No Brasil, seguiram caminhos muito diferentes entre si: Clarice Lispector mais na área da Literatura, Vilém Flusser mais na área da Filosofia. Em comum, porém, desenvolveram um crescente e assumido amor pela língua portuguesa e pelas suas potencialidades – quer literárias, quer filosóficas –, muito incomum entre os lusófonos de nascença, (quase) sempre mais predispostos a desprezar a nossa língua.
2. Comecemos
por Clarice Lispector. Na sua obra A Descoberta do Mundo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1984), em jeito de diário[1],
partilha connosco algumas passagens que expressam bem o modo como se tornou uma
amante da língua portuguesa. Atentemos, por exemplo, no que escreveu a 14 de Novembro
de 1970:
“Esclarecimentos – explicação de uma vez por
todas
Recebo de
vez em quando carta perguntando-me se sou russa ou brasileira, e me rodeiam de mitos.
Vou
esclarecer de uma vez por todas: não há simplesmente mistério que justifique
mitos, lamento muito. E a história é a seguinte: nasci na Ucrânia, terra de
meus pais. Nasci numa pequena aldeia chamada Tchechelnik, que não figura no
mapa de tão pequena e insignificante.
Quando
minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os
Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchechelnik
para eu nascer, e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de
idade.
Sou
brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser
brasileira nata.
Fiz da
língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a
para palavras de amor. Comecei a escrever pequenos contos logo que me
alfabetizaram, e escrevi-os em português, é claro. Criei-me em Recife e acho
que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é viver mais intensamente e de perto a
verdadeira vida brasileira que lá, no interior, não recebe influência de
costumes de outros países. Minhas crendices foram aprendidas em Pernambuco, as
comidas que mais gosto são pernambucanas. E através de empregadas, aprendi o
rico folclore de lá.
Somente na
puberdade vim para o Rio com minha família: era a cidade grande e cosmopolita que,
no entanto, em breve se tornava para mim brasileira-carioca.
Quanto a
meus r enrolados,
estilo francês, quando falo, e que me dão um ar de estrangeira, trata-se apenas
de um defeito de dicção: simplesmente não consigo falar de outro jeito. Defeito
esse que meu amigo Dr. Pedro Bloch disse ser facílimo de corrigir e que ele
faria isso para mim.
Mas sou
preguiçosa, sei de antemão que não faria os exercícios em casa. E além do mais
meus r não
me fazem mal algum. Outro mistério, portanto, elucidado.
O que não
será jamais elucidado é o meu destino. Se minha família tivesse optado pelos Estados
Unidos, eu teria sido escritora? Em inglês, naturalmente, se fosse. Teria
casado provavelmente com um americano e teria filhos americanos. E minha vida
seria inteiramente outra. Escreveria sobre o quê? O que é que amaria? Seria de
que Partido? Que género de amigos teria? Mistério.”
Sendo que, num escrito
anterior, datado de 11 de Maio de 1968, havia já redigido uma das maiores
Declarações de Amor de sempre à nossa língua – ainda nas suas palavras:
“Declaração de amor
Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela
não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo
pensamento, a sua tendência é a de não ter subtilezas e de reagir às vezes com
um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa
linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um
verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das
coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado.
Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la –
como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes
lentamente, às vezes a galope.
Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas
minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais
não bastaram para nos dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós
que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento
alguma coisa
que lhe dê vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do
encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de
herança não me chega.
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me
perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso
e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro
para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter
aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse
virgem e límpida.”[2].
3. Quanto a Vilém Flusser,
atentemos na sua primeira grande obra, Língua
e Realidade (São Paulo, Annablume, 1963) e, em particular, no seguinte
excerto, em que as potencialidades filosóficas da língua portuguesa nos
aparecem maximamente valorizadas:
“De acordo com a estrutura do
português, surge o significado futuro quando o infinitivo de um verbo é
acrescido de um sufixo correspondente ao verbo haver conjugado no presente. O
verbo haver significa originalmente algo muito próximo de ter. Houve, entretanto,
um sutil deslocamento da estrutura da língua portuguesa, que está se
processando ainda. No curso dessa transformação, o verbo ter vem usurpando o
lugar de haver. Os dois refúgios mais importantes do haver são, atualmente, o
há impessoal e a formação do futuro. Ambos estão periclitando. O há impessoal
está ameaçado pelo tem e a formação do futuro pelo verbo ir [farei = vou
fazer). Muito provavelmente o haver será finalmente deposto. No caso do futuro
isto acontecerá provavelmente porque a tendência da língua é substituir sufixos
por verbos
auxiliares. Estamos, portanto,
no caso do português, diante de um conceito de futuro em vias de transformação.
Consideremos, em primeiro
lugar, a forma antiga. O verbo haver, que faz surgir o significado do futuro,
sugere uma propriedade, uma qualidade. Se hei algo, isto é, se tenho algo, esse
algo é minha propriedade e qualifica a minha posição. O futuro, nesta forma
portuguesa, é, portanto, uma propriedade, uma qualidade do presente. Se
considerarmos que uma forma do passado em português é formada pelo verbo
auxiliar ter, por exemplo, tenho ido, devemos concluir que este conceito acidental
e qualitativo de tempo pervade toda uma face da categoria tempo na ontologia da
língua portuguesa. Lembro, neste contexto, as categorias aristotélicas
mencionadas no início deste capítulo. O tempo figura entre elas, como um dos
acidentes. A língua portuguesa concorda, neste aspecto, com Aristóteles. As línguas
alemã e inglesa discordam dele, já que nelas o futuro, conforme foi ilustrado,
não é acidental, mas substancial. Entretanto, em português, o tempo revela-se
como sendo uma qualidade, uma propriedade da substância. Não é, portanto, do
ponto de vista aristotélico, uma categoria independente, mas uma subcategoria,
já que o sistema categorial aristotélico prevê a categoria qualidade. O
conceito que rege o meu pensamento quando digo irei não é, pois, categoria no
sentido restrito. Não estou, propriamente, pensando em tempo. Estou pensando em
uma propriedade minha, a saber, no ir que tenho ao meu dispor.
Neste sentido restrito, o tempo
não é uma categoria da língua portuguesa, como o é da língua inglesa. Em
português eu tenho futuro, como força, saúde ou dinheiro. Se não estou consciente
disso, se não me dou conta dessa falta de categoria tempo em português, isso se
deve ao arcaísmo do verbo haver, que esconde o significado ter. Somente uma análise
fenomenológica como aqui esboçada faz ressurgir esse significado”. (pp. 115-117).
Tudo
isto para concluir: “Esta autêntica revolução na estrutura ontológica do
português é uma bela ilustração da força criadora que a língua possui” (p.
117).
*
Eis
o que, de resto, havia já salientado num breve mais muito incisivo ensaio, “Da Língua Portuguesa”,
publicado na Revista
Brasileira de Filosofia
(n°4, 1960, pp. 560-566). Atentemos nas suas palavras:
“O que despertou o meu amor
violento [para com a língua portuguesa] não foi, como talvez muitos possam
pensar, a sua forma externa, a sua melodia, a riqueza em vogais, a facilidade
enganadora com a qual ela se rende à boca. Muito pelo contrário, fiquei,
durante anos, repelido por essa exuberância externa, que escondeu, aos meus
olhos, a sua profundeza calma e escura”.
“O meu amor nasceu – como logo
de seguida esclarece – quando, pela primeira vez, senti-me intimamente tocado
pela trindade dos verbos ‘estar’, ‘ser’ e ‘ficar’ (…). Diante da minha visão
interna, os monstros germânicos dissolveram-se no ar, as hydras gregas
esconderam-se na sua lama primordial, e apareceram, sólidos, calmos, autênticos
e simples, o ‘ser’, o ‘estar’ e o ‘ficar’, os pilares da ontologia”.
Como
logo de seguida acrescenta: “Não dúvida que a confusão mística dos pensadores
existenciais alemães, e o fervor do nojo dos pensadores existenciais franceses
se evaporariam, se estes se decidissem aprender o português, e acompanho com
estupefacção as tentativas (aliás impossíveis) de alguns escritores brasileiros
de traduzir essa confusão e esse fervor para a sua língua. A confusão e o
fervor são resultados das ontologias das línguas alemã e francesa, inimigas do
existencialismo. A língua portuguesa, no entanto, tem uma ontologia
superheideggeriana (…)”.
Por
isso, como conclui, se forma assaz eloquente: “….todos nós, que falamos
português, somos automaticamente filósofos existencialistas (…). Creio que a
língua portuguesa, em sua inocência ontológica, clama por um filósofo que a
possua sem violentá-la, e que proclame ao mundo as belezas do ‘ser’, do ‘estar’
e do ‘ficar’, num espécie de ´prolegómenos a todo o futuro existencialismo’.
Mas, entende-se, uma tal filosofia seria intraduzível e clamaria, portanto, no
deserto”.
Como muito pertinentemente observa António Braz Teixeira, no capítulo final da sua obra A “Escola de São Paulo” (MIL: Movimento Internacional Lusófono/ DG Edições, 2016, p. 304), capítulo que tem por título, precisamente, “A ontologia linguística de Vilém Flusser”, e onde começa por se referir a este ensaio do pensador checo: “É de lamentar que, ao que se presume, visto não referir nunca nenhum deles, o pensador checo não tenha chegado a conhecer a obra de Leonardo Coimbra, em especial o livro incomparável que é A Alegria, a Dor e a Graça ou os textos de Álvaro Ribeiro em que se prosseguia um trabalho filológico-filosófico em muito convergente com o seu.”.
[1] Como é dito na nota de apresentação da obra: “Este
livro reúne, em ordem cronológica, as contribuições de Clarice que apareceram
aos sábados no Jornal do Brasil, de
agosto de 1967 a Dezembro de 1973”.
[2]
Essa já havia sido, de resto, a razão (maior) que a levara, na década de
quarenta, a solicitar junto do então Presidente brasileiro, Getúlio Vargas, a
cidadania brasileira: numa carta, datada de 3 de Junho de 1942, assumira-se
como alguém que “pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua
profissão e nisso pousando todos os projectos do seu futuro, próximo ou
longínquo” (in Correspondências, Rio
de Janeiro, Rocco, 2002, pp. 33-34).
1 comentário:
Ora aqui está mais uma análise lúcida.
O problema de um suposto rebaixamento da língua e cultura portuguesa não reside nem na língua nem na cultura, que são inatacáveis. O problema reside naqueles a quem lhes é dado voz e que são os gurus da nação, desconhecerem por completo de onde viemos, o que somos e para onde vamos. Infelizmente têm feito muito mais pela cultura e língua portuguesa, aqueles que não a têm no "sangue" do que aqueles que são pagos e apaniguados para isso.
ab
artur
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