Na vasta e
rica bibliografia de Pinharanda Gomes, existe uma obra, intitulada Liberdade de Pensamento e Autonomia de
Portugal, onde, para além de uma série de textos do próprio autor relativos
à questão da existência de uma “filosofia portuguesa”, se encontra uma
igualmente vasta e rica antologia de posições relativamente a essa mesma
questão. Como por essa antologia é dado verificar, a maior parte daqueles que a
contestam fazem-no, contudo, não questionando o conceito, mas atendendo à nossa
história.
Diagnóstico
particularmente contundente foi, a este respeito, o de Leonardo Coimbra, aquele,
já célebre, em que caracteriza a nossa terra como a “mais antifilosófica do
Planeta”, expressão que, não sem alguma ironia, José Marinho considera “feliz e
adequada” – dado que, nas suas palavras, “por tal [expressão] não cabe entender
terra onde não há filósofos seriamente dotados ou vocações filosóficas
evidentes, mas pátria descaroável para homens de espírito quando estes ousam pensar
fora ou para além da opinião judiciosa, fora ou para além da tradição
formalizada ou do progressismo de importação e imitação, e, para tudo dizer,
das intenções e presunções feitas e acabadas das contrapolares ideologias”.
Eis, aliás,
a perspectiva que Marinho nos reiterou em múltiplas passagens da sua obra – a
título de exemplo, atentemos nestas: “Em poucos países (…) terá o pensamento
filosófico, como em Portugal, existência mais intermitente, mais dramático
destino.”; “…em toda a idade o filósofo como o poeta, e em geral o homem
portador de alto sentido da vida espiritual, é um inadaptado. Na contingência
portuguesa, porém, não está ainda visto como essa inadaptação resulta no caso
do filósofo particularmente grave.”; “Os portugueses (…) desconfiam dos seus
filósofos. Desconfiam de uns porque são poéticos e parecem agora desconfiar de
outros porque o não são.”.
Daí ainda o
ter denunciado “as condições que tornaram neste país mais difícil ainda que
noutros a situação do filósofo” – e o ter falado, nessa medida, da “mesquinhez
da nossa terra”, ou da “cerração terrível que em Portugal impede o espírito”,
chegando a dizer-nos que “para fazer como pensador grandes coisas, é necessário
não ter nascido em Portugal”. Daí ainda o ter caracterizado o povo português
como “adverso à filosofia, à grave e séria responsabilidade de filosofar”, tese
que concretiza das mais variadas formas em múltiplas passagens da sua obra.
Ainda assim,
não deixou José Marinho de se referir à nossa “tradição [filosófica]
multissecular, tradição inegável ainda mesmo quando haja de reconhecer-se
descontínua, como eu escrevi já, ou difusa e dispersiva, como outros têm
escrito”.
De resto, José
Marinho afirmou expressamente que “os nossos antepassados desde o século XII
não estiveram a dormir em matéria de filosofia”, antes “puseram como puderam a
interrogação fundamental e os consequentes problemas”, assim deixando uma
tradição “cujo significado e valor hoje se impõe determinar.
Daí ainda,
nomeadamente, a sua referência expressa a Pedro Hispano, a partir do qual, como
defendeu, “começa uma série ininterrupta de pensadores que vêm até aos nossos
dias” – de características, aliás, próximas, senão mesmo comuns.
Em outras passagens
da sua obra, enalteceu ainda mais José Marinho o valor da nossa tradição
filosófica: “…é extraordinário que, num pequeno povo, tantas virtualidades do
espírito e do pensamento, embora por vezes insequentes, se tenham afirmado.”.
Que esse
valor não seja ainda em geral reconhecido, eis o que, na sua perspectiva, só
pode decorrer da ignorância e/ou da má-fé, dado que, como ele próprio escreveu,
“quem de boa mente quiser refazer os caminhos que percorri, ficará sem dúvida
surpreendido de numa breve centúria as concepções essenciais de filosofia
surgirem uma após outra, com diversa fortuna, na pátria que um dos nossos
filósofos mais influentes designou como ‘a terra mais anti-filosófica do
planeta’”.
Ainda assim,
não deixou o autor de Verdade, Condição e
Destino no pensamento português contemporâneo de antecipar esse
reconhecimento: “Supomos, mas tal não depende só de nós, que em breve o valor
da filosofia portuguesa no quadro do pensamento da nossa Península e em relação
ao pensamento europeu aparecerá a toda a luz, já quanto aos temas que melhor
soubemos desenvolver, já quanto àqueles que nos não foi dado tratar. Tal será
possível, para os portugueses das contrapolares correntes, quando se sublimar o
patriotismo exorbitado ou ressentido, quando os extremos da apologia e da
negação se transmutarem, quando em filosofia como em tudo o mais os portugueses
não carecerem já de obstinar-se em alcançar um primeiro lugar, ocupando activos
e despertos o lugar não de todo modesto que lhes coube e tardam em reassumir.”.
A lucidez com que José Marinho
formula este voto é a mesma que podemos encontrar na sua visão da história da
nossa filosofia. Não é esta uma mera visão laudatória. É antes uma visão que,
valorizando devidamente, ainda que por vezes de forma arrebatada, as virtudes,
não deixa de assinalar, por vezes até de forma bastante crua, as debilidades.
Daí, desde logo, a sua denúncia do escolasticismo que teima em permanecer em
nós – “Escolásticos fomos, escolásticos continuamos sendo. Simplesmente, agora
não somos já escolásticos à maneira do século XVII (…).”–, daí ainda, na
esteira dessa denúncia, esta sua pertinente questão: “Não será com efeito
grande ilusão a de supor que antes de estar completa a actualização da nossa
cultura, antes de esta ter sido liberta dos últimos vínculos da superstição
escolástica, se pode pensar em Portugal alguma coisa de seguro e sério?”.
Na sua visão, é com Amorim
Viana que nos começamos a libertar desses “últimos vínculos da superstição
escolástica” – não tivesse sido ele “o pensador que procura pela primeira vez
garantir a autonomia do pensamento filosófico em Portugal”. Ainda segundo autor
de Verdade, Condição e Destino no
pensamento português contemporâneo, contudo, é apenas com o movimento da
“Renascença Portuguesa” que essa “mais funda transmutação na vida espiritual
portuguesa” ocorre – nas suas palavras: “Com a ‘Renascença Portuguesa’, e com
tudo quanto se lhe segue em afinidade espiritual ou crítico contraste, surge a
mais funda transmutação na vida espiritual portuguesa desde o Renascimento.”.
Sendo que, nesta esteira, José Marinho não deixa de sinalizar um “crítico
contraste” entre “espírito cósmico e religioso da Renascença” e “o sentido antropológico da Presença”, por mais que, em 1929, numa carta a Adolfo Casais
Monteiro, seu colega na Faculdade de Letras do Porto, tivesse revelado alguma
esperança quanto ao futuro da Presença.
Nas suas palavras: “Diz-me que está trabalhando no seu estudo sôbre Eça e que
espera trazê-lo pronto. Venha êle! A intenção de Gaspar Simões parece-me
optima, oportuníssima. Uma série de estudos sérios, reflectidos, penetrantes
sôbre os nossos escritores esta será a pedra de toque da agremiação ou
movimento artístico que pretenda tomar para si o papel de direcção e
orientação. Não foi já o papel que eu há muito quiz desempenhasse a Renascença?
Entramos numa frase de compreensão e de juízo. O modernismo não será em
Portugal mais do que um motivo de obras de valor médio (como o romantismo,
naturalismo, realismo, simbolismo e saudosismo) se não trouxer no seio uma
crítica e uma filosofia, purgadas já dos defeitos lírico-retórico-eruditos dos
tradicionais. E eu julgo que vós outros, os modernistas, ainda não tendes disto
uma muito clara consciência. Mas haveis de chegar a ela, sob pena de
comprometerdes uma vez ainda as possibilidades que agora se estão a
oferecer-nos de tirar o pensamento e a literatura portuguesa dêste pôço que é a
nossa vida de espírito, pôço em que eu às vezes me sinto asfixiar, eu e tudo
aquilo que o destino quiz trouxesse no meu ser à mesquinha e pobre terra em que
nasci.”
Num texto integrado na obra A
Poesia de Fernando Pessoa (INCM, 1999, 2ª ed., p. 167), escreveu Adolfo
Casais Monteiro o seguinte: “Eu sempre disse ao meu querido José Marinho que
ele não entendia nada de poesia; mas, como insiste, di-lo-ei desta vez em letra
de forma. Acontece muitas vezes aos que só vêm na poesia o alimento que ela
fornece às suas meditações filosóficas (…).” No seguimento desta passagem
mordaz, chega ainda a ironizar com a “diatribe [de José Marinho] contra a
poesia ‘subjectiva’”, concluindo, em ironia final: “até parece um colaborador
da Vértice!”.
Partindo da posição de que parte Adolfo Casais Monteiro,
compreende-se esta sua crítica mordaz. No entanto, a posição de que parte José
Marinho é, de facto, assaz diferente, infinitamente diferente…. Com efeito, no
retorno à nossa mais originária tradição filosófica, propõe-nos José Marinho um
caminho outro – um caminho de requalificação
do fenómeno estético. Para tanto, procura, desde logo, reabilitar o conceito de
“belo”. Não já, contudo, enquanto mero conceito estético – pois que, para
Marinho, “o belo” não era apenas um fenómeno estético, mas, mais profundamente,
a expressão de um processo ontológico: do processo de realização do ser, mais
propriamente, daquele que mais verdadeiramente é em todo o ser, em cada um de
nós.
Designou Marinho esse processo como o processo de realização do
próprio “espírito”. Daí a sua tese, sintetizadora de todo o seu pensamento
estético: “Nada iguala em beleza o fluir espontâneo e perfeito de um
espírito.”. É a luz de tal assunção do fenómeno estético que José Marinho
considera também o fenómeno artístico – em síntese, poderíamos enunciar a sua
tese do seguinte modo: a arte, em todas
as suas formas, será expressão do espírito, do seu processo de realização, ou
não será. Daí que, no seu entender, o fenómeno artístico, mais propriamente
considerado, se consubstanciasse muito mais na pessoa do artista do que na sua
obra, na obra de arte.
Nessa medida, não devemos pois procurar a “essência da arte” nas obras mas sim, antes, no processo que lhes subjaz, ou seja, no processo da sua criação. Eis, em suma, o regressivo caminho que José Marinho nos propõe. Porque regressivo, é esse um caminho de desconstrução – de desconstrução da obra de arte enquanto obra. Importa pois, por isso, desconstruí-la, esventrá-la, em busca da seiva, do sangue, que ocultamente a anima – mais profundamente ainda, em busca da mais originária fonte em que todo o processo de criação se inicia. Eis, com efeito, o oculto alcance, o oculto cais, desse regressivo caminho que José Marinho nos prefigura…
1 comentário:
Precioso texto esse teu «Entre a Renascença e a Presença».
Vale!
Rodrigo Sobral Cunha
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