"O perigo que corre o Ocidente com a sua "guerra contra o terrorismo" foi, uma vez mais, bem percebido por Chesterton. Nas últimas páginas da sua Ortodoxia, essa suma de propaganda católica, mostra bem o fundamental impasse em que caem todas as críticas pseudo-revolucionárias da religião: a crítica começa por denunciar o poder opressivo da religião, em nome da liberdade humana; acaba no entanto por sacrificar precisamente aquilo que visava defender combatendo a religião: a vítima final da rejeição teórica e prática da religião pelo ateísmo não é a religião (que de facto perdura imperturbavelmente) mas a própria liberdade, pretensamente ameaçada. O universo radical do ateu, desembaraçado de referência religiosa, não é senão o universo cinzento do terror igualitário e da tirania [...]
A única coisa que valeria a pena acrescentar a isto é que o mesmo exactamente se passa com os turiferários da religião: quantos defensores fanáticos da religião começaram por um ataque feroz à cultura laica contemporânea para acabar por abandonar a própria religião (perdendo o sentido da experiência religiosa?). Num sentido estritamente comparável, não é falso afirmar que os combatentes do liberalismo estão tão prontos a lutar contra o integrismo antidemocrático que acabam por se desembaraçar, na sua luta contra o terrorismo, da própria liberdade e da própria democracia. Manifestam um tal entusiasmo em querer provar que o integrismo não cristão é a primeira ameaça à liberdade que estão prontos a subscrever a ideia de que precisamos de limitar, aqui e agora, nas nossas sociedades pretensamente cristãs, as nossas próprias liberdades. Se os 'terroristas' estão prontos a demolir este mundo em nome do seu amor por um outro, os nossos combatentes contra o terrorismo, loucos de ódio para com o Outro muçulmano, estão prontos a demolir também o seu próprio mundo democrático. [...]
Não se encontrará também este mecanismo no desprezo pós-moderno pelas grandes causas ideológicas? Na ideia de que, na nossa época pós-ideológica, deveríamos, em vez de experimentar mudar o mundo, reinventarmo-nos a nós mesmos, e ao nosso universo inteiro, por novas formas (sexuais, espirituais, estéticas...) de práticas subjectivas? [...]
As vítimas principais do positivismo não são as confusas ideias da metafísica, mas os próprios factos; a busca radical da laicidade, a atenção centrada para a nossa vida no mundo transformam essa mesma vida num processo anémico e abstracto [...] Uma inversão similar é claramente perceptível no impasse do último homem contemporâneo, o indivíduo pós-moderno que descartou toda a finalidade superior (declarando-a terrorista) e dedicou a sua existência de sobrevivente a prazeres menores cada vez mais refinados e artificialmente estimulados. Na medida em que a vida e a morte designam, para S. Paulo, duas posições existenciais (subjectivas) e não apenas factos objectivos, não terá justificação recolocar a questão paulina: quem são hoje, realmente, os vivos?"
Slavoj Zizek, in Welcome to the Desert of Real (tradução minha), 2002.
3 comentários:
Agradeço ao Marcantonio Bragadin (MB) que, com o post anterior a este meu, infectou com um ou dois vírus benévolos, digamos assim, as coisas em que estava a pensar (tinha acabado de fazer a diária visitação noticiosa à net...) e me ajudou inesperadamente a escolher este texto.
O que digo, nas palavras minhas e nas que transcrevi, é de certo modo uma metáfora e é também, de certo modo, uma evidência.
A chave e a ponte, estão, é melhor dizê-lo, em reparar que as "ideias simples" de que fala MB têm uma maçadora tendência para evoluir para "ideias fáceis", estirpe de bicharocos para a qual nenhuma vacina foi encontrada, nem promete.
O resto é viagem que tem por barca a lusofonia, embora possa não o parecer.
Os problemas que enfrentamos não são pelo excesso de laicidade ou pela dessacralização do mundo - o problema fundamental é andarmos todos a querer pensar realidades novas com ideias velhas.
Mas isto é certo: a civilização não deve equacionar aquilo que a ameaça com a pomposidade de «choques de civilizações» ou «fundamentalismos religiosos - deve ser mais simples: criminosos e inimigos; estes termos são claros, nada equívocos e garantem a lei, que protege a liberdade e a justiça.
Mas sim: o mundo é complexo; principalmente ao «chá parlamentar» ou argumentativo. Leónidas não tinha todo o tempo do mundo, não era Ateniense...
Exactamente por isso a lembrança de Antígona, a inimiga por excelência.
Saudações, Marcantonio.
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