O que se quer dizer é que existem
no Brasil dois tipos de civilização bem diferentes um do outro: uma, a de tipo
europeu, que, seguindo nisso o exemplo dos portugueses, sobretudo carangueja
pela costa; a outra, já de tipo brasileiro, distinguindo-se do europeu por
fortes laços de originalidade, e que ocupa principalmente o interior. Quando
falamos do caranguejar pela costa, não pretendemos, de modo algum, enfileirar
na corrente dos que pensam que tal atitude foi um erro; pensamos, pelo contrário,
que conviria, em grande parte dos casos, retomar tal política. Queremos,
apenas, acentuar a coexistência de dois tipos de cultura, de duas formas
existenciais, que mantêm uma fronteira viva entre si, sendo que uma se espalha
ou domina ao longo do mar e a outra se refugia para o interior.
Já não têm sido poucos os choques
entre os dois tipos de civilização. Bastará lembrar o que sucedeu em Canudos e
no contestado de Santa Catarina, para entender o que tal conflito possa ser, e
vir a ser, no campo do colectivo. Quanto ao individual, gostaria que se
pensasse no grau de causalidade que a fronteira assume nas melancolias, nas
ironias, nas amarguras mansas de um Machado de Assis, no entanto tão
tipicamente litoraneo, e nas revoltas, nos clamores, nas crueldades de retrato
e nos desesperos finais de um Lima Barreto. E, ainda neste campo, seria
interessante ver como a influência e o reconhecimento do génio de um Mário de
Andrade, são afinal, são afinal, a tanto tampo de distância e de uma forma que
ninguém, apesar de Euclides, teria profetizado, a redenção e o triunfo do
jagunço que nunca se rendeu.
De qualquer modo, se põe aqui o
velho conflito espanhol; e voltando à explicação de termos, devo dizer que
entendo neste passo espanhol ao velho sentido de peninsular ou de ibérico: se
englobam a Espanha de hoje e o tal Portugal de sempre. Pois, toda a cultura da
Península gira em volta da seguinte questão: a de se se deve europeizar
Espanha, talvez na corrente de Verney, de Cadalso, de Ribeiro Sanches e, um
pouco, de Giner de Los Rios, ou se, pelo contrário, se deve hispanizar a
Europa, nas águas de, por exemplo, um Miguel de Unamuno. Levanta-se aqui, pois,
uma alternativa, na qual, segundo os velhos costumes lógicos, só parece possível
escolher um de dois termos. Isso, porém, sempre me pareceu falta de imaginação
e, por conseguinte, daquela mais profunda lógica do mundo que os lógicos da
linguagem jamais conseguiram apreender. Acho que, quando de duas soluções
apenas se pode escolher uma, deve-se, imediatamente, tentar inventar uma
terceira.
A invenção e aplicação desta
terceira solução, que poderíamos designar por uma hispano-europeização de
Espanha e da Europa, destruindo, pela invenção de uma real liberdade, a
antinomia entre a anarquia e a ordem, não foram possíveis na Península, por
motivos de ordem própria e de ordem histórica que seria demasiado longo
apontar. Mas, a grande vantagem do Brasil, a carta de trunfo e de triunfo –
sejamos, como herança ibérica, um pouco gongóricos – que ele tem nas mãos, é a
de que essa invenção é, aqui, possível. Não desprezando de modo algum os
encontros europeus – não esqueçamos de que falamos uma língua europeia e de que
o falar uma determinada língua e não outra tem uma importância primordial na
criação de um determinado tipo de cultura – e não desprezando esses encontros
europeus sobretudo no que eles têm de mais audacioso e de mais voltado para o
futuro, por exemplo, a inteira liberdade na arte ou uma fundamentação geométrica
a n dimensões, não ponhamos de parte
a lembrança de que o soco em que a estátua assentará é americano e de que a
missão essencial não é nem a de importar, tal qual, uma civilização
estrangeira, nem a de conservar, religiosamente, a tosquidade do que se viu com
o indígena: a solução está em criar uma civilização nova que vá servir ao
Brasil e ao mundo.
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