Já foi mil e uma vezes
assinalado o fascínio de Sophia de Mello Breyner pela Grécia (pela “Grécia
antiga”, obviamente), que, de resto, avulta, de forma expressa, em muitos dos
seus poemas. Recordemos aqui apenas três:
Foi no mar que aprendi o gosto da
forma bela
Ao olhar sem fim o sucessivo
Inchar e desabar da vaga
A bela curva luzidia do seu dorso
O longo espraiar das mãos de espuma
Por isso nos museus da Grécia antiga
Olhando estátuas frisos e colunas
Sempre me aclaro mais leve e mais
viva
E respiro melhor como na praia
(…)
No Golfo de Corinto
A respiração dos deuses é visível:
É um arco um halo uma nuvem
Em redor das montanhas e das ilhas
Como um céu mais intenso e
deslumbrado
E também o cheiro dos deuses invade
as estradas
É um cheiro a resina a mel e a fruta
Onde se desenham grandes corpos
lisos e brilhantes
Sem dor sem suor sem pranto
Sem a menor ruga de tempo
E uma luz cor de amora no poente se
espalha
É o sangue dos deuses imortal e
secreto
Que se une ao nosso sangue e com ele
batalha
(…)
Ressurgiremos ainda sob os muros de
Cnossos
E em Delphos centro do mundo
Ressurgiremos ainda na dura luz de
Creta
Ressurgiremos ali onde as palavras
São o nome das coisas
E onde são claros e vivos os
contornos
Na aguda luz de Creta
Ressurgiremos ali onde pedra estrela
e tempo
São o reino do homem
Ressurgiremos para olhar para a
terra de frente
Na luz limpa de Creta
Pois convém tornar claro o coração
do homem
E erguer a negra exactidão da cruz
Na luz branca de Creta
Como é assaz visível nestes
poemas, esse fascínio pela Grécia confunde-se, em Sophia, com o fascínio pela
luz, pela luz plena, pela luz sem sombra, pela “pura manhã da imanência”. A
este respeito, não pode deixar de se assinalar um pelo menos aparente contraste
com as visões de Teixeira de Pascoaes e de José Marinho. Daí, no caso de
Pascoaes, a sua imagem da Ibéria como o “túmulo do Sol” contraposta à imagem da
Grécia como o “berço solar”, daí a sua afirmação de que “o génio ibérico foi
sempre anti-helenista, duma originalidade selvática aprofundada pelas sombras
do Crepúsculo”, do “crepúsculo eterno da Ocidental
Praia Lusitana”, daí o ter-nos dito ainda que “o português é um ser
indefinido”, que “ignora o limite das coisas”, não podendo ter por isso “um conceito
claro da existência”, mas “uma concepção nublosa sentimental” – de acordo,
aliás, com a nossa própria “Deusa atlântica”, também ela “sentimental e
enevoada”, ao contrário da “Deusa mediterrânea”, e do sentido do “limite
divinizado pelos romanos, o povo mais anti-infinito que existiu”.
Tal como o autor do Regresso ao Paraíso, também José Marinho
contrapõe a nossa mundividência à mundividência helénica. Daí, desde logo, o
ter dito, a respeito de Sampaio Bruno, que “não se liga a meditação do nosso
estranho pensador aos raios do claro Apolo, à gloriosa e triunfante verdade de
Zeus”, mas à “luz que emerge da grande sombra ou noite originária”, mas ao
“astro de Saturno que emerge da Noite remotíssima” – não estivesse “o segredo
de tudo quanto os olhos supõem ver e as mãos iludem tocar no mais remoto e
invisível”, “no invisível obscuro”. Daí ainda o ter falado, a respeito do autor
d’ A Ideia de Deus e de todos os
outros pensadores portugueses mais significativos, de “uma família de espíritos
da mais remota ascendência: a daqueles cuja inspiração mítica, cujo logos
formador não está no radioso Apolo, na clara luz solar, mas no divino oculto,
nas constelações invisíveis”, contrapondo-os aos “nada sábios mas astutos fiéis
de Zeus”.
Daí ainda, enfim, a
caracterização que José Marinho faz de todos os habitantes desse dito “país do
sol poente”, ou do “sol posto” – como “povo do crepúsculo”, não fosse, afinal,
esse o povo dos “tardios filhos da Grécia e do Cristianismo”, dos “extremos e
incertos filhos da latinidade e do cristianismo nas terras do sol-posto”, ou,
mais simplesmente, dos “filhos da latinidade do sol posto”, dos “latinos
estremados” –, caracterização essa que privilegiadamente restringe ao povo
português, que chegou a qualificar como – palavras suas – “povo extremo da
Ibéria, povo extremo, cabe longamente pensá-lo, não da Europa mas da Eurásia,
povo que recusa por igual, num sentido, a contraposição de Apolo e Dioniso, e,
noutro sentido, a mística absorta ou o grandioso drama humanizado, mas sem
saída, de D. Quixote e Sancho Pança”. Esporadicamente, porém, estende Marinho
essa caracterização a todos os habitantes da “Hispânia” (ou, se preferirem, da
Ibéria). Daí, a título de exemplo, o ter chegado a afirmar que “constituímos na
Europa uma autêntica península no sentido espiritual e mais pleno do termo”.
1 comentário:
Muito bem,
Citando do texto "Daí, a título de exemplo, o ter chegado a afirmar que “constituímos na Europa uma autêntica península no sentido espiritual e mais pleno do termo”.
Abraço fraterno
Luisa Timóteo
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