O jornal “Charlie Hebdo”, tornado
mundialmente conhecido pelo atentado deste mês de Janeiro, sempre teve um
percurso polémico, nas suas sucessivas denominações. A sua génese remonta a
1960, sob o nome de “Hara-Kiri”, passando, a partir de 1969, a designar-se
“Hara-Kiri Hebdo”. Com esta denominação, o jornal veio a ser interditado pelo
governo francês dois anos depois, por causa de um número em que,
simultaneamente, se “ironizava” com a morte do Presidente Francês Charles de
Gaulle e a tragédia então ocorrida numa discoteca francesa, em que 146 pessoas,
devido a um incêndio, haviam igualmente falecido – o que é oportuno recordar,
agora que alguns procuram absolutizar a liberdade de expressão.
Para iludir a interdição, o mesmo
grupo de cartoonistas funda então o actual “Charlie Hebdo”, que, entre 1981 e
1992, se auto-suspendeu por razões financeiras. Em 2006, alcança uma
significativa popularidade ao republicar as célebres caricaturas a Maomé
produzidas pelo jornal dinamarquês “Jyllands-Posten”, que tanta celeuma
causaram no mundo islâmico – e que foram, presumivelmente, a razão próxima da
destruição, por uma bomba incendiária, da sua redacção, em 2011, e agora deste
morticínio, que atingiu 12 pessoas, incluindo oito jornalistas deste semanário
satírico.
Este morticínio – para mais, com
os vídeos difundidos – provocou um tão generalizado quanto justo repúdio, a
que, sem hesitação, me associo. Mas não ao ponto de dizer também “je suis
Charlie”. Ao contrário de muitos, que querem fazer agora deste jornal um grande
símbolo da cultura francesa, europeia e ocidental, tenho a dizer que ele será
decerto um símbolo, um grande símbolo até, mas apenas da decadência a que
chegou a nossa cultura. Não que isso minimize, de alguma forma, o hediondo
crime cometido. Simplesmente, recuso-me, enquanto europeu e ocidental, a
valorizar algo que não o merece de todo, no seu registo grosseiro e
provocatório. E mesmo assim de forma oportunista - não visando tudo e todos,
como agora nos querem fazer crer.
E falemos enfim do sacrossanto conceito (também para mim) de
liberdade. Leonardo Coimbra, uma das figuras maiores da filosofia portuguesa,
defendeu, nas páginas da revista “A Águia", que “a liberdade é o poder do
espírito criar beleza”. José Marinho, seu “discípulo para a vida inteira”,
caracterizou-a, num dos seus “Aforismos sobre o que mais importa”, como essa
“potência invisível mas segura de transcender infinitamente todo o limite,
ligar-se por sobre toda a finitude ao absoluto e chegar a ser absolutamente”,
potência essa que, aliás, não se cumpre apenas no homem, mas, mais ampla, mais
radicalmente, em todo o ser. É desse conceito de liberdade que se fala a
respeito do “Charlie Hebdo”? Ce n’est pas
certainement le cas…
Post-scriptum - NOVA ÁGUIA em
Cabo Verde: Câmara Municipal da Ribeira
Grande de Santiago | Auditório Municipal (21.01.2015 | 15h)
1 comentário:
Renato,
se ainda se está numa situação em que se procura «absolutizar a liberdade de expressão»... isso é preocupante. Porque a liberdade de expressão deve ser absoluta... na sua origem, no seu impulso inicial, criador, divulgador. Não deve haver censura prévia. O que não quer dizer que a liberdade de expressão não tenha, não possa ter, consequências, limites... posteriormente. A haver, o meio indicado, ideal, para os dirimir é o processo em tribunal, e nunca a bala ou a bomba.
A liberdade pode e deve servir para criar beleza... mas são muitos os conceitos de beleza, quase tantos como as pessoas que existem. E também pode e deve servir para criar, deliberadamente, fealdade. É por isso que «eu sou Charlie»... não porque necessariamente concorde com tudo o que eles, naquele jornal, faziam, mas sim porque lhes reconheço o direito de o fazerem sem correrem o risco de morrerem por isso.
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