Ao Klatuu e ao Pires, a quem tenho contado tantas histórias...
Em plena Idade Média (por volta de 1225) houve em Portugal uma guerra civil. No fundo havia um rei (D. Sancho II) que talvez fosse pouco inteligente (alguns dizem que era completamente incapaz), havia um grupo de poderosos que se escondia à sombra dele para governar, e havia outro grupo que queria qualquer coisa que os que governavam não queriam dar. O grupo descontente pensou em destituir o rei e fazer rei um irmão mais novo que vivia em França, e que se veio a chamar D. Afonso III, e que de Paris trouxe o nome Dinis para o primeiro filho que em Portugal nasceu. Como disse, houve uma guerra civil e o irmão de França ganhou e deu aos descontentes o lugar que era dos poderosos que se escondiam, e o resto ficou na mesma. Não é esta a história que interessa.
Interessa é que havia então um cavaleiro que achava que os descontentes tinham alguma razão, mas que tinha jurado fidelidade ao rei que havia. Era governador de um castelo importante, alcaide, como se dizia então. E não sabia quebrar um juramento de fidelidade.
Os descontentes, que queriam o castelo ou pelo menos queriam o caminho livre (o castelo era um ponto importante na guerra que se adivinhava) disseram ao cavaleiro que se não preocupasse porque um imbecil não merece fidelidade. Mas o cavaleiro teve dúvidas.
E então pôs-se a caminho de ouvir conselhos maiores. Saiu de Portugal e foi à corte de Castela. Quem sabe disso são os de Aragão, disseram-lhe lá. E o cavaleiro foi a Aragão (ou seja, ao outro lado de Espanha). Poderei, sem desonra, desvincular-me do juramento que fiz? O rei de Aragão ouviu, e chamou os seus conselheiros. Que lhe disseram, talvez por prudência política, que a França era a capital da honra e da palavra dada, o cavaleiro que fosse a França. E o cavaleiro lá foi. Já não me lembro que resposta em França teve ele. Mas isto quer dizer que fez um viagem que demorou meses, apanhou certamente frio e chuva e sol e muitas coisas por causa de uma coisa que tinha dito, e que ao dizer sentia que tinha feito.
E agora uma história moderna. Passou-se também em Portugal, e tecnicamente ainda na Idade Média. Cento e sessenta anos, mais ou menos, depois da que acabei de contar. Ouvimos falar desta época na escola como a "Crise de 1383": um rei (D. Fernando) tinha morrido sem filhos homens, a filha era a rainha de Castela; de novo a guerra civil e a invasão castelhana e Nuno Alvares Pereira e Aljubarrota e tantas coisas, entre as quais a prisão durante anos do rei legítimo de Portugal, o filho de Inês de Castro e meio-irmão mais novo do rei falecido. O novo rei veio a ser um outro meio-irmão desse rei morto, que se passou a chamar D. João I. Vamos ao que interessa, então.
O meio-irmão que veio a ser rei estava muito hesitante. Tinha uma vidinha confortável e talvez tivesse medo da guerra que a coroa que lhe ofereciam podia trazer. E foi ouvir o conselho de um milionário, um burguês de Lisboa chamado Álvaro Pais, um homem prático e moderno. O Álvaro Pais não queria os castelhanos, e fez bem porque os castelhanos perderam a guerra e mais tarde dois netos do Álvaro Pais, que era só um burguês, até foram feitos condes. Como conseguir gente suficiente, perguntava o meio-irmão hesitante, como conseguir que me apoiem? Fácil, disse o milionário. Dai o que não tiverdes, prometei o que não podeis cumprir...
Olá, mundo novo. E o meio-irmão encheu-se de brios.
São duas histórias que fazem pensar. Percebe-se porque é que nós, mais modernos ainda e muito mais práticos do que o milionário, não gostamos nada da Idade Média...
5 comentários:
Interessante a forma das histórias que nos contas, assim vale a pena ler.
E, claro, aquilo na Idade Média era uma maltosa com a mania de ter palavra, pessoas de ideias medianas, uns pobres atrasados, diria certamente Álvaro Pais.
Como sempre, saio deliciado.
Obrigado, Casimiro.
Abraço.
Se ambos serviram bem a pátria...
Obrigado. Abraço!
A pátria?!
Sim, a pátria, aquela, e aqueloutra que constitui no pequeno mundo de cada um a honra, o serviço e o destino.
As duas mudam, segundo a época e os tempos, e o que dessa efemeridade dura, é a permanência da pátria enquanto legado intemporal, a outra ainda, que tem por nome: Portugal.
Quanto ao mais, ambos os exemplos podem constituir uma bela parábola moral (em que nenhum me parece superior ao outro; no Neolítico era honra devorar o coração do adversário vencido, mas também para os Celtas primordiais, ainda no Neolítico em tanta coisa...), mas politicamente são idênticos...
Amigo Casimiro, eu tenho aqui uma enorme diferença com o Klatuu. É que não vejo em que sejam idênticos estes dois exemplos: se ter palavra e tudo fazer para a honrar, é igual a prometer o que se sabe não poder cumprir, vou ali beber umas minis e já venho.
Abraço aos dois.
Enviar um comentário