O escritor Mia Couto causou polémica ao solicitar ao Bastonário dos Advogados equilíbrio na actuação da Ordem dos Advogados no contexto da crise pós-eleitoral em Moçambique. Críticos desconfiam que Mia Couto esteja a “cooperar com um regime extremamente repressivo” em nome dos seus interesses empresariais, ao não mencionar numa carta a violência excessiva das autoridades policiais contra os cidadãos.
A reivindicação indignou alguns sectores da sociedade moçambicana que reagiram imediatamente ao teor da referida carta, como é o caso do escritor Jessemusse Cacinda. “A sua voz a nível internacional acaba dando a ideia de estar a transmitir uma voz que representa Moçambique. E, por via disso, é natural que, quando os moçambicanos não se sentirem representados nos seus pronunciamentos, mostrem indignação”, reage Cacinda.
Por sua vez, o jornalista e activista social Zito Ossumane considera “Mia Couto um colonizador disfarçado” por este não ser o primeiro posicionamento do escritor que indigna alguns sectores no país.
Ossumane aponta Mia de ter feito acusações graves aquando da organização de uma marcha em homenagem ao rapper Azagaia, em 2023. Mia Couto teria considerado os organizadores como “marionetes de partidos políticos e influências externas”.
Na sequência destas declarações, Ossumane diz que o escritor de renome internacional “está a tentar condicionar o pensamento dos cidadãos moçambicanos”.
Entretanto, a Constituição que prevê o direito à manifestação também consagra o direito à liberdade de expressão, mesmo que esta não vá de encontro ao sentimento de uma maioria. Por outro lado, um pedido para que não prevaleça o lema “dois pesos e duas medidas” não representa crime ou ofensa.
A Deutsche Welle perguntou: Seria justo condenar o escritor por algo que lhe é legítimo enquanto cidadão? Em resposta à DW, Jessenusse Cacinda relativiza esses direitos, porque, a seu ver, Mia Couto escolheu estar do lado da injustiça.
“A partir de momento em que um escritor fica em silêncio diante de repressão, assassinatos cometidos pela polícia e um regime contra cidadãos, torna-se problemático crer nesse escritor”, afirma.
Para Jessenusse, a carta de Mia Couto “mostra um posicionamento totalmente parcial, em que, por um lado, não condena a repressão, mas por outro condena o facto do Bastonário dos Advogados estar a exigir justiça eleitoral por mover procedimentos para defender cidadãos”. De acordo com Jessenusse, “definitivamente ele está a defender que haja denegação de justiça”.
Motivações financeiras
Numa entrevista recente ao jornal brasileiro “O Globo”, Mia Couto revelou que recebeu “ameaças veladas” e que foi pressionado a apoiar o candidato presidencial Venâncio Mondlane, algo que se recusa a fazer. No entanto, assegura na referida entrevista que não vai ser “censurado pelo medo”.
Porém, os críticos ouvidos pela DW desconfiam da existência de motivações financeiras por detrás dos posicionamentos do escritor moçambicano.
Zito Ossumane diz que Mia Couto é respeitado por representar “parte essencial da cultura” moçambicana. “Mas faz-me lembrar que Mia Couto tem interesses económicos muito assentes que ele tenta defender por conta deste regime”, sustenta. “A saída da FRELIMO não lhe favorece em nenhuma medida, porque tem empresas. Não é só a fundação da sua família, mas são empresas de consultoria para a área ambiental, etc.”, reforça Zito.
A Impacto, empresa de Mia Couto, presta serviços na área ambiental à Anadarko – multinacional do gás que opera no norte de Moçambique -, bem como a outros relevantes projectos económicos para o país. Jessemusse Cacinda recorre à história para mostrar que os escritores estiveram ligados ao poder político desde sempre e deixa claro que actuação persiste até hoje.
“Questões como estas, de certa forma, levantam a suspeita de que a pessoa esteja a cooperar com um regime extremamente repressivo”, elucida Cacinda, que lamenta o facto disto estar a acontecer este ano. “Estamos a assistir ao Mia Couto a fazer pronunciamentos apelando ao diálogo, mas chamando atenção para que os manifestantes não pilhem bens. Entretanto, há vídeos a circularem em que mostram a polícia a pilhar bens. Há jovens de joelhos e a polícia a atirar contra eles. Em nenhum momento no discurso deste escritor que no espaço internacional é visto como a voz de Moçambique, ele se insurge contra isso”, critica Cacinda.
Perante a dimensão da incredibilidade, o jornalista Ossumane lamenta “ver um monstro da literatura moçambicana, africana e lusófona nessa condição”, por lhe causar “problemas de interpretação”. Lembra que Mia Couto defendeu as liberdades no processo de descolonização de Moçambique. “E é-me difícil acreditar que neste momento se esteja a prestar a um papel tão ridículo como este”, afirma Ossumane.
Contactada pela DW, a Ordem dos Advogados de Moçambique disse que se irá pronunciar em breve “sobre este e outros aspectos ligados à situação política do país”.
“Que se procure a verdade nos consensos e no diálogo”. In “Jornal Tribuna de Macau – Macau com Nádia Issufo “Deutsche Welle”
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