Na sua obra A corrente idealístico-gnóstica do
pensamento português contemporâneo (Gaia, Estratégias Criativas, 2010),
Ângelo Alves assinala “os três momentos altos desta corrente” – a saber: o “Movimento
da Renascença Portuguesa”, o “Movimento da ‘Filosofia Portuguesa’” e o “MIL:
Movimento Internacional Lusófono e a ‘Nova Águia’”. Quanto ao primeiro momento
(o “Movimento da Renascença Portuguesa”), Ângelo Alves começa por referir os
seus alegados precursores – nomeadamente, Antero de Quental, Amorim Viana,
Sampaio Bruno e Guerra Junqueiro.
Assim – considera – Antero de
Quental terá sido “o primeiro percursor da Renascença Portuguesa, sobretudo
pela influência que exerceu sobre Guerra Junqueiro e Leonardo Coimbra” (p. 12);
o segundo, Amorim Viana, pela “ruptura com a ortodoxia católica” (p. 13); o
terceiro, Sampaio Bruno, pela “inflexão para o esoterismo heleno-cristão ocidental”,
particularmente “patente em A Ideia de
Deus” (p. 13); e o terceiro, Guerra Junqueiro, pelo “pessimismo gnóstico”,
de resto comum a Raul Brandão, ainda que neste tivesse tido “expressão apenas
literária” (p. 14).
De seguida, o autor d’A corrente idealístico-gnóstica do
pensamento português contemporâneo recorda “o núcleo originário e
predominante do Movimento cultural ‘Renascença Portuguesa’, fundado no Porto em
1912, por iniciativa de Jaime Cortesão, a que se juntou Teixeira de Pascoaes, o
qual veio a ser o mentor ideológico e espiritual do movimento, coadjuvado por
Leonardo Coimbra e Jaime Cortesão, e, na parte organizativa, por Álvaro Pinto”
(p. 15) –, não esquecendo a posterior “polémica de Sérgio contra o saudosismo e
depois a dissidência, culminando com a fundação da revista Seara Nova, em 1921, na cidade de Lisboa”, com um “projecto de tom
e base doutrinária racionalista”, onde pontificou, para além de António Sérgio,
Raul Proença (p. 15).
Neste âmbito, salienta ainda
Ângelo Alves, muito pertinentemente, o papel da primeira Faculdade de Letras do
Porto: “A criação da Faculdade de Letras do Porto, feita por Leonardo Coimbra,
em 1919, quando era Ministro da Instrução Pública, coroou e consolidou esse
conjunto de realizações notáveis dos homens da ‘Renascença Portuguesa’,
tornando-se um alfobre de novos pensadores, literatos e cientistas, e de
inovações pedagógicas, inspiradas por Leonardo Coimbra, seu primeiro Director”
(p. 16) – que, como recorda ainda Ângelo Alves, veio igualmente a assumir a Direcção
da revista “A Águia”, em 1922, após “a retirada de Pascoaes para o seu solar de
Gatão” (p. 17).
*
Chegados aqui, não poderemos
deixar de enunciar uma primeira crítica a esta perspectiva de Ângelo Alves:
desde logo pelo papel que teve Leonardo Coimbra no “Movimento da Renascença
Portuguesa” e na Revista “A Águia”, é a nosso ver abusivo inscrever esse
“Movimento”, sem mais, numa mesma “corrente idealístico-gnóstica”. Se isso pode
ser válido – admitimo-lo – em relação a Pascoaes, não nos parece que seja de
todo válido em relação a Leonardo.
Assina-se aqui, a este
respeito, subtil, a abissal distância entre Leonardo Coimbra e Sampaio Bruno. Este,
em particular na sua A Ideia de Deus,
desenvolve uma visão profundamente negativa da existência, que o levou, a
afirmar, contra Amorim Viana, a “essência real do mal”, tendo
ainda chegado a defender que “a felicidade é não ter nascido”, ou, citando
Darwin, que “este mundo é um vasto campo de chacina” – visão
de tal modo negativa que nesta, segundo o próprio Leonardo, “o melhor dos
mundos possíveis de Leibniz não deixa de ser mau”.
Para Leonardo Coimbra, muito
diversamente, o mundo não resultou aquele de nenhuma “queda”, de nenhuma
“degradação do ser divino”, de nenhuma “fatalidade”. Ao contrário de Sampaio
Bruno, tem Leonardo uma visão essencialmente positiva da “criação”. O que para
o primeiro era motivo de lamento – o facto de este ser um “mundo de distâncias
e separações” – é, para o segundo, motivo de assumido regozijo. Daí, desde
logo, estas suas palavras, tão eloquentes quanto inequívocas quanto à sua
cosmovisão: “Como é belo este mundo de distâncias e separações! Que perda não
seria reduzir tudo a uma simples unidade possuindo-se!”.
Daí, de resto, como refere o
seu discípulo e hermeneuta José Marinho, toda a diferença do pensamento de
Leonardo Coimbra, não só relativamente ao de Sampaio Bruno como ainda ao de
Antero de Quental – nas suas palavras, para Leonardo “os seres não se anulam,
pois que neles se manifesta Deus, a pluralidade não é imperfeição, como o é em
Antero ou Bruno, mas expressão de todas as infinitas virtualidades de ser do
absoluto”. Daí, em
suma, a nossa tese: pelo papel que teve Leonardo Coimbra no “Movimento da
Renascença Portuguesa”, é a nosso ver abusivo qualificar esse “Movimento” como
uma “corrente idealístico-gnóstica”.
*
Feita esta primeira crítica,
prossigamos então a leitura desta obra de Ângelo Alves, incidindo agora o nosso
olhar sobre o que ele nos diz sobre o “Movimento da ‘Filosofia Portuguesa’”,
alegadamente o “segundo momento alto” dessa “corrente idealístico-gnóstica do
pensamento português contemporâneo”. Começando por ressalvar que “o magistério
do filósofo de O Criacionismo
persiste nalguns dos seus discípulos” (p. 17), defende, porém, Ângelo Alves que
“alguns dos representantes desta corrente filosófica foram opositores
declarados não só da Igreja Católica, mas da doutrina e mundividência cristã,
ora racionalizado as categorias e dogmas cristãos, como o trinitário e o
cristológico, ora transcendendo e mitificando a história pátria, ao
atribuir-lhe um valor messiânico..." (pp. 18-19). Também aqui, Ângelo
Alves parece-nos ter sido excessivo, na sua crítica. Se no “Movimento da
‘Renascença Portuguesa’” houve mais diferenças do que coincidências – desde
logo, entre Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra –, o mesmo se poderá dizer,
ainda com maior ênfase, quanto ao chamado “movimento da ‘Filosofia
Portuguesa’”, o que igualmente inviabiliza, a nosso ver, a sua inserção nessa
alegada “corrente idealístico-gnóstica do pensamento português contemporâneo”.
Falemos, para o atestar, de
três nomes, que Ângelo Alves igualmente refere, de forma expressa: José
Marinho, Agostinho da Silva e Álvaro Ribeiro. Quanto ao primeiro, se será
excessivo qualificá-lo como “opositor declarado não só da Igreja Católica, mas
da doutrina e mundividência cristã”, é inquestionável que ele assumiu, em
relação à religião em geral e ao cristianismo em particular, algum
distanciamento ou, pelo menos, alguma ambivalência, designadamente neste seu
testemunho, em que a religião cristã aparece, ao mesmo tempo, valorizada e
desvalorizada – nas suas palavras: “Se, por outro lado, na ordem do
conhecimento, eu lutei contra a ameaça que o espírito cristão representa para a
filosofia, na ordem do existir autêntico, pelo contrário, desde a primeira
juventude, e de uma vez por todas, o cristianismo representou para mim o ímpeto
e o exemplo ao qual o homem não pode e não poderá jamais furtar-se.”. Tal
ambivalência de sentimentos relativamente à religião cristã não abalou,
contudo, o posicionamento ultimamente religioso de José Marinho, posicionamento
esse que o próprio assumiu em múltiplas passagens da sua obra – nas suas
palavras: “Se nós definirmos religião como o viver ligado ao absoluto, seja
efectivamente seja intencionalmente, devo dizer que esta situação espiritual
foi permanente em mim. Abandonei a prática do cristianismo, nunca o sentido
central dele. Comecei a filosofar não porque me faltasse a fé, mas porque se me
pôs a urgência de esclarecê-la.”.
Aforismos sobre
o que mais importa, “Obras de José Marinho”, vol. I, Lisboa, Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 1994, p. 113. A este respeito, atente-se ainda nestes
seus outros testemunhos, igualmente significativos: “Eu sou cristão desde o
princípio e através das mais terríveis lutas interiores. E é-me dado, por tudo,
e pelo mais que importa dizer e não sei ainda, situar-me aquém e além do
cristianismo efémero, parecer não cristão e ainda, paradoxo admirável, não ser
cristão!” [Nova Interpretação do
Sebastianismo e outros textos, “Obras de José Marinho”, vol. V, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003, p. 489]; “Assim, nós, cristãos da hora
extrema, nos declaramos já não-cristãos para não sermos confundidos. Assim nós,
amigos do homem, consideramos insultuoso que nos chamem humanistas.” [ibid., p. 226]; “A minha dificuldade não
está em Deus, mas no homem, não no céu, mas na Terra, e não sou cristão, senão
porque o cristianismo é religião demasiado humana. Estou, como tantos, antes do
cristianismo e depois.” [Da Liberdade
Necessária e outros textos, “Obras de José Marinho”, vol. VII, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006, p. 268]; “Perguntas-me qual a minha atitude
perante o cristianismo. Aqui está: aceito quase tudo, mas o que me falta
leva-me a não o aceitar nada.” [ibid.,
p. 320]; “Não sou católico, embora seja homem religioso e de sentido
universalista no maior grau que possa desejar-se; e, se cristão tenho já raro
direito de chamar-me, permaneço há muitos anos cristão heterodoxo.” [Filosofia portuguesa e universalidade da
filosofia e outros textos, p. 426].
“Sobre a função de rezar por”, in O Estado de S. Paulo, S. Paulo, 03/06/1956.
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