É próprio da condição humana
perseguir o universal, mas nem todos o perseguem da mesma maneira. Uns há que
seguem o caminho mais óbvio – em nome do universal, negam tudo o que lhes
parece circunstanciado, assim renegando o espaço e o tempo, a história, a
cultura, os povos, as próprias Pátrias. Outros, ao invés, encontram nestas a
via aberta da universalidade.
O caminho mais óbvio nem sempre é
o mais verdadeiro e, filosoficamente, pode-se até arriscar dizer-se: “Quanto
mais óbvio, menos verdadeiro”. Nem sempre é, provavelmente, verdade. Mas é
decerto mais verdadeiro do que o princípio oposto, que reduz a verdade ao
óbvio. Por isso, arriscamos dizer: errados estão aqueles que, em nome do
universal, negam tudo o que lhes parece circunstanciado, assim renegando o
espaço e o tempo, a história, a cultura, os povos, as próprias Pátrias. Por
isso, dizemos ainda: mais certos estão aqueles que encontram nestas a via
aberta da universalidade.
António Telmo foi uma dessas
pessoas. Filósofo profundamente universal, filósofo fundamente preocupado com o
mais alto, nem por isso deixou de se ocupar com o que lhe era mais próximo, que
nunca confundiu com o mais baixo. Corrijo: filósofo profundamente universal,
filósofo fundamente preocupado com o mais alto, por isso mesmo jamais deixou de
se ocupar com o que lhe era mais próximo, que nunca confundiu com o mais baixo.
Eis o que importa aqui sublinhar:
um filósofo que seja profundamente universal, um filósofo que esteja fundamente
preocupado com o mais alto, jamais deixa de se ocupar com o que é mais próximo
e, sobretudo, nunca confunde o que lhe é mais próximo com o mais baixo, como
fazem aqueles que, em nome do universal, negam tudo o que lhes parece
circunstanciado, assim renegando o espaço e o tempo, a história, a cultura, os
povos, as próprias Pátrias. Se é humanamente possível dizer que uns estão
certos e outros errados, então diremos, com toda a convicção: os primeiros
estão certos e os segundos estão errados.
Alegam estes que as Pátrias são
“realidades relativas”, como se isso constituísse argumento. Nada há no mundo
que não seja uma “realidade relativa”. O ser “realidade relativa” não constitui
pois argumento pró ou contra. Nenhum ser humano valoriza ou
desvaloriza todas as “realidades relativas” por serem “realidades relativas”. O
que acontece sempre é que todos nós valorizamos mais certas “realidades
relativas” e valorizamos menos, quando não desprezamos, outras. É também o que
acontece com as Pátrias: uns valorizam-nas, sabendo que são “realidades
relativas”; outros desprezam-nas…
*
Nunca fui muito próximo de
António Telmo – falei apenas algumas vezes com ele, em encontros públicos e por
telefone. Numa dessas vezes, lembro-me de ele ter dito: “Eu gosto profundamente
de Portugal e quero poder dizê-lo”.
Sem o saber – ou melhor:
sabendo-o perfeitamente – foi nesses momentos que António Telmo foi mais
universal: nos momentos em que mais se assumiu como português, nos momentos em
que mais se assumiu – usemos o termo maldito – como “patriota”.
Apesar de “patriota”, nunca
António Telmo se coibiu de denunciar – como aquele seu característico sentido
de humor, simultaneamente terno e sarcástico – os males da Pátria. Corrijo:
precisamente por ser “patriota”, nunca António Telmo se coibiu de denunciar –
como aquele seu característico sentido de humor, simultaneamente terno e
sarcástico – os males da Pátria
Com efeito, só os patriotas têm o
direito – direi até: o dever – de denunciar esses males. Dos não patriotas, ou
dos patriotas que, por qualquer complexo, antepõem sempre um qualquer prefixo,
podemos ouvir as mesmas denúncias dos males da Pátria – por vezes, por acaso,
com as mesmas palavras, mas nunca, nunca mesmo, com o mesmo sentido.
É que um patriota, sem complexos
ou prefixos, quando denuncia os males da Pátria, fá-lo de forma amorosa,
construtiva. Ao invés, os outros denunciam para mais rapidamente poderem
destruir. As palavras, como disse, podem até ser, circunstancialmente, por
coincidência literária, as mesmas, exactamente as mesmas. Mas o sentido não
poderia ser mais diverso. Na verdade, se humanamente se pode falar de verdade,
têm um sentido oposto.
Poucas pessoas conheci que fossem
tão simultaneamente amantes da nossa Pátria e tão cáusticas quanto aos seus
males – aos nossos males. Sim, porque António Telmo nunca se punha de fora
quando falava de nós – por mais cáustico que fosse. Talvez por isso fosse –
mesmo quando era cáustico; corrijo: sobretudo quando era cáustico, tão cáustico
como só ele sabia ser – tão terno, tão Telmo. Daí, de resto, a ideia de Pátria em António Telmo.
*
Como é sabido, e como quisemos
salientar na obra “O Portugal de António Telmo”, que organizámos conjuntamente
com o Rodrigo Sobral Cunha e o Pedro Sinde, em colaboração estreita com o Pedro
Martins e algumas outras pessoas, o
amor a Portugal por parte de António Telmo era, desde logo, um amor pela nossa
História e pela nossa Língua. Um amor que era, antes de tudo o mais, um saber,
um conhecimento – porque, como já o sabemos desde pelo menos Platão, só se pode
amar verdadeiramente o que realmente se conhece (sendo a inversa não menos
certa, conforme observação de Joaquim Domingues: só verdadeiramente se conhece
o que realmente se ama). Daí alguns dos títulos mais emblemáticos da obra de
António Telmo – referindo apenas dois deles: Gramática Secreta da Língua Portuguesa e História Secreta de Portugal.
De tal modo assim foi que talvez
nenhum outro filósofo pudesse, com mais justiça, fazer suas as célebres
palavras de Fernando Pessoa, escritas pela mão do seu semi-heterónimo Bernando
Soares, no Livro do Desassossego: “Minha
pátria é a língua portuguesa”. E isso não partindo – importa aqui sublinhá-lo –
das mesmas premissas, que aqui recordamos: “Não tenho sentimento nenhum
politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico.
Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem
Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente. Mas odeio, com odio
verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não
quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a
pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que
se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja
independentemente de quem o cuspisse.”
Com efeito, não imaginamos
António Telmo a dizer (ou a pensar – o que não faz grande diferença, pois que
António Telmo, se não dizia tudo o que pensava, nada dizia que não pensasse,
também aqui seguindo o exemplo de Agostinho da Silva, de quem, como sabemos,
foi muito próximo: o exemplo de adequação entre pensar, dizer e agir): “Não
tenho sentimento nenhum politico ou social (…). Nada me pesaria que invadissem
ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente.”. Mas já o
imaginamos a afirmar: “odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto,
não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em
orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a
syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro
directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse”. Pois que esse “ódio
verdadeiro” seria apenas o reverso do seu real amor por Portugal, pela Língua
Portuguesa.
*
Para terminar, citemos o próprio António Telmo, num texto
coligido na obra que há pouco referimos: “Quando só houver Europa, depois de
abolidas as fronteiras e, sobretudo, depois da unificação da moeda, terá de
pôr-se o problema da homogeneização das línguas, porque, dada a prometida livre
circulação das pessoas e do
trabalho, se todas mantiverem os mesmos hábitos linguísticos,
será o caos da comunicação social. Não chegará a escolha do inglês, do francês
ou do alemão para os actos oficiais. Será necessário que todos, desde a Rússia
até Portugal, falem a mesma língua. O espírito que congrega os homens serve-se
de dois agentes: o dinheiro e a palavra, que formam o seu duplo aspecto
tenebroso e luminoso./ No século passado, a babilónica inteligência secreta,
que trabalha para a homogeneização da Humanidade, não teve, então, a astúcia de
principiar pelo económico ou, se teve, guardou-a para melhor oportunidade. Começou
logo pelo fim, pela unificação linguística. Mas o esperanto foi um fracasso. Se
os dois extremos da cadeia são o dinheiro e a palavra, antes de tentar pôr os
povos a falar uma única língua será necessário dissolvê-los, desligando as
pessoas da consciência singular de pertencerem a uma Pátria.”.
Uma vez ouvi alguém dizer que não apreciava António Telmo porque ele era
“demasiado abstracto”, pouco ou nada dizendo sobre a “realidade concreta”. Face
a palavras como estas que citei, nada há a acrescentar – pois que dificilmente
se encontrará um diagnóstico tão certeiro sobre a “realidade concreta” em que
todos vivemos. A não ser, talvez, acrescentar o que escreveu Orlando Vitorino,
num texto também coligido n’O Portugal de
António Telmo: “perante a demissão dos ‘grandes organismos espirituais de ligação
do Céu com a Terra’ (…) a cada um de nós ‘resta apenas uma saída: a de ficar só,
completamente só em si mesmo e de, nessa solidão, se manter firme, não cedendo
um ponto’. Acontece, porém, que, mais radicados nós nela do que nos citados ‘grandes
organismos espirituais’ e mais terrena e erradicável do que eles, ‘há a Pátria’.
E o autor [António Telmo] demonstra: ‘Não é por acaso que se nasce português, e
misteriosas são as leis das afinidades pelas quais temos aquele Pai e esta Mãe,
estes irmãos, esta mulher e estes filhos. Como é possível abandonar tudo e
ficar só?’. É, deste modo, próprio da natureza e da existência humana de cada
um, pertencer a uma Pátria.”. Ao
contrário de António Telmo, não acreditamos – ou, pelo menos, não acreditamos
tanto – que não seja por acaso que se nasce português. Mas, já que, por acaso
ou não, nascemos portugueses, sejamos dignos disso. Isso já será bastante.
1 comentário:
Emocionante.
Obrigada Renato.
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