Num gesto
que alguns poderão considerar inspirado em Joaquim de Flora, prefigurou José
Marinho o advento de uma “religião do Espírito”, que caracteriza ora como uma
ultrapassagem da “religião cristã”, ora como a própria “religião cristã” na sua
mais apurada expressão. Eis, decerto, a consideração que António Quadros
subscreveria, não tivesse ele defendido que a doutrina das três idades “em
nenhum lugar deitou raízes tão fundas como no nosso país e na nossa cultura”.
Não só, como
faz questão de frisar, no nosso país e na nossa cultura. Daí, desde logo, a sua
referência à Divina Comédia de Dante
que, como salienta, é mesmo “por alguns considerada como apocalipse joaquimita”. Daí ainda a sua referência a Lessing e a
Comte – cuja lei positivista dos três estados “dir-se-ia uma imitação a contrario sensu da teologia da história
do Abade de Flora” –, daí ainda a sua referência a Fichte e a Hegel – cuja
filosofia da história “pode ser considerada como uma tradução filosófica e
moderna da teoria de Joaquim de Flora” –, daí ainda, enfim, a sua referência a
Schelling e ao próprio Marx.
Apesar de
ter influenciado, de uma forma ou de outra, todos esses filósofos, entende
António Quadros que é “na obra dos filósofos que dominaram os dois últimos
séculos da nossa cultura” que a influência de Joaquim de Flora mais se faz
sentir, exemplificando essa sua tese com a referência que faz às obras de
Agostinho da Silva, Álvaro Ribeiro, Fernando Pessoa e Jaime Cortesão – o
primeiro “pela via de uma metanóia mítica e mística”, o segundo “pela via
filosófica e pedagógica”, o terceiro “pela via alquímico-poética”, o quarto
“pela via historiográfica”.
Não
contestamos aqui nenhum dos exemplos que nos dá António Quadros – ainda que não
na mesma medida, concordamos com todos eles, particularmente no caso de
Agostinho da Silva, que, aliás, na nossa perspectiva, foi, dos quatro, aquele
que mais expressamente valorizou o legado joaquimita, tendo mesmo chegado a
afirmar a seu respeito o seguinte: “O Joaquim de Flora achou uma solução para o
caso, que é haver Trindade ao mesmo tempo, simultânea, jogando com a eternidade
e o tempo. A eternidade e o tempo são distinções nossas, mas na realidade não
há distinção nenhuma (…). Pode ser que no mundo tudo se passe estando tudo no
absoluto (…), e se há uma História no tempo, a História tem que ter uma época
do Pai, uma época do Filho e uma época do Espírito Santo.”.
De resto, a
sua teorização do Quinto Império tem óbvias ressonâncias joaquimitas, como,
aliás, o próprio o assume – daí, a título de exemplo, estas suas palavras:
“…Portugal e Camões perdem a vida por um mundo, sempre de futuro e nunca de
passado, um mundo em que finalmente se conciliassem, se unissem num só corpo de
doutrina Aristóteles e Platão: em que o ideal fosse, ao mesmo tempo, do mundo
dos sentidos. O que talvez só possa vir naquele reino do Espírito Santo que
Joaquim de Flora, sem humildade perante a Igreja e portanto hereticamente, cria
vir a ser a terceira e última idade da História.”. Daí ainda, enfim, a este
respeito, a sua tese de que o Quinto Império “apenas haverá se não existir um
5º Imperador”, mais do que isso, se não existir “império nenhum”, dado que “o
Reino de Deus surgirá pela transformação interior do homem”, de cada um de nós,
estando nessa medida o “Paraíso” na “alma”, “não na natureza ou na sociedade”.
A
acrescentar algum nome à lista de António Quadros, acrescentaríamos, de imediato,
o de Raul Leal, não tivesse sido ele, nas palavras de Pinharanda Gomes, “irmão
espiritual de Joaquim de Flora” – para além de “companheiro visionário de
Bandarra, ouvinte exaltado de António Vieira e confrade de Morus e Campanella”
–, tendo chegado inclusivamente a imaginar-se “a encarnação de Henoch, profeta
do Espírito Santo”. Finalmente, equacionaríamos ainda o nome de José Marinho,
por mais problemática que seja a sua inserção na linhagem cristã – por mais que
heterodoxa – de Joaquim de Flora. A sua filosofia da história parece-nos ter,
porém, óbvios traços joaquimitas. Nas palavras do próprio José Marinho, com
efeito, encontramo-nos actualmente no “extremo da cisão entre o homem e o
Universo, entre o homem e Deus”, “na mais aguda fase de disjunção na
consciência humana entre o homem-humano e o divino, entre imanência e
transcendência”, ou seja, em suma, “na última fase do humanismo”. Dessa
“situação de extrema separatividade” devemos ter, como nos alerta, plena
consciência, nas suas palavras, a “consciência plena da crise” – daí ainda a
sua referência à “hora extrema que estamos vivendo”.
Se esta é ou não a hora que anuncia a “idade do Espírito”, Marinho
não nos diz. Fala-nos, no entanto, de uma “noite genesíaca”, de um “novo
ciclo”, de uma “nova era”. Fala-nos, porém, de uma “nova humanidade”. Fala-nos,
todavia, de uma nova religião, da “religião do Espírito”, que qualifica como a
“verdadeira religião”, como a “religião da liberdade”. Fala-nos, contudo, de
uma nova filosofia, de um saber outro – mais propriamente, do saber do Outro,
do Enigma do Ser e não do Drama da Existência –, que designa como o “saber do
Oriente”, o “pretérito saber do Oriente”, do “sábio e profundo Oriente”.
Fala-nos, ainda, da “tradição remota”, da qual, alegadamente, “estão mais perto
os indus e os orientais”. Diz-nos, porém, que essa tradição “mais remota” é a
“sempre actual tradição”. Diz-nos, no entanto, que esse “sábio e profundo
Oriente”, esse “Oriente real e simbólico de onde nos vem o sol, mal o sol que
não ignora a luz e a treva”, não é um espaço mas um tempo, um “fluxo de tempo”.
No “regresso ao Oriente”, virá a ser alguma vez esse “fluxo de tempo” o nosso
Futuro? Fica a questão.
Um outro vulto evocante da
tradição joaquimita que podemos – e devemos –
aqui referir é, enfim, o de Natália Correia, até pela forma singular
como ela actualiza essa tradição, salientado a sua alegada dimensão “feminina”
– a seu ver, com efeito “o Espírito Santo, esse sopro que tudo anima, anima os humanos, é
feminino, a Ruha em hebreu, a consagração da sacralidade do feminino que a
androcracia judaico-cristã escamoteou”.
Na sua visão, efectivamente, seria pela sua dimensão feminina que a Humanidade poderia redimir-se – ainda nas suas palavras: “a mulher deve seguir as suas tendências culturais, que estão intimamente ligadas ao paradigma da Grande Mãe, que é a grande reserva, a eterna reserva da Natureza, precisamente para se impor ao mundo ou pelo menos para os introduzir no ritmo das sociedades como uma saída indispensável para os graves problemas que temos e que foram criados pelas racionalidades masculinas. É no paradigma da Grande Mãe que vejo a fonte cultural da mulher; por isso lhe chamo matrismo e não feminismo”.
E eis
aqui uma subtil, uma abissal diferença que leva Natália Correia, apesar de
valorizar maximamente a dimensão feminina da Humanidade, do próprio Ser, a não
se declarar feminista, pelo menos na acepção mais comum dos tempos de hoje –
ainda nas suas palavras: "Eu não sou feminista no sentido clássico de que
a mulher é que vale e o homem não, nem pensar! Mas volto-lhe a falar da exaustão
do poder. O homem meteu-se num labirinto. Nós descansamos muitos séculos. A
mulher tem um viço, tem reservas em si, tem energias armazenadas que o homem
foi perdendo”.
De
resto, Natália Correia chega mesmo a demarcar-se expressamente desse feminismo
mais comum nos tempos de hoje: “o que me aflige nestas feministas é o seu
racismo estreito de curto alcance que disputa posições em vez de arrasar as
estruturas que impedem a transformação do mundo num lugar habitável por homens
e mulheres. Procedem como se quisessem o mundo para elas tal como os homens quiseram
o mundo para eles. Imitam o erro no que demonstram a tristíssima falta de
imaginação de errar por conta própria”. Ou seja, em suma: para Natália Correia
a Idade do Espírito Santo seria a época da plenificação do humano, na sua
complementaridade masculina e feminina, na superação da “cisão extrema”
relativamente à Natureza e ao próprio Absoluto.
1 comentário:
Um texto muito interessante de Renato Epifânio, que começa em Joaquim de Flora e José Marinho, estagia em Agostinho da Siva, e aporta em Natália Correia - temáticas do V Império... das Três Idades... e do Império do Espírito Santo... Não sou nada dada a noções e visões de Império - mesmo as de Pessoa, que são 'apenas' metafórica ou semioticamente 'imperialistas' - mas este artigo está fantástico. Ilumina a questão.
Luísa Borges
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