Nestes tempos conturbados em
que vivemos na «aldeia global» com guerras em nome de Deus (Israel versus
Palestina), assassínios em nome do mesmo Ser (Iraque) e, last but not the least, com o avanço de epidemias mortais ( Ébola)
em certas latitudes, mas que podem contaminar todo o planeta, parece-me lícito
lembrar a «Oração a Deus» de Voltaire, que o grande pensador da Humanidade
escreveu no seu Tratado sobre a
Tolerância (1763), vinte seis anos antes desse marco histórico que foi a
Revolução Francesa, num tempo em que as Luzes já se tinham acendido na Razão
humana.
Voltaire começa, assim, por
dizer a quem se dirige, e o motivo por que o faz:
«Não é portanto mais aos
homens que me dirijo; é a Ti, Deus de todos os seres, de todos os mundos, e de
todos os tempos. (…) Tu que nos deste um coração para nos odiarmos, e mãos para
nos degolarmos, fazei com que nos ajudemos a suportar o fardo duma vida penosa
e passageira;»
O filósofo de Ferney mostra em
seguida como todas as diferenças entre os homens – incluindo as religiosas –
são de uma mesquinhez tão ínfima como a nossa natureza, que classifica de
«átomos». Assim, escreve:
«(…) que as pequenas roupas
diferenças entre as roupas que cobrem os nossos débeis corpos, entre todos os
nossos costumes ridículos, entre todas as nossas leis imperfeitas, entre todas
as nossas opiniões insensatas, entre todas as nossas condições tão
desproporcionadas aos nossos olhos, e tão iguais perante Ti; que todas estas
pequenas diferenças que distinguem os átomos chamados “homens”, não sejam
sinais de ódio e de perseguição; que aqueles que acendem velas em pleno dia
para Te celebrar suportem aqueles que se contentem com a luz do Teu Sol; que
aqueles que cobrem o seu fato com um paramento branco para dizer que é
necessário amar-Te não detestem aqueles que dizem a mesma coisa sob um manto de
lã negra (…)».
Estas últimas palavras
enfatizam aquilo que já assinalámos e que é, o absurdo conflito entre religiões
– cristianismo, judaísmo e islamismo – que defendem a existência de uma só
divindade; matriz que o criador do Candide
ou l’Optimisme, o campeão da tolerância no século XVIII, acentuará no
excerto seguinte:
«Possam todos os homens
lembrar-se que são irmãos, que eles tenham horror à tirania exercida sobre as
almas, como eles abominam o ladrão que rouba pela força o fruto do trabalho e
da indústria pacífica!»
Termina Voltaire a
problemática que vimos tratando, com um apelo à Paz que, no dealbar de
Oitocentos, nos antecipam posições sobre o tema da Guerra de filósofos nossos
contemporâneos, como Einstein e Bertrand Russel.
«Se os flagelos da guerra são
inevitáveis, não nos odiemos, não nos atormentemos uns aos outros no que
respeita à paz, e empreguemos o instante da nossa existência para glorificar da
mesma maneira em mil línguas diferentes, desde o Sião até à Califórnia, a Tua
bondade que nos deu este instante.»
Possa a Humanidade, o mais
depressa possível, cumprir os votos de Voltaire, é o nosso desejo mais
premente.
José Lança-Coelho
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