As reacções à morte de Saramago, por omissão ou presença, revelaram que se tratava de um homem polémico que não vivia fora deste Mundo. Mas as diferenças entre Espanha e Portugal mostram mais do que isso.
Vamos esquecer a ausência de Cavaco Silva no funeral de Saramago e a sua muito particular forma de ver o cargo que ocupa. Aceitemos uma coisa: que Saramago, como qualquer intelectual que tenha algum interesse, não era consensual.
Não era consensual o seu posicionamento político. Mas era um heterodoxo. Sendo comunista convicto, tanto podia fazer críticas contundentes ao regime cubano como o defender com unhas e dentes. Ia a Israel e não hesitava em dizer o que pensava. Mas não deixava de ir. Discutia a democracia. Era um intelectual empenhado, mas não era um mero instrumento de uma agenda política.
Não era consensual a sua obra. Como escreveu Manuel Gusmão, recontou "a história já contada pelos vencedores" . Foi isso que fez em "Levantado do Chão" e no "Memorial do Convento", transformando os camponeses alentejanos e os servos que construíram o Convento de Mafra (e não os grandes homens) em sujeitos da História, assumindo assim como sua a "tradição dos oprimidos" (Walter Benjamin, citado mais uma vez por Manuel Gusmão). É essa história recontada que está em "O ano da morte de Ricardo Reis" ou na "História do Cerco de Lisboa".
Também refez a história bíblica, que tantos dissabores lhe causou. Como leitor, teria ficado por "O Evangelho segundo Jesus Cristo". Muitos dos seus livros eram "alegorias do presente" - "Ensaio sobre a cegueira", "Ensaio sobre a lucidez" ou "Jangada de Pedra" - ou apenas alegorias das ansiedades humanas de todos os tempos - "O Homem Duplicado" e "As Intermitências da Morte".
Mas à volta de cada um dos livros nasceu quase sempre uma polémica. Por vezes estéril e pobre - foi, na minha opinião, o caso de "Caim" e do "Ensaio sobre a Lucidez" -, outras marcantes e profundas. Não faltou quem visse em cada uma delas apenas a forma, acusando o autor de golpes publicitários, e ignorasse o conteúdo. Seja como for, Saramago e a sua obra nunca estiveram fora do Mundo. E isso causou incómodo. Uma qualidade, portanto.
Não era consensual na sua personalidade. Os seus "Cadernos de Lanzarote" revelam o melhor o pior. Por vezes um homem grande e generoso. Outras, tão mesquinho e mundano como qualquer homem. Ainda assim, nunca chegou, nessa aparente trivialidade, aos calcanhares da "Conta-Corrente" de Vergílio Ferreira, hoje aceite - e bem - como um nome indiscutível da literatura portuguesa.
Não sendo um homem consensual, não o foi também na sua morte. Mas vale a pena perceber as diferenças entre a forma como Portugal e Espanha lidaram com isso.
Em Espanha, o presidente do governo não se ficou pelas obrigações protocolares. Escreveu um belíssimo texto no El Pais sobre o autor. Só que não foi o único. O católico conservador de direita, Mariano Rajoy, também deixou a sua mensagem elogiosa que foi para lá da mera formalidade. O rei manifestou a sua tristeza. Em Lanzarote o povo anónimo dedicou-se a leituras espontâneas da sua obra. Em Lisboa, vários ministros espanhóis, incluindo a número dois do governo, marcaram presença.
Em Portugal, o campo ideológico oposto a Saramago não se fez representar no funeral. Não esteve lá nem Pedro Passos Coelho, nem Paulo Portas. Cavaco Silva fez o que fez e o que fez seria uma impossibilidade em Espanha. Foram ditas frases de circunstância, mas nos fora de debate, na blogosfera e nas caixas de comentários dos jornais desaguaram insultos, ressentimento e mesquinhas acusações de gente que dizendo-se patriota dedica a sua energia a cuspir na sua própria cultura.
Em Espanha, o homem polémico foi incorporado como fazendo parte da cultura espanhola. Como um seu. "Os espanhóis choram hoje Saramago como um dos nossos, porque sempre o sentimos a nosso lado", escreveu Zapatero a Pilar del Rio.
Em Portugal, Saramago foi linha de fronteira e renegado por parte do País. Com o pequeno pormenor do homem em causa ser português, escrever em português e ter regressado na sua morte a terra portuguesa.
A forma como Espanha lida com o que tem, mesmo que o tenha por adopção, e Portugal lida com a sua cultura ajuda a explicar porque uma é uma potência cultural e o outro apenas um país cheio de talentos que acabam, mais tarde ou mais cedo, por partir ou viver próximo da indigência.
Os nossos escritores são tratados como adereço para citações em discursos e os nossos criadores como "subsidiodependentes". Somos um país pequeno, onde toda a gente se conhece. Isso ajuda a explicar a nossa mesquinhez, em que o ressentimento conta mais do que o orgulho. É normal. O que é estranho é que façamos questão de não deixar de ser uma aldeia.
Daniel Oliveira
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