Há povos fáceis; os quais, para
serem conduzidos, não precisam senão de políticos para quem exista o
entendimento técnico suficiente dos benefícios que pode prestar uma boa
administração e aquele bom-senso fundamental que distingue economia de esbanjamento
e paz de guerra. Sem querer de modo algum pôr a ideia de que haja homens aos
quais apenas coube promover como que o desenvolvimento físico da humanidade, é
fora de dúvida que algumas das nações, por uma circunstância ou outra, vieram a
especializar-se; e um grupo inteiro, o da chamada Europa, depois estendida,
pela emigração, à América do Norte, e, pela revolução, aos povos russos, tomou
sobre si o inventar da filosofia, da ciência e da técnica; actividades que têm
raízes comuns em não serem actividades de massa, em não conduzirem a coisa
alguma para além de si próprias e, ainda, em só terem sido possíveis na medida
em que um civilização greco-romana se impôs a partir de Maratona e, depois da
Alta Idade Média, voltou com Platão e Aristóteles, marcou vitória no
Renascimento e impôs o contraditório estado de coisas em que povos
pretensamente cristãos na realidade desprezam a Judeia e a Europa do ocidente
papal.
Espírito de professor, banqueiro
ou engenheiro serve perfeitamente para levar esses povos pelo caminho que é o
seu e em que lhes compete organizar tudo o que a humanidade vai necessitar de
material. Eles querem ser felizes, não mais; o seu ideal, fazendo história, é,
no fundo, o de não a terem; francês, abandonado a si mesmo, teria um gosto
perfeito se lhe fosse possível estabelecer um pé-de-meia na eternidade; daríamos
à alma desencarnada do germano, como recompensa do seu trabalho no mundo,
contemplar a ideia pura da eficiência; e ao americano, resumo de todos, daríamos
como ideal ter todo o tempo ao seu dispor para não ter tempo. E o que os salva,
o que os prende ainda ao resto da humanidade, é que nem todos têm efectivamente
sido felizes: tem havido pela história fora o lamento dos pobres, mas esse
acabará em breve; e namorados, santos e artistas têm sido, neste seu mundo de
tempo e espaço e de homem virado a homem, o sinal da Eternidade e de Deus. Sem
pobres e sem aqueles que o Amor prendeu já há muito os teríamos deixado de
reconhecer como pertencendo à espécie humana: porque talvez a Circe homérica não
seja mais do que um símbolo dos perigos que iam correr os que principiavam a
sua história destruindo cidades cujo crime único era o de ter mais respeito
pela beleza do que pela lei.
Se, porém, nos voltamos para
povos como o português e espanhol, e refiro-me aqui indistintamente a todos os
povos de línguas portuguesa ou espanhola, já a questão se nos apresenta de
forma inteiramente diversa. O administrador puro não nos interessa; a nossa
ideia, no fundo, é a de que, para a mesma tarefa, poderíamos ter alugado um
holandês ou um checo, e daí a nossa tantas vezes impensada confiança no técnico
estrangeiro; não nos interessa o pensador de conceitos gerais e não teríamos
como título máximo de glória para um político ter proferido, ante os mortos da
guerra, o louvor dos que tombaram por Atenas; e muito menos nos interessa o
liberal meio céptico que cria Impérios a partir de clubes e deles deixa, quando
acabam, o que havia dantes, só com mais telefones e um pouco mais de
pedantismo.
Queremos em primeiro lugar que os
nossos políticos tenham fé no valor que representam os povos que vão governar. Não
nos serve o enamoramento do estrangeiro, embora nos não repugne a sua utilização
naquilo em que nós próprios temos de resolver os nossos problemas de carácter
material; mas o que não admitimos nunca é que nos meçam atraso pelo que é para
os outros adiantamento; não progredimos tanto como eles e no mesmo campo que
eles; mas gostamos de que nos lembrem, quando nós próprios às vezes o esquecemos,
que não nos deixamos corromper profundamente pelo que trouxe consigo o domínio
da Europa sobre o mundo, e que, do lado português, guardamos a ideia de
possibilidades de vida lírica na terra e, do lado espanhol, a convicção de que
só precisamos de governo porque houve o pecado original. Não avançamos no
material tanto como as outras nações; porém perdemos menos do que elas o que é
mais essencial: lembrança e desejo de um Paraíso que, pelos erros, se perdeu,
e, pelos acertos delas, nunca mais se veria.
Se esta é a fé basilar que
exigimos do político, fé no valor intrínseco da comunidade, teremos como seu
complementar o gosto de saber que o membro de governo tem aquela espécie de
ascese que vem não de se negar, o que é de qualquer modo dar por si mesmo, mas
de se não perceber como destacado do conjunto ou, por outras palavras, com o
destacado de Deus. O ideal de nossa gente vai à formação de um político que
tenhas os gostos comuns no que eles possuírem de melhor, e seja ao mesmo tempo
o ponto cardeal a que prefeririam rumar; tem de ser um santo e tem de ser um
santo popular: Santo António, neste sentido, foi político, exactamente como
Santa Teresa; ou, para tomar o outro lado da questão, como foram santos Afonso
X ou Nuno Álvares ou Marti ou o Alferes de Minas. Mas detestamos os santos por
orgulho, hipocrisia ou desdém. Ou os que desprezam os bens do mundo porque os não
sabem tomar.
Depois, a questão de,
lendariamente ou não, bailar com o povo de Lisboa e assistir, às vezes um pouco
miudamente, a exames e concursos, faz parte do que exigimos do verdadeiro político.
Do lado europeu, prova-se que se é comunitário quando, ao entrar-se na política,
se principia por fazer parte da junta que governa o bairro, embora com a ambição
de ser Presidente ou Par. Isso, porém, é demasiado mesquinho para quem
verdadeiramente fala ou português ou espanhol: o nosso ideal seria o de
principiar governando o país inteiro; mas depois, com muito gosto, numa espécie
de aposentadoria, daríamos nossas opiniões sobre o campanário da aldeia. O que
marca entre nós o gosto do comum é que nos repugna o governar rebanhos de
gente; queremos que o político esteja connosco, ao mesmo tempo que vai à nossa
frente; queremos que seja humilde e grande. E queremos afinal que nos ame com
aquele verdadeiro Amor que consiste em amar o Amado tal como ele é e, simultaneamente,
como virá a ser quando, por nosso Amor, tudo o que é surgir. É também, na
realidade, como o amamos a ele: com seus acertos e seus erros, suas fraquezas e
suas valentias; como é; e, ao mesmo tempo, como poderia ser se nós próprios,
tantas vezes, lhe não impedíssemos o caminho.
Só com políticos deste tipo poderá
o mundo ibérico vir a ser o que é de seu destino, mas o tempo retarda. E poderíamos
pensar aqui que é então de nossa essência esperar que o chefe seja para que
sejamos, o que poria o sebastianismo como essencial em nossa evolução histórica;
certamente o é: só por essa fé, e por essa fé messiânica, poderíamos explicar
que nas épocas áureas tivéssemos estado tão intrinsecamente unidos a muçulmanos
e a judeus. Só que sebastianismo é apenas corrupção de messianismo: é o péssimo
que vem da corrupção do óptimo e nos faz aceitar como Messias todo o ambicioso
e todo o aventureiro. Essa linha mestra não se encontra nítida depois de Alcácer-Quibir;
onde ela esplende é no momento em que o povo de Lisboa, querendo um Messias, o
fabrica; e a partir de barro tão frágil como o de D. João.
Diremos talvez que estamos
demasiado longe de um ideal desta espécie. E sempre estaremos enquanto o
julgarmos, enquanto todas as nossas forças de espírito se não empregarem
totalmente na contemplação deste sonho de um realizador de todos os outros
sonhos. Tão completamente o temos de fazer que haja para ele depois a mais bela
e a mais difícil de todas as tarefas: a de se ver apenas como um servidor do
comum. Não foi feita a nossa gente para ser, em conjunto, discípula de um
Mestre: a sua Missão é a de mostrar como é possível haver mestres, e serão eles
os melhores, que sejam discípulos dos discípulos; servos dos servos.
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