Tony Judt (1948-2010) foi um reputado historiador, escritor e professor universitário britânico que leccionou na Grã-Bretanha e nos EUA. Foi galardoado com vários Prémios nos últimos anos: finalista do Prémio Pulitzer em 2006, vencedor dos Prémios (Hannah Arendt em 2007, Livro Europeu em 2008 e Menção Honorária George Orwell em 2009). O seu livro mais emblemático intitula-se Pós-Guerra – Uma História da Europa desde 1945, que já se tornou um clássico da historiografia europeia. Veio a falecer em Agosto de 2010 com uma esclerose lateral amiotrófica. Tornou-se um pensador das implicações da actual Globalização e um crítico contundente das posições de Israel e da política belicista dos EUA levada a cabo por G. W. Bush. Em 1996 criou na Universidade de Nova York um centro de estudos europeus designado “Remarque Institute”.
Este pequeno, mas substantivo, livro[1] procura responder a quatro grandes questões que se revelam de enorme actualidade:
- Que factores históricos levaram à crise do Estado-Providência dos países Ocidentais nos últimos 35 anos (1975-2010)?
- Que lição histórica nos legou a mega Crise do capitalismo industrial de 1929?
- Por que razão as sociedades actuais dos países ocidentais se sentem descontentes?
- Como podem os países Ocidentais enfrentar os crescentes problemas socioeconómicos que os afectam?
Esta pertinente reflexão política, de base histórica, tem como objectivos centrais despertar a consciência crítica e cívica dos nossos prezados concidadãos ocidentais, que vivem numa gritante indiferença ideológica, por se terem deixado iludir pelas virtualidades do mercado livre (teologia de mercado[2]) que conduziu à redução dos mecanismos de intervenção do Estado.
Efectivamente, após 30 anos milagrosos, de prosperidade económica e de garantias de segurança, dados pelos Estados-Providência aos cidadãos ocidentais (1945-1975) a Europa e os EUA iniciaram uma inversão ideológica que desembocou numa crise múltipla, já no período de transição do século XX para o XXI, geradora de um mal-estar colectivo destas sociedades. Este transviado caminho começou com a liberalização económica extrema iniciada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, influenciados por ideólogos famosos como Friedrich Hayek, Ludwig von Mises e Milton Friedman, por escolas de gestão que proliferaram, que implementaram políticas neoliberais, conducentes à desregulamentação da economia e das finanças internacionais, com o pressuposto de que o individualismo geraria concorrência saudável e eficiência em muitos serviços prestados ao público.
Esta opção ideológica permitiu a onda de privatizações que varreu grande parte da Europa. Esta fase histórica foi impulsionada pela queda do muro de Berlim (1989) e dos regimes comunistas no leste do “velho continente” que deu a sensação a alguns, que subscreveram a tese de Francis Fukuyama[3], que o rumo político da História era uno para toda a Humanidade (“fim da História”). Contudo, com a implosão do capitalismo financeiro, em 2008, a opinião pública mundial percebeu a falta de esteios Éticos por parte dos Estados que deviam ter sido mais interventivos e vigilantes. Depois dos “calafrios” do cataclismo do sistema financeiro norte-americano, Henry Paulson, Secretário de Estado do Tesouro de G. W. Bush pediu autorização Estatal para injecções de capitais no periclitante sistema financeiro. Este ponto de chegada (a crise financeira de 2008) resultou da irresponsabilidade política dos dirigentes ocidentais na transição do século XIX para o XX.
Esta actual situação pantanosa das finanças internacionais, resultante da liberdade absoluta que foi dada aos especuladores e investidores privados, procedeu dos mitos impostos pelos defensores do Neoliberalismo, designadamente dos princípios seguintes encarados como dogmas: o culto das privatizações e do sector privado como favorável à eficiência e à qualidade dos serviços; a ilusão de que mercado livre iria permitir o crescimento ilimitado das economias; a virtude da desregulamentação do sector financeiro e de um Estado reduzido à dimensão mínima. Este credo Neoliberal foi mais absorvido pelos EUA, que acabaram por sofrer terrivelmente com a implosão do sistema financeiro, uma vez que estava minado por especuladores sem escrúpulos.
Esta crise actual, que se expandiu globalmente a outras regiões e a outros sectores, traduz a degradação Ética que colheu a sua seiva no sistema da competição selvagem que se instalou com os Governos de matriz neoliberal. Por exemplo, a Irlanda, que seguiu de perto os modelos britânico e norte-americano, foi considerada durante muitos anos como um modelo a imitar por várias nações que se queriam alçar nos “rankings” de crescimento económico, viu o seu sistema financeiro entrar em ruptura.
O economicismo como estratégia política tem degradado a Civilização Ocidental, que naufraga à vista de todos os honrados cidadãos, porque na visão de Tony Judt tem faltado aos Governantes um pensamento político de fundo e as opiniões públicas não despertaram ainda para esta situação de calamidade social com taxas de desemprego exorbitantes, em vários países, e com uma visível degradação do nível de vida das classes médias. Não obstante, esta apatia, das opiniões públicas, tem havido vários alertas de sumidades para a desconfiança que se deve manter perante o sistema financeiro, e os seus agentes, pois as verdades proclamadas contaminaram a credibilidade do capitalismo sem peias que foi fustigado por mentes conscienciosas de diferentes convicções ideológicas (Papa Bento XVI[4], Dr. Mário Soares[5], Professor e Pensador Vitorino Magalhães Godinho[6], o Historiador e Pensador Tony Judt, etc).
Como soluções de emergência, para obstaculizar as bancarrotas nacionais, os Estados, anteriormente tão odiados, foram em socorro dos bancos e das empresas injectando dinheiro dos contribuintes nesses sorvedouros resultantes da imoderada especulação e do lucro fácil que atraiu incautos cidadãos. Neste contexto, generalizado, de insucesso das políticas neoliberais as teses Keynesianas (economista John Maynard Keynes[7]) foram reabilitadas, porque importava fortalecer os Estados e tornar os Governos mais intervencionistas nas economias.
Tony Judt, com a acutilância da sua argumentação histórica, denuncia neste excelente ensaio que as rupturas do Estado-Providência e dos Sistemas de Segurança Social não se devem só ao factor da quebra demográfica Europeia, como os políticos e muitos comentadores gostam de sublinhar, mas fundamentalmente ao desmantelamento do Estado e dos seus Bens Patrimoniais por via das opções neoliberais. Com efeito, na sua percepção, a social-democracia esboroou-se dos cenários políticos das últimas décadas com o fenómeno das privatizações que fragilizou os Estados, com o processo da internacionalização das economias nacionais (vulgo Globalização económica) que facilitou a fuga de capitais aos mecanismos de tributação, por via dos paraísos fiscais, e com a crise demográfica procedente do envelhecimento da população Europeia.
Na sua vasta lucidez, o autor não evita a questão da falta de sustentabilidade económica dos Estados-Providência, mas afirma que tal possibilidade implica uma tributação elevada, geral ou selectiva, dos contribuintes e uma redefinição dos Serviços Básicos do Estado Social. Apenas evita falar em socialismo democrático por uma razão de convicção ideológica. Por outro lado, apresenta as emergentes potências mundiais (China e Índia) como países em contra ciclo económico, pelos níveis acelerados de crescimento dos últimos anos, que apenas proporcionam riqueza a uma minoria das suas sociedades.
Importa reter, também, algumas lições da História Contemporânea que Tony Judt como um reputado historiador nos deixa. Na realidade, os 30 anos do pós-guerra de 1945 a 1975 permitiram aos países mais desenvolvidos do Ocidente erguer Estados-Providência, ou no mínimo edificar um Estado Social de protecção dos cidadãos mais desfavorecidos, que contribuíram para diminuir as desigualdades sociais internas em várias nações Europeias devido às orientações social-democratas. Esta consciência construtiva dos Estadistas Europeus do pós-guerra adveio da recordação histórica, gravada na memória colectiva, da Grande Depressão de 1929 e das suas nefastas consequências sociais, políticas e militares (desemprego gritante, ascensão das ditaduras de extrema direita e eclosão da Segunda Guerra Mundial), tendo levado os Governos do Ocidente ao Planeamento, à Regulação e à Intervenção em todos os aspectos da vida da sociedade e da economia, embora com um sacralizado respeito pelos Direitos e Liberdades dos cidadãos.
De facto, a seguir à Segunda Guerra Mundial houve um consenso político-ideológico que congregou economistas, políticos, analistas e cidadãos em torno da necessidade de aceitar tributações elevadas para suprir as exigências das Despesas Públicas com os Serviços Sociais, o que se ficou a dever às lições da absurda beligerância das nações Europeias. No entanto, o predomínio da tendência individualista e as iniciativas políticas da “Dama de Ferro” e do “Cowboy”[8], dos filmes Western, vieram a mudar o paradigma e a mentalidade política prevalecente nos anos 80, 90 e nesta primeira década do século XXI com os ruinosos resultados que hoje são visíveis.
A solução para o futuro, na visão deste esclarecido e prudente historiador, está na reinvenção de um novo paradigma, sem dogmas, que implique o reencontro com os princípios da social-democracia e do socialismo democrático para que a Civilização Ocidental possa caminhar para a superação dos dilemas que agora a afligem. Acredita, pois, no papel do Estado e do sector público para a viabilização do Bem Comum e de uma Sociedade mais justa. Tony Judt lembra-nos que é nos países que adoptaram a social-democracia como paradigma político (a Suécia, a Finlândia, a Noruega, a Dinamarca, a Holanda, etc) que se manifesta uma maior justiça social, um maior bem-estar dos cidadãos com uma riqueza mais bem distribuída constituindo a argamassa que salvaguarda a coesão das próprias sociedades. Sem este indispensável investimento estratégico na revitalização, exequível, dos Estados-Providência continuaremos a viver na conjuntura internacional de uma Globalização, egoísta, que tem conduzido às crescentes desigualdades sociais internas e ao flagelo do desemprego em larga escala.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
Publicado originalmente e com documentos complementares em: Crónicas do Professor Ferrão
[1] Tony Judt, Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos, Lisboa, Edições 70, 2010.
[2] Adriano Moreira, “A perspectiva da Globalização do passivo”, in Estudos da Conjuntura Internacional, Lisboa, 2000, p. 296.
[3] Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, Lisboa, Edições Gradiva, 1992.
[4] Bento XVI, A Caridade na Verdade – Encíclica, Prior Velho, Edições Paulinas, 2009.
[5] Mário Soares, Elogio da Política, Lisboa, Sextante Editora, 2009.
[6] Vitorino Magalhães Godinho, Os Problemas de Portugal – Os Problemas da Europa, Lisboa, Edições Colibri, 2010.
[7] John Maynard Keynes, Teoria geral do Emprego, do Juro e da Moeda, Lisboa, Relógio de Água, 2010.
[8] Margaret Thatcher ficou assim conhecida nos meios de comunicação social dos anos 80 e 90 pela sua intransigência e Ronald Reagan já era conhecido, antes de exercer a Presidência dos EUA, como um actor de filmes de cowboys.
2 comentários:
Caro Nuno
Este é um texto sem dúviva muito bem escrito, mas na minha opinião ingênuo.
Acontece que a maior parte das pessoas nao tem princípios, nem aplica princípios, mas gere princípios conforme a conveniência.
Embora eu não seja inclinado a essa política, tenho que admitir que nunca ninguém deu oportunidade ao neoliberalismo, só o usaram enquanto acharam conveniente para interesses próprios.
Nesta última crise financeira vimos como todos os estados intervieram. Quem disse que a falência de bancos sucessivos e a recessão econômica subsequente e a respetiva crise não era a "mão ivisível" fazendo o seu trabalho de equalização social. Essa crise ia ser má para quem? Para os miseráveis? Sem dúvida para os poderosos, que à última da hora mudam as regras do jogo como faz uma criança que não sabe perder o jogo.
Caríssimo Paulo Pereira,
Agradeço o seu comentário e o facto ter apreciado o meu estilo literário.
Não concordo com a ingenuidade da leitura feita. Na verdade, a natureza humana revela, muitas vezes, tendência para comportamentos egoístas ou vazios de conteúdos Éticos por ignorância ou por conveniências pessoais, como o Paulo nos refere. Por esta razão, é fundamental que o sistema global, e educativo em particular, transmita valores e princípios para servirem de ancoragem a todos os cidadãos.
Neste caso, o sistema financeiro tem sido permissivo e conivente por falta de regulação e supervisão, por isso muitas das irresponsabilidades não foram sancionadas. Claro, os Estados deram cobertura e foram coniventes com a imoralidade financeira como o prova à saciedade o filme-documentário ( "A verdade da crise" -título em português) que apresento como documento anexo no meu blogue.
Tony Judt dizia com muita razão que, pelo contrário, a crise de 2008 alargou as desigualdades sociais internas aos países Ocidentais e essa crise foi sobretudo má para os países que estão a sofrer pressões para terem a intervenção do FMI, ou que já a aceitaram, e para as classes desfavorecidas e as classes remediadas. Os poderosos, com excepção de B. Madoff, e pouco mais saíram ilesos com operações ardilosas de engenharia financeira.
Saudações cordiais, Nuno Sotto Mayor Ferrão
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