Outras tantas vezes nessa turba infecta e salgada algum rapaz de rins direito e olhos verdes, duma infinita e animal serenidade, as penas altas e direitas, os pés chatos de estátua, o pescoço vermelho, a pele das pernas e dos pulsos ainda não tanada do sal e da aguardente, os cabelos fulvos riçados nas fontes, arregaçado até às curvas, os ombros gráceis e as orelhas pequenas, surgirá no meio da turba, carregando canastras como ânforas, com gestos clássicos, alheio ao sexo, inocente e soberbo da inconsciência e da adolescência ainda não espicaçada de desejos, e que um prodígio de isolamento na faina de barcos e na vida extenuante do mar, conservou isolado dos sentidos, e adolescendo como um admirável specimen da raça humana, vivendo de ar livre e vida pura. Impossível, a quem está afeito à vida dos museus e nasceu com os instintos da beleza, não deixar de seguir um momento, esta marcha da Antínoos pudico e soberbo: só os estupidarrões orgulhosos desta falta de curiosidade e de inteligência, é que se gabam de só entender de mulheres, como se isso fosse uma qualidade intelectual e superior, é que não explicarão esta admiração entre as naturais do homem inteligente e superiormente preparado à exaltação da raça e à integração da beleza entre os predicados superiores da raça humana.
Vigo, cidade de trabalho, às 9 horas da noite fecha tudo. Muito pouca gente nas ruas, algum forasteiro. Concertos em três cafés, mas as peças muito espaçadas, piano, rabeca e violino. Um pequeno teatro no Colón, para duetos e sainetes. A gente misturada, plebe e gente melhor. Em geral o galego de certa ordem vai para os seus clubes e casinos. Alguns são ao rés da rua abertos, e aí, em cadeiras de balanço, os sócios repousam-se, luzem-se, vendo passar gente, gostando que lhes admirem a elegância. A mania do sportismo domina. Jogam o cricket e o footbool com os ingleses; têm velódromo, pedalam. São em geral robustos e desempenados –ar inglesado. Até nisso justificam ser a continuação da Irlanda.
É curioso que quanto mais me interno na Galiza, ao contrário do que poderia supor-se, mais o dialecto se parece com o português.
Em face de tudo o que vejo, serras, falaises, águas, gente, edifícios, céus, os que partem, os que chegam, os que eu vejo, os que adivinho, os que não vi nunca, o sentimento da minha mesquinharia, é aflitivo e atentatório do meu orgulho. O que desejava era ser tudo o que vejo e existe, sem perder o sentimento d`ensemble, a consciência lúcida do que sou.
Galiza, 1905, Fialho de Almeida, Independente - Livros de Verao, 2001
Imagem: Caricatura de Fialho de Almeida encontrada em Cuba (Alentejo)
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