram “antros” de malfeitores. Por outro lado, a incapacidade militar da Organização das Nações Unidas (ONU) de fazerem prevalecer as normas jurídicas internacionais procedentes do Conselho de Segurança tornou a Nato um instrumento fundamental da segurança colectiva da Civilização Ocidental.


Perante estas novas ameaças foi revisto o novo conceito estratégico de defesa dos países-membros do Conselho do Atlântico Norte. Quais são, então, os novos inimigos dos países ocidentalizados? No plano da segurança colectiva, os actores hostis parecem ser os guerrilheiros do terror, que atacam as populações civis indefesas, dos países economicamente mais prósperos ou mais interventivos no plano da segurança colectiva Global. Os países sem Estado, como a Somália e o Afeganistão em reconstrução, entre outros, constituem motivo de profunda preocupação, porquanto grupos e indivíduos, aí entrincheirados, fornecem cobertura a actividades criminosas para a segurança internacional, respectivamente com a pirataria no oceano Índico e com o terrorismo de escala planetária.


A necessidade de gerir de forma racional os recursos militares da Nato, face à presente crise económica mundial e aos imparáveis gastos militares, exige, nas palavras do Secretário-Geral da Nato, Anders Fogh Rasmussen, a reestruturação das cadeias de comando dos quartéis-generais da organização. Ou seja, a lógica desta reestruturação passa por uma reconfiguração das estruturas institucionais em curso, no sentido de as tornar mais leves, reduzindo gastos financeiros, sem perda de capacidade operativa das suas forças responderem com eficácia às novas ameaças emergentes nesta conjuntura da Globalização.


Portugal possuiu, actualmente, contingentes militares integrados nas operações da Nato no Kosovo e no Afeganistão. Aliás, em Novembro de 2005 morreu o militar português João Paulo Roma Pereira, do Alandroal, nas operações de segurança no Afeganistão num serviço de grande dignidade prestado à Pátria e à Humanidade. A crise económica internacional constitui uma pressão complementar para uma eventual retirada, faseada, das forças da Nato deste país. Houve ainda um outro ponto informal da agenda desta Cimeira que foi o debate sobre o escudo antimíssil a criar como protecção dos países-membros.


A Nato e a Rússia estão em processo de reaproximação, depois da queda do figurino político da Europa de leste, resultante da guerra fria, e da integração destes países na União Europeia, daí a sessão de trabalhos que se realizou entre os responsáveis políticos do Conselho do Atlântico Norte e os responsáveis Russos. A Federação Russa sente necessidade de aproximação ao Ocidente devido à insegurança interna que lhe causa o terrorismo checheno e as organizações clandestinas que subsistem no país devido ao mercado negro.


Perante esta Cimeira internacional, e o impacto mediático que teve, os meios de segurança interna foram reforçados na vigilância e na monitorização da circulação aérea, naval e terrestre no território nacional. Nesta medida, foi suspenso por alguns dias o acordo de Schengen, de liberdade de circulação de pessoas da União Europeia, e foi montado por todo o país um sistema de controlo fronteiriço de indivíduos. Este sistema de prevenção foi montado, porque se conhecem os distúrbios que algumas Manifestações, mais aguerridas, habitualmente causam e se acautelaram eventuais actos indesejáveis.


Nuno Sotto Mayor Ferrão

Publicado originalmente em Crónicas do Professor Ferrão

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Eco-Socialismo Cristão: uma doutrina pertinente, em debate, para as crises do século XXI

Num debate aberto, sobre a figura histórico-religiosa de São Paulo, o Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa[1] lançou um desafio aos quadrantes ideológicos de “Esquerda”, da sociedade portuguesa, de reflectirem sobre a possibilidade de se compaginar, sem complexos e sem preconceitos, uma visão política de “Esquerda” com uma crença cristã, neste início do século XXI. Aceitei este repto, a partir das questões que lhe coloquei, como forma de pensar, e de colocar em dúvida, algumas ideias peregrinas da “Esquerda” portuguesa.

Na realidade, a História ensina-nos que desde o século XIX, no contexto de crescimento das sociedades industriais, se manifestaram correntes do Socialismo Cristão. Claude-Henri Saint-Simon (1760-1825) foi um dos percursores desta simbiose doutrinária, dado que se afirmou como um dos mentores do socialismo utópico ao conceber uma sociedade ideal, baseada em princípios justos de base cristã, por oposição à existente sociedade proto-industrial. Com efeito, mediante o desenvolvimento da industrialização, nas maiores potências mundiais, a Igreja Católica passou a percepcionar a problemática das novas questões sociais.

É nesta conjuntura, económico-social, que o Catolicismo explicita as preocupações sociais que a religião Cristã deve assumir. Em particular, a partir da genésica Encíclica “Rerum Novarum” (1891), do Papa Leão XIII[2], passou a existir uma apurada sensibilidade social que suscitou a, posterior, formação de um corpo de princípios, intitulado Doutrina Social da Igreja, que tanto influenciou as ideologias políticas de Direita no século XX, em especial dos Partidos Democratas Cristãos Europeus.

Em Portugal, na segunda metade do século XX, o Socialismo Cristão marcou presença, não obstante no início deste novo século exista uma subvalorização desta corrente de pensamento político. Na verdade, do movimento leigo da “Acção Católica” saíram alguns líderes do MDP/CDE e da Juventude Operária Católica que se afirmaram como representantes desta tendência doutrinária. Por seu turno, no mundo, na década de 1970, começou a destacar-se a teologia de libertação, que configura algum paralelismo ideológico com o Socialismo Cristão. Esta similitude advém desta interpretação do Cristianismo comportar uma preocupação política e religiosa a favor dos excluídos, dos marginalizados e dos desfavorecidos da sociedade. Em particular, esta teologia da libertação, tendo-se desenvolvido em alguns países carenciados da América Latina[3], enfatizou a premente necessidade de se combaterem as diversas “bolsas de pobreza” dos países, e do mundo, de forma a criar sociedades mais justas através dos movimentos de libertação política dos povos economicamente oprimidos.

Como constrangimento mental à expansão da doutrina Socialista-Cristã, em Portugal, há que mencionar a posição conservadora da Igreja Católica. Com efeito, esta instituição e a sociedade portuguesa, contaminadas por uma mentalidade muito tradicionalista, têm resistido a esta doutrina devido aos preconceitos contra o materialismo marxista. Se é certo que, segundo afirmava Karl Marx, “a religião é o ópio do povo” (cito de cor) também, não é menos certo que existe uma diferença abissal entre socialismo democrático, de matriz cristã, e o comunismo na sua expressão totalitária.

A doutrina Eco-Socialista Cristã, que sustento, tem uma perspectiva crítica do panorama social contemporâneo, ao nível dos defeitos do sistema económico vigente e das perniciosas implicações ambientais que este tem acarretado[4]. Na verdade, os valores partilhados por esta doutrina (a generosidade, a solidariedade, a justiça, a liberdade, a sensibilidade pela preservação ecológica, a bondade, etc.) têm-na feito subscrever uma crítica ao capitalismo desregrado[5] que favorece as formas de corrupção e de desigualdade em termos internacionais. Assim, este ponto de vista doutrinário tem denunciado, sugerindo alternativas ético-práticas, a crise ecológica que se tem instalado, no nosso mundo, como perversa consequência do desenfreado capitalismo que o sistema neoliberal tem alimentado[6].

Portanto, na acepção do Eco-Socialismo Cristão só através da restauração do poder dos Estados nacionais e dos supra-Estados internacionais se poderá pôr cobro à impunidade ética a que “a economia de casino” (na feliz expressão usada pelo Dr. Mário Soares) nos tem conduzido.

Em que consiste a doutrina do Eco-Socialismo Cristão? Os ideólogos do Eco-Socialismo têm defendido a necessidade de procurar uma perfeita simbiose entre o Homem e a Natureza, inexistente na actualidade, de forma a garantir a futura sustentabilidade do planeta. Na verdade, as florestas estão a ser devastadas, os oceanos, os rios e o ar estão a ser poluídos, os recursos naturais estão a ser esgotados e o crescimento demográfico global tem sido exorbitante. Nesta medida, há necessidade, como nos diz o Dr. Mário Soares[7], de criar um novo paradigma Civilizacional que seja capaz de reconciliar o Homem e a Natureza e, também, o Homem e a Ética.

Na minha opinião, a solução para superar este impasse Civilizacional passa por aceitar um novo paradigma moldado na doutrina do Eco-Socialismo Cristão, porque a síntese entre o Eco-Socialismo e os valores do Cristianismo permitem conjugar o imprescindível pragmatismo ecológico com um espiritualismo Ético de base teísta[8]. Só, deste modo, a Humanidade poderá virar a página, da sua História, rumo a mundo melhor…

Este caminho doutrinário, em Portugal, está longe de ser trilhado, pelas razões a que atrás aludimos. Todavia, existem exemplos actuais que podem e devem ser encorajadores para os Socialistas Cristãos.

Em primeiro lugar, menciono o caso da conversão católica de Tony Blair. Na realidade, este líder do Partido Trabalhista britânico, após o seu problemático e angustiante desempenho como primeiro-ministro, secundando as decisões belicistas e unilaterais de G.W. Bush, converteu-se posteriormente ao Catolicismo e passou a sustentar em conferências na Yale University a indispensabilidade de interligar a Fé e a Globalização[9], porque compreendeu a profundidade da crise Global (geográfica e multisectorial) em que o mundo se deixou enredar. Em segundo lugar, refiro o exemplo da realidade partidária brasileira em que esta corrente tem efectiva expressão. No Brasil, hoje uma potência mundial em ascensão, existem dois partidos políticos que partilham esta doutrina, que são respectivamente o Partido Social Democrata Cristão e Partido Social Cristão.

Em suma, é pertinente o debate público desta doutrina do Eco-Socialismo Cristão na sociedade portuguesa e no nosso mundo neoliberal, visto que se impõe um renascimento da Ética para que se possam estancar os fenómenos contemporâneos do egoísmo, do individualismo, da corrupção e da profanação ecológica a que esta Globalização desregrada tem votado o nosso planeta. Esta é, pois, uma razão de peso, se outras não houvesse, para que todos os socialistas[10] possam discutir e aprofundar a problemática da interacção entre esta doutrina do Eco-Socialismo Cristão e os dilemas existenciais com que a Humanidade está confrontada!


[1] Como já o referi em anterior crónica, o Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa proferiu uma conferência no auditório da Casa da Cultura da Ericeira, no âmbito das Comemorações dos 2000 anos do nascimento de São Paulo, em Junho de 2009, que suscitou um debate em que tive o grato privilégio de participar.

[2] Bento XVI, Caridade na verdade – carta encíclica, Prior Velho, Edições Paulinas, 2009, p.23.

[3] Leonardo Boff, Jesus Cristo Libertador, Petrópolis, Ed. Vozes, 1976.

[4] Vide Vitorino Magalhães Godinho, Os problemas de Portugal – os problemas da Europa, Lisboa, Edições Colibri, 2010, pp. 141-151.

[5] É interessante notar a convergência do Papa Bento XVI e do Dr. Mário Soares ao nível deste diagnóstico comum do panorama social internacional.

[6] “Crise sistémica”, in Mário Soares, Um mundo em mudança, Lisboa, Edições Temas e Debates Círculo de Leitores, 2009, pp. 85-90.

[7] “Globalização, terrorismo e grande crise”, in Mário Soares, Elogio da Política, Lisboa, Sextante Editora, 2009, pp. 135-152.

[8] Sei que nem todos os pensadores concordarão com esta indispensável interpenetração entre o legado da consciência Eco-Socialista e o legado espiritual do Cristianismo pelo peso das suas formações laicas. É exemplo, desta postura de socialismo laico, a lúcida visão expressa no livro do muito prezado intelectual Vitorino Magalhães Godinho, Os problemas de Portugal – os problemas da Europa, Lisboa, Edições Colibri, 2010, p. 70.

[9] Com este propósito e o de proporcionar um diálogo profícuo entre religiões, neste mundo Global, criou a Tony Blair Faith Foundation.

[10] Vitorino Magalhães Godinho num ensaio de excelente recorte intelectual, a que nos tem habituado, argumenta com muita sagacidade que a liberdade de consciência impõe a libertação da Ética religiosa, e da Ética Católica no caso dos países latinos, no entanto dada a forte iliteracia actual da sociedade portuguesa este pressuposto afigura-se-me contraproducente. Na realidade, esta premissa de uma democracia laica, que o autor defende, parece ser uma crítica à visão intelectual do Papa Bento XVI na encíclica “Caridade na Verdade” publicada em meados de 2009 e esta resposta ensaística aparece, no prelo, precisamente em Outubro desse ano (Vitorino Magalhães Godinho, Os problemas de Portugal – os problemas da Europa, Lisboa, Edições Colibri, 2010, pp. 112-113).


Nuno Sotto Mayor Ferrão
Publicado originalmente no blogue: Crónicas do Professor Ferrão