E responde a Galiza:
Painel de azulejos na muralha de Monção (Minho), séc. XX
Se um dia forem a Monção do Minho vejam estes versos portugueses azulejados na muralha forte que tantas vezes enfrentou as armas del Rey de Espanha. São de João Verde, monçanense pois claro, que os escreveu em 1917; a eles respondeu a voz galeguíssima de don Amador Montenegro Saavedra. Minho e Galiza, Galiza e Portugal. E, meus amigos, vamos lá a ver se conseguem perceber isto, mesmo visto daqui de Lisboa que nem é uma coisa nem outra.
1. Deixemos de parte a identificação dos povos: não interessa agora se eram celtas, ou calaicos, ou lígures, ou iguais a povos velhos da Irlanda. Antes de os romanos chegarem, havia de um lado e de outro do Minho - do rio Minho que hoje separa Portugal de Espanha - povos da mesma cultura, provavelmente da mesma origem. Nesses tempos não se faziam mapas nem fronteiras traçadas a lápis: o rio Minho é fácil de atravessar de barco, não é largo nem corta desfiladeiros de pedra como o Douro. A paisagem começa lentamente a mudar, descendo para o Sul, por alturas do rio Lima - talvez por isso, foi a esse e não ao Minho que a tradição diz que as legiões chamaram fronteira: Lethes, rio do esquecimento.
2. Romanos chegaram, romanos partiram: no seu lugar povos bárbaros chegaram, visigodos com a capital em terras hoje de França (Toledo foi só mais tarde), suevos a ocupar não se sabe bem que parte do Noroeste. Talvez a capital fosse Braga. Não sabemos grande coisa sobre os suevos: as crónicas que nos chegaram são visigodas só. Mais importante do que tudo o resto foi talvez a diferença religiosa. Um dia os suevos foram conquistados, o seu reino fez-se memória vaga, e nessa altura faltavam pouco mais de cem anos para que o Império de Toledo, onde se sentavam os herdeiros dos saqueadores de Roma-a-eterna, se desmoronasse por sua vez. Mas notem uma coisa importante: os visigodos estavam em contacto permanente com os reis merovíngeos dos francos, os reis lombardos de Itália, o império Romano que subsistia em Constantinopla e dominava o Mediterrâneo e mesmo a costa Sul da Península. O Noroeste continuava a ser o que sempre foi: uma terra aonde os príncipes não sabiam ir.
3. Os exércitos muçulmanos - que eram isso mesmo, ao contrário dos visigodos: um exército e não um povo em marcha - não passaram duravelmente além do Douro. Devem ter ocupado as cidades, e talvez as tenham arrasado; devem ter posto em fuga os chefes tradicionais ou forçado uma vassalagem insegura. Mas não arabizaram, como agora se diz, coisa nenhuma. Não me venham falar depressa demais da influência arábica na língua portuguesa, vou dar só um exemplo: Lisboa está, ainda, atulhada de azinhagas, ao menos na toponímia; uma azinhaga é um caminho estreito ladeado por sebes e arbustos e pequenos muros; e palavra mais portuguesa não há. Mas eu tenho uma bisavó que nasceu em Braga, na quingosta da Bruxas que já nem sequer existe, e quingosta é como nós chamávamos ao que no sul se diz azinhaga (chamávamos, porque depois vieram uns senhores de que já falei há uns dias, que sabem falar e escrever correctamente, e que decretaram a forma congosta). Há excepções, claro: a palavra aldeia vem do árabe, e estende-se até à Galiza. Mas o que importa é que a norte do Douro não houve sequer, propriamente, uma Reconquista: os exércitos norte-africanos e árabes aguentaram-se pouco mais de um século, perderam umas batalhas importantes na região mais central de Leão e Castela, e abandonaram o Noroeste. Em 711 desembarcaram em Gibraltar: em 874, a região do Porto foi pacificamente reocupada pelos condes cristãos, certamente pelos bisnetos dos seus antigos senhores. Comparem isto com os quinhentos anos de domínio do Algarve, os quse oitocentos anos de domínio de Granada e Córdoba. Para comparar com o Porto, Coimbra passou definitivamente ao dominio cristão apenas em 1064, e quando D. Afonso Henriques nasceu, cinquenta anos depois, ainda era terra moçárabe. E obviamente não fazia parte de Portugal.
4. Não tenho tempo aqui para me deter na fascinante questão da origem de Portugal (para outra vez será). Notem só que o chamado condado portucalense era uma zona pequena, que provavelmente não ultrapassava o rio Lima para Norte, e a sul ficava pela ribeira de Antuã (agora conhecida por haver uma estação de serviço na auto-estrada: tristes tempos), uns vinte quilómetros a sul do Douro. Não abrangia o douro vinhateiro nem Trás-os-Montes nem Viseu nem a actual região de Aveiro. Era uma unidade dentro de uma unidade maior dentro de uma unidade maior, porque assim era a Idade Média: assim saibamos um dia reconstruir a Europa: às vezes dependia do rei da Galiza, outras vezes do rei de Leão, mas isso eram questões de fidelidade pessoal, a vassalagem, e questão de saber se na zona do Norte cristão havia um rei, ou dois, ou três: nao afectava em nada o viver dos povos, que era igual e, digamos assim, livre.
5. Ainda antes da independência de Portugal, ou melhor, da proclamação de Afonso Henriques como rei, o seu pai foi feito pelo rei de Leão e de Castela dominante no antigo condado de Coimbra, que nada tinha que ver com Portugal dos portucalenses; Afonso Henriques, por várias razões, fez de Coimbra o novo centro de poder (até aí, Guimarães e principalmente Viseu). E deu-se então o primeiro milagre de Portugal: o condado de Coimbra não ficou subordinado a Portugal, mas tornou-se parte integrante dele. Desapareceu o Portugal galego e nasceu o Portugal universal. Devagarinho, como são sempre os primeiros passos: mas depois o mesmo sucedeu a Santarém e Lisboa, e depois ao resto do que agora para nós é um só país.
6. O Minho, tão igual à Galiza em tanta coisa, ficou um pouco para trás: os seus nobres acompanharam a corte, e seguiram para Coimbra e depois para Lisboa, ou ficaram, e lentamente empobreceram. Ficou uma terra de pequena propriedade, sem grandes senhores feudais, unida pelos costumes, por um certo cristianismo pagão e pelo poder eclesiástico dos arcebispos de Braga; o Camilo Castelo Branco ainda conheceu esse Minho, ainda o descreve nos seus romances. Ao contrário da zona alentejana da fronteira, despovoada e eriçada de castelos, o Minho viveu os tempos de paz atravessando o rio: nada mais simples do que os sessenta anos de domínio espanhol, de 1580 a 1640: a reacção de minhotos e galegos foi... casar. Em Viana, em Valença, em Monção, todas as famílias que tivessem algum poder social cruzaram sangues e terras (isso não impediu Monção de sofrer um cerco heróico em 1649, e de fazer a bandeira portuguesa resistir até ao fim; foi obrigado a render-se, e só voltou a Portugal com a paz de 1668).
7. Páro aqui, e num outro dia hei-de dizer mais. São belíssimos os versos simples de João Verde: namorados, sim, mas o Minho, não Portugal. E os versos de Montenegro Saavedra - ah, é a terra galega ansiando pelo mar sem fim que Portugal parece ser. Não impeçam namoro a quem há mil anos se quer; mas não decretem o casamento entre a terra meiga e o alto mar. Um dia será o que houver de ser.
22 comentários:
Olha, faltavas cá tu, meu grande minhoto! LOL
Vou dormir, pá. Amanhã conversa-se...
Abraço!
P. S. Eu sei porque gostas de Lisboa... ;)
Uma delicia, Casimiro.
Forte abraço.
Klatuu: Ele entregou o corpo ao Bairro Alto, mas não a alma. Essa continua lá por cima.
Palavras de Fernão Oliveira:
"As crónicas de Leão e de Castela dizem que o primeiro rei de Portugal foi Dom Afonso Henriques, mas eu não entendo esta sua linguagem, porque elas também dizem que Dom Garcia, filho do primeiro Dom Fernando, chamado o Magno, foi rei de Portugal, feito por o dito seu pai Dom Fernando. E também dizem que seus irmãos Dom Sancho e Dom Afonso se chamaram reis de Portugal; e Dom Afonso foi coroado por tal. Os quais ambos foram antes de Dom Afonso Henriques. E, pois, eles foram reis de Portugal antes dele, não podia ele ser o primeiro"58.
Por que é que nunca ouvi nada esclarecendo isso. Será que se sabe muito pouco acerca disso?
Caro Paulo, sabe-se pouco mas vai-se sabendo alguma coisa: aqui em comentário não cabe, mas um destes dias tentarei contar essa história...
-------------
Klatuu e Pires, vocês sabem que "minhoto" é um dos nomes medievais do milhafre em português?
Abraço grande a ambos!
Não porque sim, e sim porque não... Os trovadores nem sempre são úteis - porque o que está em jogo não é nenhuma disposição emocional fraterna ou alento mito-poético, mas o destino de Portugal!
P. S. O único Rei de Portugal sou eu; por isso sou o Embuçado... :)
Posto de forma não-trovadoresca, a questão é a da 'autonomia', que se não confunde com 'soberania'.
Eu temo os Estados geométricos - aliás, em rigor, temo os 'Estados' (os 'monstros frios' de Nietzsche): nenhum conceito foi mais estranho aos homens medievais do que esse, que agrada essencialmente aos juristas, que então se tornam indispensáveis.
A ideia de uma lei única para um territorio igualizado - como se pode ter esperança nisto?
A confusão entre 'realeza' e 'monarquia' ('kingship' e 'monarchy' fica mais claro) é uma das armas da armadilha - é preciso guardar o Rei, mais do que aguardá-lo... e não o degradar em chefezinho.
Abraço, Klatuu
Casimiro, assim consta no meu dicionário etimológico do Rodrigo Fontinha. O engraçado é que o soube por via do futebol. No tempo em que a Águia do Benfica, meu clube rival, era um Milhafre.
Abraço.
Klatuu, estás a ver porque não sou monárquico?
mais um texto a comentar em detalhe!
em artigo a lançar oportunamente...
(p.s. Casimiro podes enviar-me o texto para o meu mail?)
Portugaliza: não.
O MIL a advogá-la: não.
O mais é para passar o tempo, e, nem que seja de quando em vez, somos todos capazes de alguma inteligência e de alguma cultura...
Mas cada vez que me vêm com tretas do género «Portugaliza», «Portugasil» - eu imagino-me sem cultura nenhuma, agarrado à merda de um pique no atoleiro de Aljubarrota!
O resto é o tal «zen»...
Pires, o teu dicionário (não tenho nenhum etimológico português) diz de onde vem a terminação "afre"? - "Mil" é a raiz latina de "Milvus", e agora "Milan" em espanhol e creio que em italiano...
O simbolismo do milhafre é engraçadíssimo. Outro tema para um dia mais tarde...
... o (não) monárquico é que não percebi :)
- - - - - - - - - -
Clavis, vou enviar... mas acautela-te com a história versão "Grande Galiza" :)
- - - - - - - - - -
Klatuu: não sei de nenhuma posição do MIL a favor da "Portugaliza".
Quanto ao pique de Aljubarrota, devo-te dizer que o desgraçado devia estar com saudades da família. Mas não penses que o "São Nuno" lhe deu, no dia seguinte, uma vida melhor do que a que teria dado outro nobre qualquer: no séc. XIV, não estava em jogo a 'liberdade' de terra nenhuma: não tinham nascido ainda os Garibaldis e os Lenines. Estava em jogo o estatuto de grupos rivais de nobres, e ganhou o mais ambicioso e menos preso aos valores de fidelidade. Sobre Aljubarrota e o Nuno, é melhor não me puxarem muito pela língua... (o que não quer dizer que não esteja contente com o nascimento do Infante D. Henrique, e de outros... que seguramente não teriam nascido se João de Aviz tivesse morrido na batalha. Mas não costumo ser avisado pelos anjos de qual vai ser o futuro do meu povo.
Casimiro, infelizmente a única indicação que me dá é que é o mesmo que o que nasceu ou habita na província do Minho; Minhoto. Acabei de confirmar.
O (não) monárquico é para o Klatuu: ele diz ser o Rei, um Rei embuçado, e eu nunca votaria em alguém a quem não visse o rosto (brincadeira ;).
PS: Volto mais logo, já vi que há posts novos mas agora está na hora do meu Sporting.
Abraço.
Irrelevante, Casimiro: a repetição de um tema passa a «versão oficial». O que não vejo neste blogue é nenhuma preocupação com a fome e a miséria que aflige tanto lusófono!
Quando é que viste o rosto de um Presidente, Pires? Têm todos, pelo menos, duas caras...
P. S. Quanto a Aljubarrota, é evidente, Casimiro, que concedo à tua imaginação os mesmos direitos que à minha...
Klatuu, não estamos a falar da mesma coisa, quanto a Aljubarrota. Quanto à fome e à miséria - isto é, quanto ao que não seja o sexo da sombra de um anjo - estou pronto.
Abraço!
Não estamos a falar da mesma coisa em tanta coisa...
Nota:
Não defendo a Portugaliza, mas a sobrevivência e promoção da língua portuguesa da Galiza, a continuidade cultural e de mentalidades nas duas bandas do Minho e o livre direito dos galegos a decidirem por si.
E digo mais: quem defende a anexação da Galiza (pura e simples) faz-me um péssimo deserviço à lusofonia... E "anexações" imperiais não fazem parte da gramática do MIL.
Mas defender uma federação paritária, justa e livre de povos ibéricos... Essa era a posição de Agostinho e a minha, dentro do MIL.
Não, essa não era nenhuma posição de Agostinho da Silva - indica-me a fonte.
Enviar um comentário