O personalismo social-substantivista dogmático tem, insistentemente e de um ponto de vista estritamente ideológico, hostilizado o individua-lismo, que considera com uma só face, sem distinguir os vários tipos de individualismo, identificando-o sumariamente, mas de forma não inocente nem ingénua, com «egoísmo», «egocentrismo», «solipsismo» e até, mais recentemente, com «narcisismo» e «autismo» ! Não distingue os vários tipos de individualismo, como dissemos: por exemplo, um individualismo moderado, ou «individualismo verdadeiro», como lhe chama FRIEDRICH HAYEK, o qual não dispensa, de um ponto de vista de integração social global, uma noção de «Ordem», como «sistema civilizacional», e um qualquer horizonte social de integração que agrega, unifica e transcende a mera fragmentaridade plural dos vários indivíduos concorrentes coo-perantes na sociedade; e um individualismo estrito ou radical, ou «falso individualismo», este sim, acabadamente fragmentário e atomista, que desemboca no estrito libertarismo ou anarquismo radical, ou, paradoxal-mente, no colectivismo e no socialismo, que é o que está na base de certas teorias do «contrato social» e tem sido, infelizmente, o dominante em toda a Modernidade. Ignora, ou finge ignorar, que o individualismo pode bem ser uma posição ética, teórica, moral e culturalmente consistente, que deve ser levada a sério. Não leva a sério a postura que representa o «individualismo ético» (LÉVINAS) e o individualismo teórico, o chamado «individualismo metodológico» (que combate todo o holismo absoluto e fechado e todas as pré-compreensões e pré-definições acabadas de «totali-dades sociais prévias» como Todo Social, ou outros «todos orgânicos substantivos» na compreensão da sociedade), porque isso representa, justamente, uma crítica radical à sua (desse comunitarismo dogmático e ontologizante) concepção de comunidade, como um Todo supra-pessoal e totalitário. E acaba por considerar todo o individualismo como «anti- -social» ou simplesmente «associal», só porque parte da sua concepção dogmática da essência exclusivamente «social» da pessoa, não levando em conta que, pelo menos, o «verdadeiro individualismo», que referiremos mais à frente, não rejeita e também aceita a noção de pessoa.
Vemos, por exemplo, um KARL POPPER definir o «individualismo metodológico» como um pré-requisito e uma linha de compreensão indispensáveis e inarredáveis da por ele chamada sociedade aberta (open society): Cfr. A Sociedade Aberta e os seus Inimigos, 1945, 2 volumes, Editorial Fragmentos, Ldª., colecção «Problemas», 1993; e La miseria del historicismo, El libro de bolsillo, Alianza Editorial, Madrid, 1987.
E vemos também a distinção, feita por FRIEDRICH HAYEK, entre o falso individualismo (cartesiano, racionalista, construtivista, atomista, fragmen-tário, estrito ou radical, que tem sido o dominante na Modernidade, pelo menos a de mais marcada influência francesa ou continental) e o verda-deiro individualismo (que aceita a noção clássica de pessoa e que tem de característico o ser primariamente uma teoria da sociedade, o que só por si deveria ser facto suficiente para refutar as acusações infundadas e tolas de ele ser «… um sistema de isolamento da existência e uma apologia do egoísmo», ou de postular a existência de indivíduos isolados ou auto- -segregados, como o faz o «falso individualismo»; mas que se define pelo seu anti-colectivismo e pelo seu anti-racionalismo ou anti-intelectualismo, que é herdeiro de certas intuições escolásticas, sobretudo ibéricas, do direito natural e se pretende continuador, prolongando, do iluminismo anglo-escocês dos séculos XVII e XVIII), no artigo intitulado Individua-lism: true and false, que é o primeiro texto da obra de HAYEK intitulada Individualism and Economic Order, 1948.
A distinção, de HAYEK, entre um «falso individualismo» e um «verdadei-ro individualismo», não se traduz necessariamente numa «…imunização do individualismo sem mais» (A. CASTANHEIRA NEVES), já que possibilita precisamente evidenciar que, o que vulgarmente se designa depreciativamente por individualismo, ou «… o individualismo moderno, naturalista, contratualista e económico-materialista», é, justamente, o «falso individualismo» (sem um horizonte comunitário de «Ordem» e de «integração», sem corresponsabilidade, sem valores e sem regras), bem como a aproximação do «verdadeiro individualismo» ao personalismo e, designadamente, a um personalismo liberal aberto, crítico e realista, como o nosso, a partir da noção comum de pessoa humana individual (e, por isso, afrouxando bastante a rigidez dogmática da proclamada «…antítese indivíduo/pessoa», mas sem deixar de levar implicada «…a mediação ─ nem sempre atendida ─ de “sujeito”, em estrito sentido antropológico») e partilhando os dois (o verdadeiro individualismo e o nosso personalismo) de uma mesma visão do mundo, da civilização, da sociedade, do Estado e do lugar da pessoa neles e da sua relação com eles.
Por outro lado, a responsabilidade e a vinculação da pessoa em relação a esse horizonte comunitário englobante de «Ordem», com a correlativa corresponsabilidade implicada, asseguram, suficientemente, a necessária e possível integração comunitária compatível com a Liberdade, sem se esquecer que as realidades sociais que aí temos hoje são, efectivamente, apenas «integrações desintegradas e desintegrações integradas». A comunidade (como comunidade aberta) e a integração comunitária são, deste ponto de vista, mais um «ponto de chegada» a posteriori do que um dogmático «ponto de partida» a priori.
VIRGÍLO CARVALHO (Dr.).
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