Na realidade, a História ensina-nos que desde o século XIX, no contexto de crescimento das sociedades industriais, se manifestaram correntes do Socialismo Cristão. Claude-Henri Saint-Simon (1760-1825) foi um dos percursores desta simbiose doutrinária, dado que se afirmou como um dos mentores do socialismo utópico ao conceber uma sociedade ideal, baseada em princípios justos de base cristã, por oposição à existente sociedade proto-industrial. Com efeito, mediante o desenvolvimento da industrialização, nas maiores potências mundiais, a Igreja Católica passou a percepcionar a problemática das novas questões sociais.
É nesta conjuntura, económico-social, que o Catolicismo explicita as preocupações sociais que a religião Cristã deve assumir. Em particular, a partir da genésica Encíclica “Rerum Novarum” (1891), do Papa Leão XIII[2], passou a existir uma apurada sensibilidade social que suscitou a, posterior, formação de um corpo de princípios, intitulado Doutrina Social da Igreja, que tanto influenciou as ideologias políticas de Direita no século XX, em especial dos Partidos Democratas Cristãos Europeus.
Em Portugal, na segunda metade do século XX, o Socialismo Cristão marcou presença, não obstante no início deste novo século exista uma subvalorização desta corrente de pensamento político. Na verdade, do movimento leigo da “Acção Católica” saíram alguns líderes do MDP/CDE e da Juventude Operária Católica que se afirmaram como representantes desta tendência doutrinária. Por seu turno, no mundo, na década de 1970, começou a destacar-se a teologia de libertação, que configura algum paralelismo ideológico com o Socialismo Cristão. Esta similitude advém desta interpretação do Cristianismo comportar uma preocupação política e religiosa a favor dos excluídos, dos marginalizados e dos desfavorecidos da sociedade. Em particular, esta teologia da libertação, tendo-se desenvolvido em alguns países carenciados da América Latina[3], enfatizou a premente necessidade de se combaterem as diversas “bolsas de pobreza” dos países, e do mundo, de forma a criar sociedades mais justas através dos movimentos de libertação política dos povos economicamente oprimidos.
Como constrangimento mental à expansão da doutrina Socialista-Cristã, em Portugal, há que mencionar a posição conservadora da Igreja Católica. Com efeito, esta instituição e a sociedade portuguesa, contaminadas por uma mentalidade muito tradicionalista, têm resistido a esta doutrina devido aos preconceitos contra o materialismo marxista. Se é certo que, segundo afirmava Karl Marx, “a religião é o ópio do povo” (cito de cor) também, não é menos certo que existe uma diferença abissal entre socialismo democrático, de matriz cristã, e o comunismo na sua expressão totalitária.
A doutrina Eco-Socialista Cristã, que sustento, tem uma perspectiva crítica do panorama social contemporâneo, ao nível dos defeitos do sistema económico vigente e das perniciosas implicações ambientais que este tem acarretado[4]. Na verdade, os valores partilhados por esta doutrina (a generosidade, a solidariedade, a justiça, a liberdade, a sensibilidade pela preservação ecológica, a bondade, etc.) têm-na feito subscrever uma crítica ao capitalismo desregrado[5] que favorece as formas de corrupção e de desigualdade em termos internacionais. Assim, este ponto de vista doutrinário tem denunciado, sugerindo alternativas ético-práticas, a crise ecológica que se tem instalado, no nosso mundo, como perversa consequência do desenfreado capitalismo que o sistema neoliberal tem alimentado[6].
Portanto, na acepção do Eco-Socialismo Cristão só através da restauração do poder dos Estados nacionais e dos supra-Estados internacionais se poderá pôr cobro à impunidade ética a que “a economia de casino” (na feliz expressão usada pelo Dr. Mário Soares) nos tem conduzido.
Em que consiste a doutrina do Eco-Socialismo Cristão? Os ideólogos do Eco-Socialismo têm defendido a necessidade de procurar uma perfeita simbiose entre o Homem e a Natureza, inexistente na actualidade, de forma a garantir a futura sustentabilidade do planeta. Na verdade, as florestas estão a ser devastadas, os oceanos, os rios e o ar estão a ser poluídos, os recursos naturais estão a ser esgotados e o crescimento demográfico global tem sido exorbitante. Nesta medida, há necessidade, como nos diz o Dr. Mário Soares[7], de criar um novo paradigma Civilizacional que seja capaz de reconciliar o Homem e a Natureza e, também, o Homem e a Ética.
Na minha opinião, a solução para superar este impasse Civilizacional passa por aceitar um novo paradigma moldado na doutrina do Eco-Socialismo Cristão, porque a síntese entre o Eco-Socialismo e os valores do Cristianismo permitem conjugar o imprescindível pragmatismo ecológico com um espiritualismo Ético de base teísta[8]. Só, deste modo, a Humanidade poderá virar a página, da sua História, rumo a mundo melhor…
Este caminho doutrinário, em Portugal, está longe de ser trilhado, pelas razões a que atrás aludimos. Todavia, existem exemplos actuais que podem e devem ser encorajadores para os Socialistas Cristãos.
Em primeiro lugar, menciono o caso da conversão católica de Tony Blair. Na realidade, este líder do Partido Trabalhista britânico, após o seu problemático e angustiante desempenho como primeiro-ministro, secundando as decisões belicistas e unilaterais de G.W. Bush, converteu-se posteriormente ao Catolicismo e passou a sustentar em conferências na Yale University a indispensabilidade de interligar a Fé e a Globalização[9], porque compreendeu a profundidade da crise Global (geográfica e multisectorial) em que o mundo se deixou enredar. Em segundo lugar, refiro o exemplo da realidade partidária brasileira em que esta corrente tem efectiva expressão. No Brasil, hoje uma potência mundial em ascensão, existem dois partidos políticos que partilham esta doutrina, que são respectivamente o Partido Social Democrata Cristão e Partido Social Cristão.
Em suma, é pertinente o debate público desta doutrina do Eco-Socialismo Cristão na sociedade portuguesa e no nosso mundo neoliberal, visto que se impõe um renascimento da Ética para que se possam estancar os fenómenos contemporâneos do egoísmo, do individualismo, da corrupção e da profanação ecológica a que esta Globalização desregrada tem votado o nosso planeta. Esta é, pois, uma razão de peso, se outras não houvesse, para que todos os socialistas[10] possam discutir e aprofundar a problemática da interacção entre esta doutrina do Eco-Socialismo Cristão e os dilemas existenciais com que a Humanidade está confrontada!
[1] Como já o referi em anterior crónica, o Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa proferiu uma conferência no auditório da Casa da Cultura da Ericeira, no âmbito das Comemorações dos 2000 anos do nascimento de São Paulo, em Junho de 2009, que suscitou um debate em que tive o grato privilégio de participar.
[2] Bento XVI, Caridade na verdade – carta encíclica, Prior Velho, Edições Paulinas, 2009, p.23.
[3] Leonardo Boff, Jesus Cristo Libertador, Petrópolis, Ed. Vozes, 1976.
[4] Vide Vitorino Magalhães Godinho, Os problemas de Portugal – os problemas da Europa, Lisboa, Edições Colibri, 2010, pp. 141-151.
[5] É interessante notar a convergência do Papa Bento XVI e do Dr. Mário Soares ao nível deste diagnóstico comum do panorama social internacional.
[6] “Crise sistémica”, in Mário Soares, Um mundo em mudança, Lisboa, Edições Temas e Debates Círculo de Leitores, 2009, pp. 85-90.
[7] “Globalização, terrorismo e grande crise”, in Mário Soares, Elogio da Política, Lisboa, Sextante Editora, 2009, pp. 135-152.
[8] Sei que nem todos os pensadores concordarão com esta indispensável interpenetração entre o legado da consciência Eco-Socialista e o legado espiritual do Cristianismo pelo peso das suas formações laicas. É exemplo, desta postura de socialismo laico, a lúcida visão expressa no livro do muito prezado intelectual Vitorino Magalhães Godinho, Os problemas de Portugal – os problemas da Europa, Lisboa, Edições Colibri, 2010, p. 70.
[9] Com este propósito e o de proporcionar um diálogo profícuo entre religiões, neste mundo Global, criou a Tony Blair Faith Foundation.
[10] Vitorino Magalhães Godinho num ensaio de excelente recorte intelectual, a que nos tem habituado, argumenta com muita sagacidade que a liberdade de consciência impõe a libertação da Ética religiosa, e da Ética Católica no caso dos países latinos, no entanto dada a forte iliteracia actual da sociedade portuguesa este pressuposto afigura-se-me contraproducente. Na realidade, esta premissa de uma democracia laica, que o autor defende, parece ser uma crítica à visão intelectual do Papa Bento XVI na encíclica “Caridade na Verdade” publicada em meados de 2009 e esta resposta ensaística aparece, no prelo, precisamente em Outubro desse ano (Vitorino Magalhães Godinho, Os problemas de Portugal – os problemas da Europa, Lisboa, Edições Colibri, 2010, pp. 112-113).
Nuno Sotto Mayor Ferrão
Publicado originalmente no blogue: Crónicas do Professor Ferrão
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