93 - Examinámos, de forma tortuosa e imperfeita, situações que achamos pertinentes para o conteúdo desta carta, abordadas a nível da civilização ocidental e actual. Não pretendemos cessar essa função, mas achamos que a altura chegou de, com frequência acrescida, dirigir finalmente a espada ambígua da palavra ao nosso espaço-tempo geográfico, histórico e cultural, àquilo que, pretensamente, nos define. Tal arrasta-nos de imediato, e em jeito resumido, para o seguinte paragrafo:
94 - É difícil e inexacto falar do que é, poética ou filosoficamente, Portugal, e depois, do que é a Lusofonia, por diversas razões. Uma sendo a globalização. Cada vez mais é mais real o seguinte: “tudo está em todo o lado”. Cada nação desperta à consciência expansionista, e composta por indivíduos de alguma sensibilidade ou ideal, sentiria neste momento o que sentimos quando dizemos, de uma forma ou de outra, que Portugal é o Mundo. Não seria semelhante "crença", apenas por isto, uma particularidade lusófona (mas há uma particularidade, uma portugalidade).
95 - Seria, pois, aparentemente necessário filtrar o conhecimento sensorial e intelectual para a cultura que nos está na raiz (essa cultura é uma reunião de muitas culturas, mas não deixa de apresentar o seu traço único, o seu ponto de reunião específico). Isto era preciso fazer sem impor a restrição, mas pela simples culturalização. A Lira Insubmissa não apresenta especiais razões de queixa no que respeita esse assunto, os portugueses reagem, mais ou menos amedrontados, ao remoinho que vai comendo, aqui e ali, a identidade (mas ainda não opinámos directamente sobre as virtudes ou os defeitos que uma forte afeição à identidade pode gerar). Há neste processo, como de resto não surpreende, equívocos, como por exemplo o caso do neo-nazismo em Portugal. Compare-se o nível do mesmo com o nível do revivalismo escocês.
96 - No âmbito da Lusofonia, e que é o que mais faz sentido para o autor da carta, há a pensar o princípio contrário: não é a nossa identidade, ou o nosso sentido de identidade, que se prendeu com os países lusófonos, embora ela lá haja marcado, mas outra coisa, o nosso espírito, por obra da palavra, ou seja, por articulação meticulosa da linguagem e da memória, se não dos mais jovens, dos pais dos mais jovens: são terras por descobrir para as gerações mais novas, mas ainda assim terras que descobriram os seus espíritos, tanto como as tradições sagradas antigas se faziam passar e semear oralmente – mas também aqui a língua voltava a ter certa importância (vamos tentar por agora não especializarmos a carta nessa questão). A realçar que, aprendendo a nossa simbólica e a nossa língua, aquele que antes lhe era estranho não é apenas penetrado pelos nossos costumes, mas os penetra igualmente, e com ele a herança dos seus próprios costumes.
97 - Ainda explicativo dos parágrafos anteriores: a substituir o orgulho nacional de nascente no neo-nazismo, seja lá o que esse orgulho for, algumas pessoas voltam-se para a lusofonia: é menos escandalizante, é até louvável (de vez em quando chega a lembrar as obras de caridade), e traz mais à memória a intelectualidade. Mas teria sido possível uma busca pelo paraíso, teriam sido possíveis descobrimentos, sem sair de casa, ou melhor, sem sair de uma narcísica casa de espelhos? Não sei se foi possível na devida época, mas no que respeita à identidade do país (independentemente da utilidade interna que deu às suas expansões), diria que não. Isso foi, no entanto, acontecendo gradualmente, e hoje é, se feito com introspecção, possível, tratando-se somente de uma tomada de consciência de um facto já ocorrente por detrás das cortinas. A lusofonia, como a Lira Insubmissa a entende, não é Portugal nos países lusófonos, ou a sua imagem, nem a portugalidade nos países lusófonos, embora o seja também, sendo-o tanto, no entanto, como a força anímica em nós dessas terras e cultural desses países onde estivemos e, não esquecendo, por elo e consequência, destes vários países e destas várias regiões umas nas outras. É uma coligação de terras várias fundidas e expressadas nos homens.
98 - Havia pois que se dar importância a um revivalismo em cada um dos países lusófonos (mesmo e especialmente quando implica uma cultura pré-portugal), semelhante em espírito ao nosso, e sempre, todavia, com uma presença lusófona, e nunca fechada nem, no nosso caso, à União Europeia, nem, em todo o caso, ao resto do mundo.
99 - Manter a consciência do ser exige o equilíbrio do equilibrista, a identidade tem tendência a fechar-se para sobreviver e fechando-se morre, definha, e gera doenças à vizinhança. Dissolvendo-se, torna-se mecânica e obsoleta. Uma pátria deve ser tratada com higiene alquímica.
100 - Tendo isto em vista, aplicar as nossas consciências ao progresso, mas mais do que ao progresso, que decorre hoje de forma automática e inumana, à sua (re)definição humana, consciente e presencial. Em breve, cada homem terá o tamanho e o peso do mundo, e é preciso que saiba, nesse dia, ser livre e saudável (a leveza do mundo, um mundo que não o esmagará ou anulará).
André Consciência
1 comentário:
Muito bem!
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