Sendo, desde
logo, o nosso descentramento de cariz espacial, geográfico – daí a nossa
“situação finistérrea” –, ele é também, senão sobretudo, um descentramento de
cariz temporal, histórico. Como escreveu José Marinho, esse descentramento
histórico é de tal modo acentuado que “nos pensadores de maior consciência
teorética ou especulativa, emerge o pensamento português alheio ao tempo da
modernidade”.
Para muitos,
justifica-se esse desfasamento pelo nosso proverbial “atraso”. Para esses,
estranho seria, aliás, que, estando Portugal “atrasado” em relação aos mais
“avançados” países da Europa nos mais diversos domínios, não o estivesse também
no domínio da filosofia. Para esses, a par de um défice económico, social e
político, deve pois mencionar-se um défice cultural, senão mesmo
civilizacional, que, por sua vez, se consubstancia num alegado défice
filosófico. Eis, em suma, a opinião mais generalizada e, dir-se-ia, a mais
“sensata”.
Não
propriamente por ter “prazer em discordar” – prazer esse que, aliás, assumiu
não ter – não é essa, contudo, a visão de Marinho. Daí, desde logo, esta sua
dúvida, esta sua interrogação: se Portugal, enquanto essa “região espiritual, a
mais agudamente cristã da Europa, que os nossos ‘inteligentes’ desde Luís
António Verney vêm considerando a mais atrasada, a mais improgressiva (…), não
será, noutro sentido, a mais adiantada, a que primeiro tentou a grande aventura
da terra, esgotou os caminhos e ficou à espera que a experiência humanista
chegasse à nova encruzilhada”.
Ensaiemos
aqui defender essa perspectiva. Não porque, em certos domínios, a situação de
Portugal não seja de “atraso”, ou, pelo menos, de “desfasamento”. No entanto,
esse “desfasamento” pode, desde logo pela distância que gera, fazer emergir uma
visão mais funda. Eis, ainda, o que José Marinho expressamente defende – nas
suas palavras: “Separados dos caminhos da Europa, o que não é coisa a lamentar
liricamente ou a verberar polemicamente, os portugueses têm por vezes sinais
inequívocos do que pelo mundo vai.”. Nessa medida, esse nosso “desfasamento”
não tem, pois, que ser visto como uma “insuficiência” ou como uma “impotência”,
mas como algo que nos pode – sublinhe-se, o “pode” – fazer ver mais fundo, mais
longe…
Eis, desde
logo, segundo José Marinho, o caso, exemplar, de algumas das teses de Sampaio
Bruno – nas suas palavras: “Pode e deve dizer-se que o nosso filósofo antecipa
com seu pensar ao mesmo tempo difuso e concentrado, algumas das formas mais
autênticas da filosofia e dos caminhos da nossa época.”; “Como para todo o
pensamento europeu desta nossa era, resultava imperioso para a filosofia
portuguesa levar ao limite o sentido da negatividade. Tal foi a façanha
decisiva de Sampaio Bruno.”. Quem conhece a sua obra, sabe o que Marinho
entende por este “levar ao limite o sentido da negatividade”: trata-se,
precisamente, de extremar a “cisão extrema” – a cisão, a “situação de extrema
separatividade [do homem] em relação a Deus e à Natureza”, e a si próprio –, dado
que só assim, na extremação da cisão, será possível potenciar a “união
cumulativa” entre “Deus”, a Natureza e o homem.
Ainda que
por outros motivos, não considera igualmente Álvaro Ribeiro que o pensamento
brunino esteja ultrapassado – ao invés, defendeu que “o pensamento filosófico
de Sampaio Bruno, longe de ser retardatário ou anacrónico, pertence à nova
idade que contamos a partir de Kant”. A mesma consideração estende, aliás, a
toda a “filosofia portuguesa” – nas suas palavras: “Afastados da Europa Central,
por situação geográfica e por missão histórica, desatentos à aurora e ao
crepúsculo da filosofia ‘moderna’, (da Renascença ao Iluminismo), talvez os
portugueses preservassem dessa maneira uma qualidade oculta mas original;
assim, o que na linha internacional parece marcha retardatária, talvez possa
ser interpretado como fidelidade nobilíssima, se não como astúcia antevisora.”.
Eis,
igualmente, a perspectiva de Agostinho da Silva: não devemos lamentar esse
“desfasamento”, dado que é ele que nos “salvaguarda” e que pode vir, inclusive,
a reorientar a Europa, todo o Ocidente – nas suas palavras: “…quando a técnica
tiver esgotado todas as suas possibilidades, quando a economia protestante se
verificar plenamente anti-humana, quando a centralização estatal se revelar
estéril, Portugal virá de novo construir o seu mundo de paz, por maior que
tenha de ser o seu sacrifício: mundo de uma paz que não surja como a Romana ou
a Inglesa, do exterior para o interior, de um César para os seus súbditos, dos
tribunais para os corpos; paz que se realize antes de tudo nas almas, lei que
seja inteiramente não escrita e, no melhor de si, informulada; Reino de Deus
que surja pela transformação interior do homem.”. Na perspectiva de Agostinho,
eis, aliás, a “missão” – ou, melhor dizendo, a “acção” – pela qual se
cumpririam, enfim, as Descobertas.
Crítico
impiedoso deste tipo de perspectivas foi Eduardo Lourenço. Daí, a título de
exemplo, a sua reiterada denúncia do “irrealismo prodigioso da imagem que os
portugueses fazem de si mesmos”, “irrealismo” esse que, alegadamente, se
consubstancia nos diversos “mitos compensadores da nossa frustração de antigo
povo glorioso, como o de um Quinto Império, que terá
Se, para
Eduardo Lourenço, as circunstâncias que explicam o nosso “atraso” são também
aquelas que “nos tornaram imunes, ou mais imunes que outros, à tentação
niilista”, para Miguel Real, analogamente, esse é um “atraso”, um “defeito”,
com virtualidades positivas – daí, a título de exemplo, estas suas palavras: “A
virtude deste ‘defeito’ poderá ser actualmente postulada como diferença
positiva, não enquanto uma barreira ao imperialismo da world culture americana do fast
food e da fast live, mas como uma
alternativa humanística, generosa, tolerante (a famosa ‘Espanha das Três
Religiões’), como se pudéssemos oferecer ao mundo uma forma de vida baseada numa
lenteur, que se adapta aos ritmos e
tessituras ambientais e que secundariza o progresso técnico em nome de um
estado de vida ocioso. À vitesse
americana e japonesa como padrão universal de comportamento, a nossa diferença
permite-nos saborear a vida como uma lenteur
espessa (…), que, aspirando ao melhor que a Europa tem (qualidade de vida), não
suga dela o industrialismo sem sentido esgotador de recursos e esbanjador de
mercadorias.”.
Tal como estes dois pensadores, também José Marinho anteviu nesse
nosso “atraso” um alcance outro, que não só nos tornou “mais imunes à tentação
niilista”, como, cumulativamente, nos abriu um outro Horizonte. Como nos
adverte, nada está, porém garantido – “tudo depende de filosofarmos”: “A
situação de Portugal se afigura pior num sentido e noutro sentido melhor que a
dos povos de além-Pirenéus. Pior, porque nos faltou e falta o processo de
desenvolvimento científico com tudo quanto o acompanhou, com a experiência e
gradual reflexão que lhes foi própria, dos povos nossos irmãos mais próximos
dos quais nos distanciámos. Melhor porque, justamente por nos ter mantido na
obstinada fidelidade ao que foi, se torna possível, com a cisão extrema para
todo o passado, na floresta de maravilhas e terrores a que a Europa veio e para
a qual arrasta o mundo, uma perspectiva diversa e complementar, e talvez não
menos funda, ou não menos lúcida que a deles. Tudo depende evidentemente de
filosofarmos e das condições de filosofarmos.”. Estaremos, contudo, de facto
disponíveis para isso?, para nos pensamos na nossa “situação”?
2 comentários:
Amigo,
Parabéns pelo texto sobre Lourenço, Marinho e Agostinho.
Forte abraço.
Miguel Pedrosa Machado
Meu caro amigo,
Felicito-te pela excelência do texto.
Parabéns
Carlos Vargas
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