Revolução de 25 de Abril, Alfredo Almeida Coelho da Cunha, 1974
Como chegámos a este asco e tudo se tornou lama? Lembro-me de um dia tremendo em que as ruas foram belas, lembro-me de tudo com uma nitidez de prata, rostos verdes e um cântico numa onda nua. Havia cavalos perdidos e homens fardados de flores e eu era um dos meninos que corriam. Não sei explicar porque começámos todos a correr, sei que fecharam a escola e havia aquela menina que chorava sentada nas escadas e dizia que agora iam prender o pai e eu disse-lhe olha, o meu pai disse que eles não querem fazer mal às pessoas, eu não sabia nada e lembrava-me do meu pai fardado com uma G3 no banco de trás do carro a dizer-me o pai não sabe quando volta, não saias de casa, e depois eu estava no meio dos outros miúdos que corriam, não sei para onde.
Acho que ainda corro dentro de mim, nunca mais tive descanso, quero voltar, quero voltar e poder fazer alguma coisa, ser já grande para a onda sem fim, que corria num relâmpago branco pelas ruas. Um dia alguém narrará esse dia, não o dia que foi, mas o dia dentro dos meninos que corriam, o dia que dividiu aquelas vidas em dois abismos do tempo, um dia alguém explicará a minha geração, a dos meninos que correram entre os rostos verdes, os cavalos, as fardas sangradas de flores e que eram demasiado pequenos para se tornarem políticos, homens ricos ou heróis e passaram o resto das suas vidas a fugir com os olhos mortificados de esperança e poesia. Um dia...
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