O GATO EMBARCADO
O agente do check in sussurrou de si para si:
– Aqui há gato.
Darwin, apesar de já falar um português razoável, desconhecia a maior parte dos provérbios e dos ditos populares. Reagiu como um cavalheiro:
– Como diz?
O agente fez questão de ser tão cavalheiro quanto o passageiro:
– Importa-se de abrir a mala, por favor?
Darwin prontificou-se:
– Claro.
Dentro da bagagem, entre um par de peças de roupa e muitos livros e muitos cadernos, estava um gato.
O agente substituiu o tom cavalheiro por uma suave ironia:
– Devo dizer que o seu gato é bonito. No entanto, a companhia não assume transporte de animais de estimação.
Darwin exibiu um molho de notas:
– Eu pago o extra. Quanto é?
O agente, amargurado pelos anos e anos a discutir com passageiros, fez questão de pôr logo os pontos nos is:
– Não é uma questão de dinheiro.
Antes que ao passageiro ocorresse outra justificação, insistiu:
– Nem do nome do senhor.
Darwin estava espantado:
– Sabe quem sou eu?
Na verdade, o agente só conhecia o nome. Vagamente. Não o conseguia associar a nada em concreto. Ainda assim, tentou adivinhar:
– O senhor é autor de livros de auto-ajuda.
Agora foi Darwin que trocou o cavalheirismo pela ironia:
– Já catalogaram A Origem das Espécies de muita coisa. Por que não de livro de auto-ajuda?
O agente mostrou-se impotente:
– Entenda que não posso mesmo ajudá-lo.
Darwin entendeu que não tinha mais a fazer ao balcão do check in. Entendeu também que, por mais inteligente que fosse o amigo que o recebera em Lisboa, não voltaria a seguir os seus conselhos quanto a voar em companhias aéreas low cost.
Comprado o novo bilhete para Londres, ou os novos bilhetes – já que esta companhia aceitava não só o passageiro Charles Darwin como o seu gato – o cientista saiu do aeroporto da Portela e tomou um táxi.
O taxista, ao ver que acabara de entrar um turista, testou o quanto de tolice podia haver nele:
– Vem visitar o velhote das Conversas Vadias?
Darwin tinha a certeza que estava a ser submetido a um teste. Confiante, confirmou:
– Exacto. O filósofo Agostinho da Silva.
O taxista não tentou mais prolongar o trajecto – nem um minuto. No banco de trás, iluminados pela luz fulgurante de Lisboa, Darwin e o gato descansavam como só os livres-pensadores podem-se dar ao divino direito de descansar.
Vitor Vicente
Publicado em Só à noite os gatos são pardos, Cantinho do Tareco, Dezembro de 2009.
1 comentário:
Sem dúvida, teriam os dois uma boa conversa.
Abraço MIL.
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