Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
– Perdida voz que de entre as mais se exila,
– Festões de som dissimulando a hora.
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
Camilo Pessanha
É a meio da noite amarelada, húmida e miasmática, a coberto de olhares, que os jovens aprendizes de advocacia chinas se dirigem a casa do branco de barba comprida a pedir-lhe esclarecimento, quiçá convívio; para os orientais a desgraça, ainda por mais a do ópio, é um opróbio social pior que a lepra, mas aquele senhor é uma inteligência admirável, formado em Direito pela Universidade de Coimbra, poucos no território de Macau sabem tanto das leis do colonizador como ele, e não menos fundo é o seu conhecimento da sociedade macaense. Este acabado professor de filosofia do Liceu de Macau, ex juíz de comarca, que escreve versos incompreensíveis, vive agora os seus dias sem sair do leito, o veneno sempre ao lado, numa bandeja, debaixo da cama, onde a sua governanta e concubina chinesa lhe prepara o ópio diário e nocturno. Quem o procura, chega e assiste ao ritual. Como é estranho este Português vencido pelo inferno das ásias, o seu intelecto é rápido na resposta, mas evolui segundo as regras dos países oníricos, agarra num pau de fósforo que molha no tinteiro e assim escreve o que precisa, ou assina aquilo que as exigências de ainda estar vivo o obrigam. Há muito que já só usa o pau de fósforo, magro, distante, bisonho que se abria num sorriso luminoso cada vez que o interpelavam, era visto pelos seus alunos como uma criatura de outro mundo, um mundo impossível chamado Império Português do Sonho.
Morreu discretamente em Macau, no dia 1 de Março de 1926, em silêncio, devorado pelo ópio. Viveu como uma sombra e morreu como uma sombra. Escreveu os poemas mais originais e belos de toda a literatura de língua portuguesa. Escreveu pouco. Nada fez para que a sua obra fosse publicada, escrevia em folhas soltas, que perdia, que oferecia aos amigos e amigas, não guardava cópias, mas sabia todos os seus poemas de memória. Viveu num tempo ido, coberto hoje de vã glória e ressentimento estúpido, num tempo ido chamado Portugal.
K. N.
«Lembro-me de o ver chegar de Coimbra. Não sei agora se já estava formado ou não. Suponho que nessa altura andava a rondar a casa dos 30. Era bem apessoado. Tinha um ar triste mas era alegre. À noite passava muito tempo junto à lareira. Era onde a família se reunia. Ele deitava-se no chão e recitava versos. Fazia-o tão bem! Por essas alturas escreveu alguns mas logo os rasgava. Parece que os escrevia só para os decorar e depois fazia o papel em pedaços.»
Germano Silva, Jornal de Notícias, 14 de Setembro de 1967 – in Homenagem a Camilo Pessanha, org., prefácio e notas de Daniel Pires, IPOR, Instituto Cultural de Macau, 1990, pág. 88.
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