Hoje
assinala-se mais um – triste, trágico, terrível – aniversário do Regicídio de 1908, o que representa também, novamente, mais uma oportunidade de voltar a
abordar «A República Nunca Existiu!», antologia de contos de história
alternativa que eu concebi, organizei e em que participei, editada há oito
anos. Desta vez, por causa de dois dos livros que li no terceiro quadrimestre do ano passado, e nos quais existem excertos que de algum modo se podem
relacionar com a efeméride e com aquele meu projecto literário.
Um dos livros
é «As Máscaras do Destino», colectânea de contos de Florbela Espanca, contos
esses susceptíveis de serem inseridos – todos! – no género fantástico, o que
faz da poetisa alentejana, cujo 85º aniversário da morte se assinalou em 2015,
mais um nome a juntar ao «cânone» que eu tentei construir no meu artigo «A nostalgia da quimera». Porém, a ligação desta obra com «A República Nunca
Existiu!» faz-se não por palavras da sua autora mas sim por palavras de outra
escritora, que elaborou o prefácio (da edição que eu li – a 7ª, Bertrand,
1998): Agustina Bessa Luís. Recordo que, na «República…», escrevi o seguinte,
no último parágrafo da introdução: «No Verão de 2007, durante as férias com a
minha família, estive em Vila Viçosa, bela terra à qual não regressava há 20
anos. Revisitei o Paço Ducal e quase consegui sentir a “presença” de D. Carlos
e da sua família. Visitei a antiga estação ferroviária, agora um Museu do
Mármore, e quase consegui “ver” a Família Real entrar num comboio para a sua
última viagem juntos. Aclamados por uma pequena multidão onde, quem sabe,
estaria uma ainda muito jovem Florbela Espanca…» Pois bem, o que escreveu – e
revelou – a autora de «A Sibila»? Isto: «Temos de ler “As Máscaras do Destino”
com a confiança amigável que nos merece o diário duma adolescente, em que certa
mediocridade talentosa anuncia os desejos que se evitam. É a jovem de Vila
Viçosa a quem a rainha falou um dia, despertando nela uma noção de valor
próprio que a marca de tristeza para sempre.»
O outro livro
que li no final do ano transacto e que tem a ver, directamente, com o crime de
1908, e, indirectamente, com a primeira antologia colectiva que concebi e
organizei, é «Folhas Soltas (1865-1915)», colectânea de crónicas (editada pela
Livraria Clássica Editora em 1956) de Ramalho Ortigão, cujo centenário da morte
se assinalou em 2015. Um dos textos incluídos intitula-se «A tarde de 1 de
Fevereiro de 1908», e foi publicado no jornal O Portugal a 1 de Fevereiro de
1909. Nenhuma criação da imaginação é mais poderosa do que o relato factual –
comovido e indignado – de um contemporâneo: «Parece que foi ontem, e faz hoje
um ano! Era num dos mais lindos dias do doce Inverno lisboeta. (…) O sol no
ocaso estendia a sua grandiosa púrpura por todo o estuário do Tejo. No profundo
e inefável azul do espaço, sobre a calma baía, enxames adejantes de gaivotas,
como lírios alados, envolviam as velas das faluas que bolinavam no rio. A
vidraçaria dos prédios nas colinas do Castelo e da Graça chamejavam em reflexos
de ouro num fulgor de colossal apoteose. (…) Minutos depois, à esquina do
Terreiro do Paço, uma descarga de vinte tiros atingia a carruagem aberta,
sorridente e florida, do Rei e da sua família. O resultado do tiroteio à
queima-roupa foi morrerem fulminantemente o Rei e o Príncipe Real, ser ferido o
Infante, e unicamente ficar ilesa a Rainha, se por ironia se pode dizer ilesa a
mãe dolorosa que sobrevive, cingindo nos braços, espingardeado, o corpo do seu
filho. Sucedeu isto há um ano, e sobre a investigação judicial desse monstruoso
atentado pesa ainda hoje o mutismo da nossa História. (…) Para contrapor à
indiferença dos homens, eu recorro para a impassibilidade da Natureza. Creio
não me desmandar muito na invocação de prerrogativas régias desejando para a
cândida memória de um Rei e de um Príncipe a diluição apetecida para a memória
sangrenta de um facínora. (…)»
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