“… nós, os jovens, tínhamos a ideia que de facto a República estava em grande desordem, e continua a ser a ideia de hoje. A ideia de que naquela altura Portugal estava em risco de desaparecer do mapa, como nação independente. Na Europa, depois da Grande Guerra, a situação era de cobiça das colónias portuguesas. Evidentemente que elas estavam em risco. O próprio Portugal, pela desordem económica, pela desordem política, por tudo o que acontecia cá dentro — embora muita gente afirmasse que tudo estava bem — estava em risco de, provavelmente, se perder.
De maneira que a gente pensa, que a história, de vez em quando, tem os remédios meio brutos para que as coisas se encaminhem até ao ponto que se quer. E o que se levanta perante uma reflexão da história é, por exemplo, o problema de saber se as coisas sucedem apenas porque sucedem, porque houve algo que iniciou a história e depois jogou por aí adiante ou se, na realidade, há qualquer espécie de plano ou de pensamento coordenado que a leva por determinados caminhos e a lança em determinados acontecimentos.
O que é certo é que vem a Ditadura militar, incompetente — eles não tinham jeito para governar o país. O problema principal era por um lado o das finanças, o da economia portuguesa, mas sobretudo o das finanças, e também o problema da ordem pública. Depois surgiu um professor da Universidade de Coimbra, professor de finanças, que já tinha feito alguns comentários sobre a situação em Portugal, que foi chamado para remediar o país e que teve a frieza de alma e de certo modo a coragem de recusar o primeiro convite, porque achou que as condições propostas não eram as que ele queria e só voltou quando lhe deram todas as condições para governar à vontade. E então dedicou-se a isso, a pôr as finanças em ordem, o que não foi difícil, bastou diminuir ainda mais as possibilidades de vida do povo português para que as contas do Estado ficassem em dia e se pudesse até colocar dinheiro em Londres para render. E por outro lado ele tinha uma noção da ordem pública que não queria saber se tinha de sair de dentro das pessoas para fora ou de fora para dentro. Votou o segundo ponto, uma repressão extremamente dura... Mas a verdade é que vendo a coisa a voo largo, Portugal chegou depois, em 1974, pelas várias espécies ou pelos vários aspectos que a ditadura militar, depois civil, foi tomando, a uma posição, em que encontra, ao sair de tudo isso, um mundo completamente diferente daquele que teria em 1926. Chega ao mundo em que já não há essa cobiça do território de África e em que a própria situação levou a que os territórios africanos se tornassem independentes e, portanto, eliminassem esse risco quanto à situação de Portugal continental. Por outro lado ainda, o que aconteceu foi que sob o aspecto propriamente europeu, a Europa é já diferente, com uma Espanha também diferente e em crise, de maneira que não havia nenhum risco imediato para Portugal do lado de fora. Podia haver risco do lado de dentro, mas do lado de fora tinha desaparecido.
Então demarquei-me inteiramente da linha ditatorial. Hoje talvez tivesse percebido melhor. Suponho que hoje percebo melhor e, embora discordando da Ditadura, vejo que ela deu a possibilidade a Portugal de sair da crise em que podia ter naufragado durante a Primeira República e chegar até aos tempos de hoje em que as coisas irão naturalmente de outra maneira.
Vida Conversável, org. e pref. de Henryk Siewierski, Lisboa, Assírio & Alvim, 1994, pp. 45-46.
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