Não é muito comum, nos dias de
hoje, haver uma relação tão perfeita entre mestre e discípulo como aconteceu –
como continua a acontecer – entre Antônio Paim e José Maurício de Carvalho.
Para o atestar, atentemos em dois textos publicados na Revista NOVA ÁGUIA. O
primeiro, da autoria de José Maurício de Carvalho, precisamos sobre Antônio
Paim, por ocasião dos seus noventa anos, onde o discípulo aproveita para nos
presentear com uma excelente síntese do pensamento do seu mestre: «Ao
sistematizar a história do pensamento, Paim mostra que o primeiro plano e o
mais radical que se encontra no estudo da Filosofia é o das perspectivas, às
vezes confundido com os sistemas, mas que corresponde a uma espécie de ponto de
vista irredutível. Ele sintetizou, como se segue, o legado de Kant. São duas as
perspectivas filosóficas fundamentais, a platônica, segundo a qual algo subjaz
ao que aparece e a transcendental, cuja categoria básica é o fenômeno. As
perspectivas antecedem os sistemas e a eles sobrevivem. Enquanto os sistemas
são transitórios, nas perspectivas reside o que há de permanente na Filosofia.
Segundo Paim, as perspectivas são insuperáveis, isto é, não há como refutá-las
teoricamente. A escolha de uma delas depende de muitos componentes, a exemplo
do valor heurístico da perspectiva transcendental. Por sua vez, cada sistema
filosófico é esforço de estruturar a totalidade do saber a partir da
perspectiva que o sustenta, ele ensina numa de suas obras mais estimulantes: A problemática do culturalismo.
Conhecendo as circunstâncias históricas onde foram concebidos os sistemas
entendemos porque eles se sucedem como interpretação do mundo, deixando vivos
os problemas que atormentaram os filósofos e animaram sua reflexão. Paim ensina
assim, com leveza e profundidade, o que há de permanente e de passageiro na
Filosofia./ Ao completar 90 anos, Antônio Paim nos presenteia com a produção
acadêmica de historiador consagrado das ideias filosóficas no Brasil. Nesse
campo produziu livros de enorme significado, quer pela extensão dos dados
compilados, quer pela interpretação desses dados. Antônio Paim estudou a
história das ideias no Brasil sem o complexo de inferioridade que por vezes nos
visita, fantasma da mentalidade colonial que ainda hoje assombra nossas
academias. Porém também não desconsiderou nem os clássicos da filosofia
universal, nem as lições das grandes escolas. Inseriu adequadamente o esforço
dos autores nacionais nessa tradição filosófica, mostrando suas contribuições
mais significativas. Nesse sentido destaque-se a precisa avaliação do legado de
Tobias Barreto de Menezes que, na terceira etapa de sua meditação, antecipou e
iniciou o retorno a Kant, que somente se completou com o movimento neokantiano
alemão que ocorreu depois da morte de Tobias. E também são interessantes as
observações que Paim fez dos ecléticos brasileiros como Eduardo Ferreira França
e Domingos Gonçalves de Magalhães. Esses homens deixaram contribuições
reconhecidas pelos fundadores franceses da escola. A tradição filosófica é um
manancial que se enriquece com os olhares e diálogos. Pupilas diferentes
ampliam o legado comum, um pouco mais ou um pouco menos todas são importantes,
ensinou Georg Hegel, outro notável historiador das ideias. Paim soube mostrar
como podemos navegar nesse esse rio caudaloso da cultura, ou da razão absoluta,
a que se referiu Hegel./ Como operário do pensamento ou como historiador das
ideias, como estudioso de política ou como professor, agora quando completa 90
anos, Antônio Paim é merecedor de nossa consideração e cumprimentos por vida
tão dinâmica e frutuosa.» (nº 20, 2º semestre de 2017, pp. 143-144).
Antônio Paim, por sua vez, logo
no segundo número da revista, a propósito de uma obra de José Maurício de
Carvalho, havia também já salientado o quanto o pensamento do seu assumido
discípulo converge com o seu: «José Maurício de Carvalho vem de entregar ao
público a segunda edição de O Homem e a
Filosofia (1ª edição, 1998). Nessa obra procura dar continuidade à
meditação iniciada por Tobias Barreto (1839/1889) e, contemporaneamente,
desenvolvida basicamente por Miguel Reale (1910/2006). Para Tobias Barreto
tratava-se de encontrar um caminho que pudesse libertar-nos da camisa de força
que nos sugeria o positivismo, ao postular que a pessoa humana era determinada
e determinável. Sabemos que essa autêntica enfermidade, infelizmente, contagiou
muita gente no período republicano de nossa história, o que explica nos
encontrarmos, ainda hoje, diante de verdadeira esterilização das consciências
em várias esferas do saber./ A proposta superadora do positivismo, da lavra de
Tobias Barreto, consistia em demonstrar que a ação humana se explicava por
causas finais, sendo impossível compreendê-la se nos ativéssemos aos marcos da
causalidade eficiente (ou seja, os antecedentes identificáveis e mensuráveis).
Miguel Reale teria o mérito de indicar precisamente o problema filosófico a ser
elucidado: em que consistia o ser do
homem. Aceitando a proposição de Tobias Barreto de que a moral estruturava
o horizonte último da ação, diria Miguel Reale que o ser do homem é o seu dever ser. Não se trata de um “dever ser”
simplesmente dado mas algo que envolve uma construção social onde a correlação
essencial seria entre experiência e
cultura, título de sua obra filosófica fundamental e que corresponde a
autêntico marco da contemporânea filosofia ocidental./ Qual é a proposta de
José Maurício de Carvalho no sentido de levarmos mais longe essa investigação?
Dizendo-o de forma muito geral: tratar-se-ia de aproximar existência e cultura
(…)./ O problema, pois, reside nas escolhas. Trata-se da mesma questão com que
esbarrou Kant. Resolveu-o numa perspectiva protestante, em que a pessoa não
mais conta com quem lhe abra a porta do Céu, devendo lidar com isto direta e
solitariamente. Assim, a pessoa em causa precisaria dispor de alguém com quem
se comparar, a que chamou de “sábio estóico”. Para traçar o seu perfil, num
contexto cristão de cultura, reordenou os Dez Mandamentos para dele retirar um
ideal de pessoa humana. Definiu-o como sendo um fim em si mesmo, que não
poderia ser usado como meio. O imperativo
categórico completa o ciclo em
que o problema da escolha é enfrentado, no plano filosófico. Na escolha da lei
moral é que residiria a liberdade humana, porquanto se trataria de resistir às
inclinações./ Veja-se a solução que nos propõe José Maurício de Carvalho: “A
ênfase na Existência trouxe para primeiro plano a preocupação com a morte pois
ela integra o processo que chamamos de vida” (p. 132). No seio da corrente existencialista
não se chegou a um acordo quanto à aceitação do que denomina de razão religiosa
capaz de justificar a morte. Nas suas considerações acerca desse último tema,
encontro esta afirmativa que, parece-me, poderia ser tomada como a solução
ensejada pelo autor: “Entendendo-se como um ser para a morte, o homem tem que
ter com sua vida um cuidado muito maior. Em cada momento de seu existir ele
deve se de indagar a respeito do que faria se aquela fosse sua última ação.
Assumir a autenticidade da Existência consiste em reconhecer que cada ação é em
certo sentido a derradeira. A cada instante a vida humana torna-se verdadeiramente
mais curta” (p. 133)./ Seria pois uma nova modalidade da pessoa humana dar-se
conta da responsabilidade pessoal, ou seja, do que Max Weber chamou de “ética de
responsabilidade”, em contraposição à “ética de convicção”. Como se vê, as
meditações de José Maurício de Carvalho sobre a Existência são efetivamente
instigantes.» (nº 2, 2º semestre de 2008, p. 83).
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