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MIL: Movimento Internacional Lusófono | Nova Águia


Apoiado por muitas das mais relevantes personalidades da nossa sociedade civil, o MIL é um movimento cultural e cívico registado notarialmente no dia quinze de Outubro de 2010, que conta já com mais de uma centena de milhares de adesões de todos os países e regiões do espaço lusófono. Entre os nossos órgãos, eleitos em Assembleia Geral, inclui-se um Conselho Consultivo, constituído por mais de meia centena de pessoas, representando todo o espaço da lusofonia. Defendemos o reforço dos laços entre os países e regiões do espaço lusófono – a todos os níveis: cultural, social, económico e político –, assim procurando cumprir o sonho de Agostinho da Silva: a criação de uma verdadeira comunidade lusófona, numa base de liberdade e fraternidade.
SEDE: Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa)
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NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI

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Sede Institucional: MIL - Movimento Internacional Lusófono, Palácio da Independência, Largo de São Domingos, nº 11 (1150-320 Lisboa).

Desde 2008"a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".

Colecção Nova Águia: https://www.zefiro.pt/category/zefiro-nova-aguia

Outras obras promovidas pelo MIL: https://millivros.webnode.com/

"Trata-se, actualmente, de poder começar a fabricar uma comunidade dos países de língua portuguesa"

"Trata-se, actualmente, de poder começar a fabricar uma comunidade dos países de língua portuguesa"

Nenhuma direita se salvará se não for de esquerda no social e no económico; o mesmo para a esquerda, se não for de direita no histórico e no metafísico (in Caderno Três, inédito)

A direita me considera como da esquerda; esta como sendo eu inclinado à direita; o centro me tem por inexistente. Devo estar certo (in Cortina 1, inédito)

Agostinho da Silva

segunda-feira, 7 de março de 2022

Vilém Flusser e Clarice Lispector

 

1. Nasceram em 1920 dois dos mais improváveis amantes da língua portuguesa: Clarice Lispector e Vilém Flusser. Clarice Lispector nasceu na Ucrânia, numa pequena aldeia chamada Tchechelnik; Vilém Flusser, em Praga, na capital da actual República Checa. Ambos foram vítimas da sua condição judaica, ambos saíram da Europa, com as suas famílias, para o Brasil – Clarice Lispector, ainda criança, em 1922, com os seus pais e as suas duas irmãs; Vilém Flusser, já durante a II Guerra Mundial, no início da década de quarenta.

No Brasil, seguiram caminhos muito diferentes entre si: Clarice Lispector mais na área da Literatura, Vilém Flusser mais na área da Filosofia. Em comum, porém, desenvolveram um crescente e assumido amor pela língua portuguesa e pelas suas potencialidades – quer literárias, quer filosóficas –, muito incomum entre os lusófonos de nascença, (quase) sempre mais predispostos a desprezar a nossa língua.

2. Comecemos por Clarice Lispector. Na sua obra A Descoberta do Mundo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984), em jeito de diário[1], partilha connosco algumas passagens que expressam bem o modo como se tornou uma amante da língua portuguesa. Atentemos, por exemplo, no que escreveu a 14 de Novembro de 1970:

“Esclarecimentos – explicação de uma vez por todas

Recebo de vez em quando carta perguntando-me se sou russa ou brasileira, e me rodeiam de mitos.

Vou esclarecer de uma vez por todas: não há simplesmente mistério que justifique mitos, lamento muito. E a história é a seguinte: nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci numa pequena aldeia chamada Tchechelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante.

Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchechelnik para eu nascer, e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de idade.

Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata.

Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a escrever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e escrevi-os em português, é claro. Criei-me em Recife e acho que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é viver mais intensamente e de perto a verdadeira vida brasileira que lá, no interior, não recebe influência de costumes de outros países. Minhas crendices foram aprendidas em Pernambuco, as comidas que mais gosto são pernambucanas. E através de empregadas, aprendi o rico folclore de lá.

Somente na puberdade vim para o Rio com minha família: era a cidade grande e cosmopolita que, no entanto, em breve se tornava para mim brasileira-carioca.

Quanto a meus r enrolados, estilo francês, quando falo, e que me dão um ar de estrangeira, trata-se apenas de um defeito de dicção: simplesmente não consigo falar de outro jeito. Defeito esse que meu amigo Dr. Pedro Bloch disse ser facílimo de corrigir e que ele faria isso para mim.

Mas sou preguiçosa, sei de antemão que não faria os exercícios em casa. E além do mais meus r não me fazem mal algum. Outro mistério, portanto, elucidado.

O que não será jamais elucidado é o meu destino. Se minha família tivesse optado pelos Estados Unidos, eu teria sido escritora? Em inglês, naturalmente, se fosse. Teria casado provavelmente com um americano e teria filhos americanos. E minha vida seria inteiramente outra. Escreveria sobre o quê? O que é que amaria? Seria de que Partido? Que género de amigos teria? Mistério.”

Sendo que, num escrito anterior, datado de 11 de Maio de 1968, havia já redigido uma das maiores Declarações de Amor de sempre à nossa língua – ainda nas suas palavras:

“Declaração de amor

Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter subtilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.

Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.

Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.

Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.

Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.”[2].

 

3. Quanto a Vilém Flusser, atentemos na sua primeira grande obra, Língua e Realidade (São Paulo, Annablume, 1963) e, em particular, no seguinte excerto, em que as potencialidades filosóficas da língua portuguesa nos aparecem maximamente valorizadas:

“De acordo com a estrutura do português, surge o significado futuro quando o infinitivo de um verbo é acrescido de um sufixo correspondente ao verbo haver conjugado no presente. O verbo haver significa originalmente algo muito próximo de ter. Houve, entretanto, um sutil deslocamento da estrutura da língua portuguesa, que está se processando ainda. No curso dessa transformação, o verbo ter vem usurpando o lugar de haver. Os dois refúgios mais importantes do haver são, atualmente, o há impessoal e a formação do futuro. Ambos estão periclitando. O há impessoal está ameaçado pelo tem e a formação do futuro pelo verbo ir [farei = vou fazer). Muito provavelmente o haver será finalmente deposto. No caso do futuro isto acontecerá provavelmente porque a tendência da língua é substituir sufixos por verbos

auxiliares. Estamos, portanto, no caso do português, diante de um conceito de futuro em vias de transformação.

Consideremos, em primeiro lugar, a forma antiga. O verbo haver, que faz surgir o significado do futuro, sugere uma propriedade, uma qualidade. Se hei algo, isto é, se tenho algo, esse algo é minha propriedade e qualifica a minha posição. O futuro, nesta forma portuguesa, é, portanto, uma propriedade, uma qualidade do presente. Se considerarmos que uma forma do passado em português é formada pelo verbo auxiliar ter, por exemplo, tenho ido, devemos concluir que este conceito acidental e qualitativo de tempo pervade toda uma face da categoria tempo na ontologia da língua portuguesa. Lembro, neste contexto, as categorias aristotélicas mencionadas no início deste capítulo. O tempo figura entre elas, como um dos acidentes. A língua portuguesa concorda, neste aspecto, com Aristóteles. As línguas alemã e inglesa discordam dele, já que nelas o futuro, conforme foi ilustrado, não é acidental, mas substancial. Entretanto, em português, o tempo revela-se como sendo uma qualidade, uma propriedade da substância. Não é, portanto, do ponto de vista aristotélico, uma categoria independente, mas uma subcategoria, já que o sistema categorial aristotélico prevê a categoria qualidade. O conceito que rege o meu pensamento quando digo irei não é, pois, categoria no sentido restrito. Não estou, propriamente, pensando em tempo. Estou pensando em uma propriedade minha, a saber, no ir que tenho ao meu dispor.

Neste sentido restrito, o tempo não é uma categoria da língua portuguesa, como o é da língua inglesa. Em português eu tenho futuro, como força, saúde ou dinheiro. Se não estou consciente disso, se não me dou conta dessa falta de categoria tempo em português, isso se deve ao arcaísmo do verbo haver, que esconde o significado ter. Somente uma análise fenomenológica como aqui esboçada faz ressurgir esse significado”. (pp. 115-117).

Tudo isto para concluir: “Esta autêntica revolução na estrutura ontológica do português é uma bela ilustração da força criadora que a língua possui” (p. 117).

*

Eis o que, de resto, havia já salientado num breve mais muito incisivo ensaio, “Da Língua Portuguesa”, publicado na Revista Brasileira de Filosofia (n°4, 1960, pp. 560-566). Atentemos nas suas palavras:

“O que despertou o meu amor violento [para com a língua portuguesa] não foi, como talvez muitos possam pensar, a sua forma externa, a sua melodia, a riqueza em vogais, a facilidade enganadora com a qual ela se rende à boca. Muito pelo contrário, fiquei, durante anos, repelido por essa exuberância externa, que escondeu, aos meus olhos, a sua profundeza calma e escura”.

“O meu amor nasceu – como logo de seguida esclarece – quando, pela primeira vez, senti-me intimamente tocado pela trindade dos verbos ‘estar’, ‘ser’ e ‘ficar’ (…). Diante da minha visão interna, os monstros germânicos dissolveram-se no ar, as hydras gregas esconderam-se na sua lama primordial, e apareceram, sólidos, calmos, autênticos e simples, o ‘ser’, o ‘estar’ e o ‘ficar’, os pilares da ontologia”.

Como logo de seguida acrescenta: “Não dúvida que a confusão mística dos pensadores existenciais alemães, e o fervor do nojo dos pensadores existenciais franceses se evaporariam, se estes se decidissem aprender o português, e acompanho com estupefacção as tentativas (aliás impossíveis) de alguns escritores brasileiros de traduzir essa confusão e esse fervor para a sua língua. A confusão e o fervor são resultados das ontologias das línguas alemã e francesa, inimigas do existencialismo. A língua portuguesa, no entanto, tem uma ontologia superheideggeriana (…)”.

Por isso, como conclui, se forma assaz eloquente: “….todos nós, que falamos português, somos automaticamente filósofos existencialistas (…). Creio que a língua portuguesa, em sua inocência ontológica, clama por um filósofo que a possua sem violentá-la, e que proclame ao mundo as belezas do ‘ser’, do ‘estar’ e do ‘ficar’, num espécie de ´prolegómenos a todo o futuro existencialismo’. Mas, entende-se, uma tal filosofia seria intraduzível e clamaria, portanto, no deserto”.

Como muito pertinentemente observa António Braz Teixeira, no capítulo final da sua obra A “Escola de São Paulo” (MIL: Movimento Internacional Lusófono/ DG Edições, 2016, p. 304), capítulo que tem por título, precisamente, “A ontologia linguística de Vilém Flusser”, e onde começa por se referir a este ensaio do pensador checo: “É de lamentar que, ao que se presume, visto não referir nunca nenhum deles, o pensador checo não tenha chegado a conhecer a obra de Leonardo Coimbra, em especial o livro incomparável que é A Alegria, a Dor e a Graça ou os textos de Álvaro Ribeiro em que se prosseguia um trabalho filológico-filosófico em muito convergente com o seu.”.


[1] Como é dito na nota de apresentação da obra: “Este livro reúne, em ordem cronológica, as contribuições de Clarice que apareceram aos sábados no Jornal do Brasil, de agosto de 1967 a Dezembro de 1973”.

[2] Essa já havia sido, de resto, a razão (maior) que a levara, na década de quarenta, a solicitar junto do então Presidente brasileiro, Getúlio Vargas, a cidadania brasileira: numa carta, datada de 3 de Junho de 1942, assumira-se como alguém que “pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso pousando todos os projectos do seu futuro, próximo ou longínquo” (in Correspondências, Rio de Janeiro, Rocco, 2002, pp. 33-34).

1 comentário:

Artur Manso disse...

Ora aqui está mais uma análise lúcida.
O problema de um suposto rebaixamento da língua e cultura portuguesa não reside nem na língua nem na cultura, que são inatacáveis. O problema reside naqueles a quem lhes é dado voz e que são os gurus da nação, desconhecerem por completo de onde viemos, o que somos e para onde vamos. Infelizmente têm feito muito mais pela cultura e língua portuguesa, aqueles que não a têm no "sangue" do que aqueles que são pagos e apaniguados para isso.
ab
artur