Paulo Freire (1921-1997), figura de
referência da Filosofia da Educação no Brasil, não tem tido em Portugal um
muito significativo eco. Exemplo disso é a sua muito reduzida presença na obra
de Manuel Ferreira Patrício (1938-2021), provavelmente, para não dizer
certamente, a figura mais relevante da Filosofia da Educação em Portugal na
segunda metade do século XX. Com efeito, ao lermos os seis grossos volumes das
suas Obras Escolhidas, recentemente
editadas (coord. de Renato Epifânio e Samuel Dimas, Ed. MIL, 2021), verificamos
que as referências de Manuel Ferreira Patrício a Paulo Freire são muito
escassas – e não por Manuel Ferreira Patrício não conhecer a obra de Paulo
Freire.
Atentemos num desses exemplos: um conjunto de
textos redigidos nos finais dos anos 80, coligidos sobre o título “A
Libertação do Homem” (in vol. I, pp. 141-179). Na primeira da obra, intitulada
“A Libertação do Homem e a Filosofia”, começa Manuel Ferreira Patrício por escrever:
“O tema da libertação do homem é bem antigo. Encontramo-lo, por exemplo, no
Antigo Testamento. É o tema nuclear do Novo Testamento. O mito de Prometeu é o
mito da libertação do homem, trazida por um deus do Olimpo através da doação do
fogo. A alegoria platónica da caverna é mais uma versão do anseio do homem pela
sua libertação. Toda a filosofia sapiencial, de Pitágoras a Plotino, de
Agostinho a Malebranche ou Espinosa, de Avicena a Ibn Arabi, de Fichte ou
Schelling a Heidegger, é uma filosofia da libertação do homem.”.
De igual modo, como logo de seguida
acrescenta, “toda a filosofia materialista, de Demócrito a Feuerbach e de
Feuerbach a Marx, é uma filosofia da libertação do homem”. Mas não, claro está,
acrescentamos agora nós, da mesma maneira. No caso da corrente em que Manuel Ferreira Patrício
insere Paulo Freire – a da “pedagogia da libertação” –, podemos questionar se
essa libertação aí em causa não será demasiado curta. Eis, precisamente, a
questão a que Manuel Ferreira Patrício procura responder, analisando
sucessivamente o “paradigma platónico da libertação do homem”, “a libertação
do homem em Espinosa: da escravidão imposta pelas paixões ao amor intelectual
de Deus”, “o problema da libertação do homem em Kant”, o “sentido e conteúdo
da ‘libertação do homem’ no quadro da filosofia utilitarista de Jeremias
Bentham”, o “sentido e conteúdo da ‘libertação do homem’ no quadro da filosofia
utilitarista de Stuart Mill”, “a libertação pela filosofia no pensamento de
Edmundo Husserl” e, finalmente, a “defesa da utilidade da filosofia por Epicuro”.
Tudo isto para concluir: “Na época
contemporânea W. Dilthey compreendeu, talvez melhor do que qualquer outro
filósofo, a pureza da concepção platónica da filosofia: a filosofia encontra a
sua culminância na plena formação do homem, ou seja, na plenitude da entrega do
homem a si próprio. A filosofia culmina, portanto, na antropagogia. Pela
antropologia, o homem conhece-se a si mesmo; pela antropagogia, aperfeiçoa-se e
cumpre-se no seu ser, à luz do conhecimento que tem de si mesmo./ Esta é uma
ideia platónica. Platão continua a ser o lugar filosófico de todos os
‘regressos’. O ‘regresso’ que hoje se impõe é um regresso aberto e não
totalitário ao grande filósofo de Atenas. Nos dois últimos milénios e meio
numerosos têm sido, no fim de contas, os seus discípulos, mesmo quando
explicitamente o renegam. Por outro lado, talvez seja preciso negá-lo em parte
da letra, para o afirmar na plenitude do espírito. É que não poderá haver
libertação sem liberdade, nem racionalidade universal assente no esmagamento
das nacionalidades particulares e singulares” (ibid., pp. 155-156).
Ou seja, em suma: para Manuel Ferreira Patrício, a “pedagogia da libertação” prefigurada por Paulo Freire é demasiado curta, sobretudo por partir de uma grelha marxista em que os factores materiais e sociais se sobrepõem a todos os demais – em particular, aos de ordem cultural. Ora, na dialéctica freiriana do opressor e do oprimido, ignora-se que a cultura do opressor pode servir para nos elevarmos, sendo assim, em última instância, libertadora. Apenas um exemplo: quando o Império Romano se estendeu à Península Ibérica, ele foi decerto “opressor”, como todos os Impérios. Culturalmente, porém, o Império Romano promoveu um salto qualitativo, de que ainda hoje somos tributários. Estulto seria hoje, por uma póstuma consciência de opressão, renegar todo esse legado. Manuel Ferreira Patrício, decerto, não o procurou fazer, bem pelo contrário, dada a primazia concedida à Cultura, como já tivemos a oportunidade de salientar: “Há pois uma absoluta coerência em Manuel Ferreira Patrício, na sua vida e no seu pensamento – a primazia dada à Cultura determina as suas posições quanto à Escola e à Educação, as suas posições filosóficas e, inclusivamente, as suas posições políticas: caso do seu assumido não-marxismo.” (in vol. V, p. 7).
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