“Para começar,
agradeço o facto de me considerarem paradoxal. Como vejo sempre no heterodoxo o
ortodoxo do outro lado, creio que aquilo que realmente nos pode unir é o
paradoxal. O existir e não existir ao mesmo tempo é, do meu ponto de vista, a
união final das coisas, e isso é o paradoxal.” (Agostinho da Silva)**
Há paradoxos e paradoxos. E Agostinho da
Silva compreendeu bem isso. A indignação perante uma certa impossibilidade de
pensar, incutida, através de preconceitos (pré-conceitos) muitas vezes insuspeitáveis,
garante a indagação sobre a questão que, ao questionar e questionar-se por si/e
a si mesma, abre-se a outra, a outras questões que à partida eram tidas como
inquestionáveis e não pertinentes nesse contexto. Evocamos aqui a potência do
espanto (thaumazein, vj. Arist. Met. A2:
"as coisas serem como são"). Espanto, questionamento originário, constituindo-se
como interrogação (de certo modo negação latente) e exclamação (de certo modo
afirmação latente). Constatação já de um certo saber e não saber. Todavia, o
espanto é motivo para os homens filosofarem, segundo o estagirita (vj. também Platão
Teeteto 155d). Para não falar no grande Sócrates.
Retomemos a epígrafe da primeira parte deste
texto: “Sócrates – Dizem, caro amigo, que os primeiros oráculos no templo de
Zeus, em Dodona, foram feitos por um carvalho! É evidente que os homens
daquele tempo não eram tão sábios como os da nossa geração e, como eram
ingénuos, o que um carvalho ou um rochedo dissessem tornava-se muito importante
conquanto lhes parecesse verídico! Mas para ti talvez interesse saber quem
disse determinada coisa e de que terra é natural, pois não te basta verificar
se essa coisa é verdadeira ou falsa!” (Platão, Fedro, 275 c, trad.
Pinharanda Gomes, Lisboa, Guimarães, 1986). Nada mais favorável. O dado
adquirido e o nome sonante - ou tornado sonante - vão de par. Mas o nome
sonante pode tornar-se a qualquer momento uma colagem. Porque ao nome pode colar-se
a imagem e o texto. E pode ocorrer que, às tantas, já não lemos o texto mas o
nome; ou pior, um acréscimo ocorre como pura imagem de marca, e de um certo mercado,
como é óbvio! Às vezes somos antecipados por colagens de nomes a significados. É
o que mostra o passo do Fedro acima
citado. Foucault escreveu um texto interessante sobre o “nome de autor” (“O que
é um autor”). Mas certamente haverá ainda muito por escrever sobre este tema.
O seguidismo daqueles que, raramente abrindo
excepções, seguem sempre nomes estrangeiros, ainda que nomes de várias origens,
países ou continentes, não estarão, no revés, a ser nacionalistas, portanto,
pela negativa? Estranhos nomes, e quanto mais estranhos melhor. Com dificuldade
mas deleite em pronunciá-los, com muito estilo. Noutro plano, o exemplo do futebol
é ilustrativo. Com os novos nomes esquisitos que vêm lá de fora no início de
cada época, etc., aparecendo nas manchetes dos jornais desportivos. Porquê?
Porque no internacionalismo universalizante das suas opções, voltando à
filosofia, ou, se quisermos, a qualquer área da cultura – quando é numa certa
tendência pretensamente estrangeirada - só dão relevância ao que é
exclusivamente, e a priori, de outra nacionalidade que não a sua. Não só são
nacionalistas pela negativa. São, antes, um estranho avesso. Um avesso ainda
impensado. Portanto, não dão conta que recaem de alguma maneira no desnível (as
subestimações culturais em sentido lato) que pré-supõem, e de que pretensamente
se julgam excluir, incluindo-se. É como aquelas pessoas que sistematicamente
dizem e/ou pensam mal do seu país. De ‘X’ país, de ‘X’ nação, etc. Falamos
daqueles que maldizem num regime de argumentação banalizado, acrítico (e isto
também atinge gente dita de cultura), dizendo todos mais ou menos o mesmo acerca
de um determinado conjunto (conjunto de pessoas), sem darem conta disso, mas
afinal pertencendo-lhe, cada um supondo excluir-se dos outros. Esta expressão, tão
frequente em Portugal, é sintomática e esclarecedora: “É o país que somos.” Estranho
paradoxo. Mas, até a Europa, hoje, não anda a mirar-se muito bem ao espelho…
É evidente que alguns pontos que aqui
abordamos podem deslizar para a confusão de certas noções e temáticas. Pessoas
com melhor conhecimento sobre essas matérias poderão certamente constatá-lo.
Mas, pelo menos, talvez sirvam para ilustrar essa mesma confusão que grassa por
quase todo o lado, salvo o ‘quase’. Por
outro lado, é evidente que a autocrítica e o espírito crítico são essenciais.
Voltando à filosofia. Por outras palavras,
estarão a ser nacionalistas do avesso. Uma vez que, no que respeita a vários
campos do saber, nomeadamente a filosofia, que é o que aqui está principalmente
em causa, seguem sempre, ou quase sempre, o que é estrangeiro como prioritário,
e, por pré-conceito, de maior grandeza de pensamento.
Mas não é interessante que alguns
supostamente tidos por “estrangeirados” acusem de provincianismo alguns
supostamente tidos por “não-estrangeirados”, e reciprocamente? Fernando Pessoa
também falou do provincianismo português. Evidentemente que estas questões dão
que pensar. E haverá com certeza que ter em conta argumentos possíveis de ambas
as partes. Mas não avancemos sobre isto. Indica-se apenas um texto de Pessoa,
entre outros, “Contra a “Síndroma Provinciana” - O provincianismo português” (Textos de Intervenção Social e Cultural…,
ed. Europa-América, org. António Quadros, 1986, p.115) (1).
Todavia, de um certo modo, para fazer face a
estas questões é preciso saber pô-las, também, de lado, defendendo pontual e
tacitamente que o problema essencial não é esse. Convém mesmo guardar silêncio
de vez em quando, e não embarcar sempre nesse barco de discussões. A palavra
também guarda silêncio. Ou, por outras palavras, fazer suspensão, epochê, ou ‘redução’ do problema, para
pensar na linguagem de Husserl. É que todo e qualquer problema pode tornar-se
circularmente fechado. A sua abertura permite pensá-lo sob múltiplos ângulos. A
filosofia, desde a sua instalação na tradição greco-europeia-ocidental
caracteriza-se em grande parte pela abstracção (aphairesis) definida por
Aristóteles: “pensamento das coisas que estão incorporadas na matéria como se
não estivessem” (Aristóteles, De anima, III, 431b). Mas a abstracção
pode por vezes incorrer em perdas de sentido das coisas. Não será ela um dos
possíveis problemas da metafísica? A filosofia corre esse risco. As abstracções
dos rótulos e das etiquetas, paradoxal e incompreendidamente coisificados,
concretizados. Seja na filosofia espanhola, chinesa, francesa, holandesa,
dinamarquesa, alemã, mexicana, filipina, angolana, belga, austríaca,
portuguesa, peruana, coreana, ou lá o que se queira, etc. Este texto que
aqui escrevemos também pode padecer de abstracções a muitos olhos. Mas, há
várias abstracções, que Pessoa, por exemplo, faz questão de frisar. Veja-se o
seu texto “Princípios do Sensacionismo” no âmbito da reflexão sobre a arte, onde
pode ler-se: “Assim, a arte tem por assunto, não a realidade (de resto, não há
realidade, mas apenas sensações artificialmente coordenadas), não a emoção (de
resto, não há propriamente emoção, mas apenas sensações de emoção), mas
abstracção. Não a abstracção pura, que gera a metafísica, mas a abstracção
criadora, a abstracção em movimento. Ao passo que a filosofia é estática, a
arte é dinâmica; é mesmo essa a única diferença
entre a arte e a filosofia” (Páginas Sobre
Literatura e Estética, ed. Europa-América, org. António Quadros, 1986) (2).
Mas, por vezes é preciso pensar: “já não é de
certas questões que se trata.” Ou melhor, a sê-lo, trata-se antes de questionar
sobre o modo como elas já diferentemente devem ser questionadas, quer dizer,
reformuladas. Uma vez que já não fazem sentido nem sequer existem segundo
certas perspectivas ou momentos. É que por vezes não é ocasião para certas
questões. Dar azo a que as questões possam sempre outrar-se, para usar
um termo de Pessoa. Pessoa que não saiu de Lisboa, excepto quando foi para Durban
viver a sua infância e primeira juventude, voltando depois. Pessoa, nos nossos
dias lido de Tóquio a Nova York. Pessoa que também escreveu sobre o Quinto
Império, correlativo, como se sabe, do Espírito e dos Mares, que Agostinho da Silva tanto pensou (3). Pessoa
poeta, cujo pensamento produz infindáveis leituras. Aliás, não haverá
pensamento e filosofia em Pessoa, mesmo na sua escrita poética, na sua arte de
escrita?
Alain Badiou, na abertura do seu texto “Uma
Tarefa Filosófica: Ser Contemporâneo de Pessoa”, escreve: “Pessoa, falecido em 1935,
só foi conhecido em França, de forma um pouco mais vasta, cinquenta anos mais
tarde. Eu incluo-me nesta demora escandalosa. Porque se trata dum dos poetas
decisivos deste século e, particularmente, se se procurar pensá-lo como
condição possível da filosofia.” E na segunda página: “Impõe-se, assim concluir
que a filosofia não está, não está ainda, condicionada a Pessoa. Ela não pensa
ainda à altura de Pessoa.” E: “Sustentaremos
que a linha de pensamento singular desenvolvida por Pessoa é tal, que nenhuma
das figuras estabelecidas da modernidade filosófica está apta a suportar a sua
tensão” (Meditações Filosóficas – Pequeno
Manual de Inestética, Vol. II, ed. Inst. Piaget, 1999). Por outro lado, é
curioso que José Gil, no seu livro Diferença
e Negação na Poesia de Fernando Pessoa, Relógio D’Água, 1999, p.133, escreva:
“”O pensamento” de Fernando Pessoa não existe, se entendermos a expressão no
sentido de um todo sistemático e fechado, logicamente coerente e acabado.” E,
mais à frente acrescenta citando-o e comentando: “Ele mesmo, reinvidicou o
direito de «mudar de filosofia como quem muda de camisa». Além do mais, a sua
coerência e sistematicidade são de uma outra natureza.“ (op.cit. p.133). Aproveitando estas linhas sobre Pessoa, citamos um passo
do livro de Renato Epifânio (Via Aberta):
“Quem considera que Pessoa não é um filósofo por essa razão [“de que jamais
forjou um “sistema filosófico” propriamente dito”] tem, no entanto, que atender
ao seguinte: se, efectivamente, Pessoa jamais forjou um “sistema filosófico”
propriamente dito, isso, em si mesmo, no caso pessoano, é já uma posição
filosófica. Com efeito, se há alguma tese que Pessoa, em nome próprio ou
heteronimamente, sustenta, procura sustentar, ao longo de todas estas páginas [“Textos Filosóficos”], é, precisamente, a
da impossibilidade – filosófica, saliente-se – de forjar, de fundar, um
“sistema filosófico””(4).
A questão da filosofia portuguesa é uma entre
as muitas questões da filosofia e do pensamento em Portugal (5). Estas questões
carecem de discussão com outras que não portuguesas que não em Portugal, não
importa de onde. Deste modo, a questão sobre a questão da ‘filosofia’ talvez
fizesse mais sentido. Como? Pondo-a, de vez em quando, a par daquelas, as
filosofias nacionais e as internacionais, colocando em diálogo muitas questões
imprevistas e novas, garantindo uma melhor compreensão do mundo na sua
espantosa interrogação.
Luís de Barreiros Tavares
______
*Segunda e última parte. Ver a primeira parte
em:
**Numa entrevista a
Agostinho da Silva publicada em 1986 na Revista Filosofia (Sociedade
Portuguesa de Filosofia), nº2, pp 149-183. Entrevista concedida pelo
filósofo em sua casa a Joel Serrão, João Lopes Alves, Nuno Nabais, António Braz
Teixeira e José Pedro Serra. Vale a pena citar as linhas seguintes: "Como no exemplo da geometria analítica, que já referi, esse mundo de paradoxos no qual posso pensar simultaneamente os registos da extensão espacial e da matemática pura. Considerando-me paradoxal, dirigem-me o melhor elogio que eu poderia esperar." E terminando a entrevista na página seguinte: "Importante é instalarmo-nos no paradoxo. Medo tenho eu do ortodoxo e do heterodoxo, que me coibiriam de fazer algo que muito me agrada: poder conversar com pessoas de vários pensamentos, várias atitudes, com a capacidade de as entender em si mesmas, sobretudo quando alguma me aparece com sinal inteiramente contrário ao meu. Quem sabe se precisamente esse, que alguém diria ser enviado do diabo, não é um dos disfarces do divino."
(2) Veja-se também, a propósito, o seu texto
“Apontamentos para uma estética não-aristotélica” (Textos de Intervenção Social e Cultural…, p. 230).
(3) Ver neste blogue o vídeo de Agostinho da Silva:
(4) No capítulo III, “Pessoa, o filósofo do
outro de nós mesmos, o filósofo da nossa finisterra”, in Via Aberta, de Marinho a Pessoa, da Finisterra ao Oriente, Zéfiro, 2009, pp. 57-58.
(5) Evidentemente que estes problemas têm implicações
políticas; para não falar nas culturais, sociais, em sentido lato, e outras.
Mas não temos competência para analisá-las. Tão-pouco o espaço deste texto o
permitiria.
2 comentários:
Gostei bastante. Sobretudo, da referência, sempre oportuna, ao conceito de provincianismo de Pessoa. Ainda hoje, tão certeiro quanto politicamente incorrecto...
Obrigado!
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