No entanto, caro António Trabulo, não me leve a mal mas não o queria no Panteão; queria-o sossegado no cemitério de pedra aonde o acaso o deixou descansar, perto das terras que os seus olhos gastos viram pela última vez. E não, não é bairrismo, embora pense muitas vezes - acontece-me passar na Rua da Rosa, em Lisboa, junto à casa decrépita que o viu nascer - como Camilo é igual ao granito escuro desse Norte que também é meu.
Não é bairrismo; é que não gosto lá muito, ou mesmo nada, da ideia de um Panteão.
Há três maneiras de servir a Pátria: uma é identificando-se com ela, que é o que justifica ou injustifica os reis; outra é oferecendo-se a ela, que é o que fazem os guerreiros; outra ainda é simplesmente vivendo, que é o que está ao alcance de todos nós.
Onde esteja o corpo morto de um rei não precisa de o ir buscar a Pátria, porque aí a Pátria está inteira e quieta; ressalvo aqueles que repousaram em terra estrangeira (mas não dizia Vieira "para nascer, Portugal; para morrer, o mundo todo..."?), e essa foi até a sina do nosso primeiro chefe o Conde Henrique talvez da Borgonha que morreu em Astorga de Leão e só depois se veio a Braga, aonde está; mas se um rei morreu em Portugal é Portugal que vai ter com ele e não o contrário: Afonso Henriques em Coimbra, Dinis em Odivelas, outros em Alcobaça ou na Batalha.
Onde esteja um guerreiro é coisa bem diferente, e por isso quando um soldado morre na guerra (ou fica cativo numa guerra) é importante ir buscá-lo porque sem ele nos incompletamos.
Mas aonde esteja o corpo de um homem - ah, e para viver não basta nascer, como para andar morto não é preciso ter morrido - deixemo-lo repousar, e vele só a Pátria que ninguém o perturbe. As voltas que a morte nos dá são quase sempre voltas bem feitas.
A ideia de um "Panteão" foi inventada na Revolução Francesa, e não por acaso dessacralizando uma igreja: estava-se em tempo de inventar uma religião sem deus, ou uma religião de estranhos deuses, como a fugidia Razão; e estava-se em tempo de confundir a Pátria, que é espiritual, com um Estado, que é a forma material - e por isso inferior - da sua manifestação. "Que o templo da Religião se torne o templo da Pátria, e que o túmulo dos grandes homens se torne o altar da Liberdade", isto dizia a Lei de 1791 que inventou esta coisa estranha. Também não por acaso, o depois Imperador dos Franceses quis remisturar as coisas, ordenando a reabertura do culto cristão em paralelo ao culto dos grandes homens.
Passou o tempo dos antigos reis, passou o tempo da deusa Razão; e temos agora uma espécie de Pátria que se compraz em evocações e homenagens; que finge cuidar dos seus mortos para disfarçar o descuido dos vivos; que já não é capaz de apontar exemplos, e por isso aponta os inimitáveis "génios": Pessoa está nos Jerónimos, mas no seu túmulo não quiseram gravar as palavras da Mensagem.
Nada, no que sabemos da vida e do coração de Camilo, nos permite supor que alguma vez tenha querido "servir a Pátria" (como adoramos essa enganadora etiqueta...), a não ser uma vaga, juvenil e irrelevante passagem pela guerrilha miguelista; nada, no que sabemos da sua alma e da sua morte, nos permite supor que tenha sido mais do que um homem que viveu e amou e magoou-se e quis coisas que não teve e que escrevia como nem o príncipe dos infernos aprendeu a escrever. O que ele escreveu, já no-lo deu a todos, e ninguém o lê; o que ficou com ele está entre ferros e anjos góticos do cemitério da Lapa; e de tudo isso, que é Pátria mas não é da Pátria, não tem o direito de se apropriar ninguém.
Não; não é Camilo que deve vir para o Panteão; é Portugal que deve ir à Lapa. Triste é a Pátria que quer ter um sítio: é porque já não sabe ser o imenso lugar para que foi feita; triste é a Pátria que se apropria dos mortos: não saberá ser apropriada aos vivos.
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