Palestras em Goa (I): Os caminhos
do Oriente*
Não obstante ser um país do Ocidente, do extremo-Ocidente, não
obstante ser o país mais ocidental da Europa, Portugal nunca perdeu de vista o
Oriente. Ele foi sempre, nas suas navegações, nas suas viagens, através de
todos os ventos, para além de todos os desvios, o seu, o nosso Norte, o seu, o
nosso Horizonte. Dissemos “não obstante” quando, porventura, deveríamos antes
ter dito, ter escrito, “por isso mesmo”, “precisamente por isso”. Pois que,
porventura, é precisamente pelo facto de Portugal ser um país do Ocidente, do
extremo-Ocidente, o país mais ocidental da Europa, que ele nunca perdeu de
vista, apesar de todos os desvios, o Oriente. Tal como o Homem ama a Mulher
porque ela é o seu Outro, assim
também nós amamos o Oriente porque ele é o nosso Outro…
Como aqui veremos, é precisamente assim, como o nosso Outro – do nosso ser, do nosso próprio
pensar –, que alguns dos nossos filósofos contemporâneos olham para o Oriente.
Eis o que, de uma forma mais detida, veremos a respeito do pensamento de José
Marinho, e, de passagem, a respeito do pensamento de Antero de Quental, de Sampaio
Bruno e de Fernando Pessoa. Antes disso, importa, contudo, esclarecer desde já
o seguinte: essa viagem que esses nossos filósofos encetam rumo ao Oriente não
é uma viagem de regresso – nem de regresso à origem, nem, muito menos, de
regresso ao passado. Muito pelo contrário. E isto, muito simplesmente, porque
esse Oriente que eles visam não é o Oriente do nosso passado, o Oriente de que
todos nós partimos na aurora do tempo, da história, mas o Oriente do nosso
próprio futuro, precisamente esse Outro que
importa ser, precisamente esse Outro
que importa pensar.
Eis, desde logo, o caso de José Marinho, para quem, com efeito, o
Oriente não simboliza, de modo algum, o tempo passado, mas, ao invés, o tempo,
“o fluxo de tempo”, que “não chegou a ser”, que ainda “não chegou a ser”, qual
“aurora de um dia ainda impossível” – nas suas palavras: “Nós empregamos
Oriente no sentido real e simbólico: como fluxo de tempo que não chegou a ser,
como semente que não germinou, como aurora de um dia ainda impossível. Oriente
é, para nós, a autêntica pré-história, a sub-história, o Paraíso Perdido.”. É
certo – replicarão os mais conhecedores da obra marinhiana – que José Marinho
nos fala de uma “tradição mais antiga”, “mais remota”, da qual, como chegou
mesmo a escrever, “estão mais perto os indus e os orientais”. É certo –
replicar-se-á ainda – que o nosso pensador chegou mesmo a referir-se ao “saber
do Oriente”, ao “pretérito saber do Oriente”.
Simplesmente, replicaremos agora nós, José Marinho em momento
algum pretendeu tornar-se um mero porta-voz desse dito “saber do Oriente”.
Muito pelo contrário. O “saber do Oriente” a que ele reiteradamente se refere, enquanto
“saber outro” – ou, mais precisamente, enquanto “saber do Outro” –, é um saber
que ele próprio descobre ao longo da sua própria viagem. É, aliás, por isso que
esse saber é fiel a essa “mais remota tradição”, não fosse muito mais fiel à
tradição aquele que a reinventa, assim a renovando, do que aquele que apenas a
repete, assim a petrificando – ainda nas palavras de José Marinho: “Quando
referimos o significado e valor da tradição, entendemos, como é evidente, uma
tradição viva: não pode esta transmitir ideias feitas, conceitos definitivos,
razões indeclináveis. A tradição transmite, sim, a virtualidade incessantemente
aberta de conferir o que foi aceite como verdade, com os renovados modos de
apreender a mesma verdade, e o labor que requer compreendê-la e explicitá-la.”
* Para “Philosophy and
Literature Meeting: The West(s) and The East(s)”, Universidade de Goa: 19-20 de Março
de 2018.
Palestras em Goa (II): Filosofia e Poesia em José Marinho*
Ainda que nem sempre
explicitamente, o pensamento de José Marinho teceu-se no seu constante diálogo
com alguns filósofos – em particular, Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra. De tal
modo que o seu pensamento mais estritamente teorético pode ser mesmo interpretado
como uma tentativa de sintetizar essas duas cosmovisões, tão, a priori, antitéticas entre si: a
brunina afirmando o primado ontológico da homogeneidade originária do ser sobre
a heterogeneidade actual do existente, a leonardina afirmando o inverso, fazendo,
nessa medida, a apologia deste “mundo de distâncias e separações”.
Como ele próprio escreveu, na
sua obra “A Alegria, a Dor e a Graça”: “Como é belo este mundo de distâncias e
separações! Que perda não seria reduzir tudo a uma simples unidade possuindo-se!”.
Daí, de resto, segundo Marinho, a subtil, a abissal diferença do pensamento de
Leonardo não só em relação ao de Bruno, como ainda ao de Antero – nas suas
palavras, para Leonardo “os seres não se anulam, pois que neles se manifesta
Deus, a pluralidade não é imperfeição, como o é em Antero ou Bruno, mas
expressão de todas as infinitas virtualidades de ser do absoluto”.
Ainda que por vezes de forma
tácita, o pensamento de José Marinho teceu-se igualmente no seu constante
diálogo com alguns poetas: Antero de Quental, Fernando Pessoa, Guerra Junqueiro
e, sobretudo, Teixeira de Pascoaes. Dentre estes quatro poetas, foi, com
efeito, Pascoaes aquele cuja obra mereceu de Marinho mais profunda meditação, a
ponto de, na nossa perspectiva, algumas das suas teses mais fundamentais não
serem senão o desenvolvimento filosófico de algumas intuições pascoaesianas.
Eis, em última instância, o que procuraremos aqui verificar, fazendo, para tal,
uma breve retrospectiva da relação filosófica que Marinho manteve com estes
quatro poetas, também eles, ainda que não na mesma medida, filósofos.
Não nos debruçaremos aqui
sobre a relação entre José Marinho e José Régio, apesar de ele ter sido
igualmente para si um poeta de eleição, como atestam as seguintes palavras: “É
ele [José Régio] não apenas o homem que com Teixeira de Pascoaes, no juízo
vesânico dos melhores, revela entre os portugueses vivos os mais altos dons,
como um dos mais nobres e sérios amigos da verdade e inquiridores ou julgadores
de responsável juízo.”. Ainda assim, julgamos que quem mais valorizou José
Régio foi Álvaro Ribeiro, ao considerá-lo “o nosso maior poeta do paraíso
perdido”, “a figura central da literatura portuguesa no século XX”, tese que
desenvolveu na sua conhecida obra “A Literatura de José Régio” [1969].
*
Para o Encontro “Diálogos Cruzados - Filosofia e
Literatura, Ocidente o Oriente”, Fundação Oriente, Goa, 22 de Março de 2018.
Renato Epifânio
1 comentário:
Bem avisados quantos prosseguem vendo no Oriente o tal nosso outro. A decadência da chamada civilização ocidental já começou a ter a sua resposta em redor do novo lago que é o Oceano Pacifico. Territórios como Goa, Damão, Diu, Macau e Timor bem merecem a atenção que, infelizmente, não têm recebido. Vive-se na ilusão - impõe-se a ilusão - de que vive na Europa a esperança de melhores dias que, estes - a nossa História bem demonstrou - forma sempre consequência do além-mar.CLV
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