Se os refluxos esofágicos se
resolvem em minutos – ou, no máximo, em poucas horas, como se comprovou na mais
recente campanha eleitoral em Portugal –, os refluxos históricos podem demorar
décadas, por vezes séculos. Como os vulcões que, sem aviso prévio, expelem lava
recalcada, os refluxos históricos expelem fracturas que não já visíveis a olho
nu.
No quadro europeu, o país que,
provavelmente, vive mais assombrado com essas fracturas históricas é a
Alemanha. Daí, por exemplo, o continuar a apoiar acriticamente tudo o que
Israel faça – por pior que faça, como tem feito, mais recentemente, na Faixa de
Gaza.
Em Portugal, a uma escala
menor, temos também essas fracturas, essas sombras – desde logo na nossa relação
com Espanha. No recente apagão eléctrico, elas vieram uma vez mais ao de cima.
Como se, de facto, desde sempre e para sempre, “de Espanha, nem bom vento nem
bom casamento”. Sendo que há reais factores de fricção – não só na gestão da
rede eléctrica como, em particular, na gestão dos caudais fluviais.
A nível estritamente endógeno,
há, porém, a nosso ver, uma fractura muito mais funda, ainda que,
aparentemente, já distante no tempo – falamos em todo o processo de
descolonização, que obrigou mais de meio milhão de portugueses a saírem,
subitamente, de vários países africanos e a retornarem a Portugal. Sendo que
muitos deles não foram realmente “retornados”, dado que haviam nascido nesses
países.
Não é aqui o espaço para
reconstituir todo esse processo traumático. Sim, sabemos que vivíamos um
contexto especialmente adverso no plano geopolítico que inquinou todo o
processo da nossa descolonização. Seja como for, houve mais de meio milhão
directamente sacrificados nesse processo. Sendo que, como nós próprios já defendemos,
se o seu sacrifício fosse o sacrifício
necessário para que os países donde vieram prosperassem, então poderíamos, no
limite, considerar que esse tinha sido um sacrifício “aceitável”, por mais que
“tragicamente aceitável”.
Na verdade, porém, não foi nada disso que se passou. Com a expulsão dos
chamados, mal chamados, “retornados”, esses países ficaram altamente
depauperados a nível de mão-de-obra qualificada, o que desde logo inviabilizou
qualquer miragem de real prosperidade. Para além disso, a prometida
“libertação” nem chegou a ser sequer uma miragem. Basta dizer que, sem
excepção, todos os novos regimes políticos que então emergiram foram regimes de
partido único.
Mas o que tem isso ainda a
ver, perguntar-se-á, com os resultados eleitorais deste mês de Maio? Na nossa
perspectiva, bastante, no caso da força política que ficou em segundo lugar. Há
uma massa humana (que entretanto se alargou à geração dos filhos e dos netos)
que escolheu claramente esse partido para expressar o seu ressentimento histórico,
ainda que por vezes ele se expresse de forma indirecta – por exemplo, no ataque
à “subsidiodependência” (de que eles não beneficiaram, na maior parte dos
casos, quando tiveram que passar a viver em Portugal), e também num certo
racismo simétrico ao que eles próprios sofreram – dado que, em muitos casos,
tiveram que sair de África apenas porque eram “brancos”.
Renato Epifânio
Presidente do MIL: Movimento
Internacional Lusófono
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