Era, dir-se-ia, fatal como o
destino. Depois de já ter contaminado todas as demais expressões da cultura, a
peste do politicamente correcto ameaça agora invadir em força a área do
pensamento filosófico. Na edição do Jornal PÚBLICO de 19 de Março, destaca-se
que “em Londres, alunos universitários [ligados a um grupo denominado
“Decolonizing Our Minds Society” (DOMS), com “mais de 12 mil seguidores no
facebook” (sic)] questionaram o estudo de filósofos brancos como Kant”, por
“defender a superioridade europeia”.
Que esta campanha tenha
começado por visar, entre outros, Immanuel Kant (1724-1804), eis a prova da
estupidez intrínseca da peste do politicamente correcto, ou não tivesse sido o
filósofo alemão um dos pensadores mais progressistas da história universal –
sendo que a pessoa que aqui o afirma não se considera propriamente um kantiano
(por uma série de outras razões que não são aqui pertinentes).
Sim, é verdade que Kant
defendeu, desde logo ao falar da história da filosofia, uma “superioridade
europeia”, mas essa tese não tem que ser interpretada a partir de razões
genéticas ou raciais, como pretende a DOMS. A ser assim, o próprio Kant teria
sido incoerente: porque, decerto, quando ele celebra o alvor da filosofia na
Grécia Antiga, ele não o faz atendendo a esse tipo de razões. Platão e
Aristóteles tinham o mesmo tom de pele dos restantes europeus da época –
seriam, quanto muito, um pouco mais morenos. E, no entanto, foi na Grécia
Antiga que a filosofia nasceu. A tese genética ou racial não explica, pois,
nada.
A explicação é bem mais
prosaica: a filosofia, como uma das mais altas expressões da cultura humana,
pressupõe um contexto social propício – nomeadamente, a existência de cidades,
ou seja, de agregados sociais com escala, e de instituições que promovam
expressões culturais com maior densidade. Na Grécia Antiga, esse contexto
social propício existia, com as Cidades-Estado e as suas Escolas. Como depois
veio a existir nos Burgos europeus e nas suas Universidades, durante a Baixa
Idade Média e a Modernidade. Se, depois, grande parte da filosofia foi expressa
em língua alemã, a explicação é igualmente essa.
A uma escala global,
reconhecer a evidência de que a Europa foi, durante séculos, para o bem e para
o mal, uma espécie de locomotiva intelectual do mundo, tal como a Grécia Antiga
o foi, na Antiguidade, em relação à restante Europa (no essencial, é isso o que
Kant defende), não significa pois, de todo, sustentar uma posição racista.
Negar essa evidência em nome do “politicamente correcto” é que será, tão-só,
estúpido. Iguais em potencial à partida, as línguas e as culturas não têm que
ter depois, por razões várias, o mesmo ritmo de desenvolvimento. Na época de
Platão e Aristóteles, grande parte da restante Europa estava ainda muito atrás
(atraso que veio depois a recuperar). E o mesmo aconteceu, naturalmente, em
África, na Ásia e nos restantes continentes. É assim tão politicamente
incorrecta esta evidência?
3 comentários:
A coisa de facto, não está fácil.
As minorias ignorantes vencem o bom senso e os políticos idiotas vão-lhe fazendo as vontades. É o preço do voto.
A filosofia é um saber milenar que não é tão velha como o mundo, à semelhança da religião, mas que nada tem de estigmatizante. É um saber englobante e crítico. Nasceu na Grécia, renovou-se na Alemanha e mantém-se em todo o mundo. Assim foi, assim é, assim será... com mais ideologia ou menos ideologia, com mais idiotice ou menos idiotice.
A estes movimentos cabem na perfeição as palavras bíblicas: "perdoai-lhes senhor, pois não sabem do que falam".
ab
Artur
Perdoe-me amigo, mas acho que amizade está também no direito à discordância. O SOAS é a instituição de ensino mais colonizadora do Reino Unido. Quando docentes e discentes criam um debate sobre o porquê de um currículo ainda com visão colonialista sobre África, Ásia e América Latina. Os progressos de cada um dos continentes foi muito distinto em diversas épocas, e não creio que a pergunta reflexão seja tão disparatada. No curso de filosofia deles, estudam-se 26 pensadores, dos quais 24 são europeus e quase todos homens. Facto é que não se pode negar que a Ásia e a África, de uma a outra de suas pontas, tenham tido pensadores incríveis ao longo dos séculos. E mulheres? Quais são os nomes além de Harendt que a memória traz quando falamos de pensadoras? A África hoje está cheia de grandes exemplos!
Ainda além disso há uma necessidade de clareza nas biografias que influenciam (parcialmente) a forma como lemos os autores. Saber que Locke era escravagista, Kant tinha traços de racismo ("traços"…) ou Heidegger era nazi não fazem de seus gênios e seus pensamentos algo nefasto — mas influenciam a forma atenta como devemos ler cada um dos autores.
A DOMS, a campanha que lançaram na School of Oriental and African Studies (convenhamos, com um nome desses só estudando autores europeus é irônico) é na verdade um pedido para um debate: será que não há/havia pensadores como Sun Tzu, Khaldum, Sina, Gillighan, Steinem, além dos homens brancos europeus? Acho que o problema não é ser homem, ser branco, ou ser europeu: é só falarmos dos pensadores que são homens, são brancos e são europeus.
Concordo contigo que não devamos tirar Kant nem sequer Heidegger dos nossos currículos e acho que a campanha DOMS também concorda. Acho que o desafio é perceber que o legado que o racismo deixa é forte e é um vies que nos impede de ver para além do que estamos acostumados. O debate é necessário!
Obrigado por me ter causado essa reflexão :-)
«Debate» sim, mas com inteligência e racionalidade, não com idiotices nem concessões tipo «mea culpa» às modas passageiras e superficiais.
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