O Papa, neste seu texto Quaresmal, situa-nos as raízes das injustiças humanas no coração perverso de muitos homens permeados do niilismo ético, herdeiro de F. Nietzsche, carente dos sãos influxos da transcendência. Daí, a prevalência nas sociedades, contemporâneas e pós-modernas, de fenómenos emergentes como o egoísmo e o individualismo como forças anti-éticas e pouco construtivas de conjuntos populacionais mais justos.
Radica nesta evidência de mal-estar colectivo o apelo que os cristãos sentem de se tornarem participantes de iniciativas em prol de um mundo melhor. É nesta dialéctica, da bondade, que nos introduz Karl Popper ao desconstruir a benignidade dos sistemas ideológicos fechados. Com efeito, a justiça cristã exige o nosso despojamento hiperbolizado do sentimento individual feito, tantas vezes, de afirmações agressivas. Assim, o cristão é convocado a praticar o Bem e a lutar por sociedades mais justas! O patamar da justiça divina que deve estar entranhado na boa conduta do cristão faz-nos seus agentes ao vivenciarmos o amor, a generosidade, os dons e a esperança que Deus nos concedeu como virtudes teologais. Em suma, como dizia o apóstolo São Paulo: “já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”.
Antes que se gerem equívocos, Sua Santidade recorda-nos a existência de duas justiças, a divina e a humana. A conciliação destas duas dimensões pode-se fazer pela justiça trina (justiça cristã = justiça divina x justiça humana). A justiça divina assume-se, assim, como o coeficiente acrescido à justiça social, que tem mobilizado muitas forças políticas dos nossos dias. Em síntese, a justiça cristã advém da infinita misericórdia e das graças que Deus nos concede.
Neste contexto da ética cristã, a vivência plena da Quaresma implica a manifestação, cabal, dos sentimentos cristãos mais nobres (da caridade, da fé, da bondade, da compaixão, da generosidade, etc.) para praticarmos uma justiça ancorada num Cristianismo autêntico.
Nuno Sotto Mayor Ferrão
Publicado originalmente no blogue http://www.cronicasdoprofessorferrao.blogs.sapo.pt/
Post-Scriptum - A imagem reproduz um quadro do pintor português Quinhentista de nome Vasco Fernandes, mais conhecido por Grão-Vasco. O espírito enunciado no texto, como interpretação da mensagem pontifícia, está, em boa parte, plasmado na justa acção do MIL no espaço lusófono.
15 comentários:
Se o que o Papa diz é o que o meu caro entende - então aconselho vivamente o Papa a contratar explicações de Filosofia (já agora também de História e a encomendar um Bispo - de preferência Anglicano - cujo conhecimento da Teologia Cristã vá para além da catequese).
Só era bom klatuu que as tuas ideias e dizeres não fossem emboçados. Que sejas só tu o embuçado!
Bem, bem... o Papa ficou na companhia do Nietzsche e do Popper como Jesus na companhia dos dois ladrões :)
Caro Nuno, há aí um grave erro teológico: o Papa não pôs, nem podia pôr, as raízes da injustiça no 'coração perverso de muitos homens' permeados de Nietzsche (!). Põs as raízes da injustiça no coração de todos, dos bons e dos maus, o seu e o meu (e o dele, Papa). Pôs as raízes da injustiça na própria fundação do mundo, como uma vez disse René Girard, alias glosando uma frase bíblica. Mistério da treva no coração do homem - mistério da Páscoa, se Cristo se tiver erguido dos mortos.
Eu destacava esta passo da "mensagem da quaresma":
"...tentação permanente do homem: individuar a origem do mal numa causa exterior. Muitas das ideologias modernas, a bem ver, têm este pressuposto: visto que a injustiça vem “de fora”, para que reine a justiça é suficiente remover as causas externas que impedem a sua actuação: Esta maneira de pensar (...) é ingénua e míope. A injustiça, fruto do mal, não tem raízes exclusivamente externas; tem origem no coração do homem (...)"
Nesse sentido, mistério. Mas não terá a injustiça - agora digo eu, e digo-o para que esta conversa caiba no blog do MIL - raízes "exclusivamente" externas: vêm elas de dentro, e por isso que cada um procure o seu caminho, de preferência no silêncio; vêm elas, também, e muito, de fora: e por isso que cada um procure combatê-las, de preferência na acção colectiva (ou, mais rigorosamente, política). E aí, como em tudo, a miopia abunda, tanto ou mais do que a ingenuidade.
Abraços a todos
A César o que é de César, e a Deus o que é de Deus - e em caso de dúvida, então: a César o que é de Deus. É bem menos civilizacionalmente nocivo do que o inverso.
Escusado será dizer que me estou a borrifar para o que diz este Papa, e todos - com excepção de algum que tenha sido algo mais em que valesse a pena o pensamento deter-se.
Caríssimos companheiros Klatuu, Paulo e Casimiro,
se há alguém ignorante sou eu e não o Papa!
Prezo muito as qualidades intelectuais de Bento XVI.
A interpretação é minha na senda da criatividade interpretativa que Paul Ricoeur nos indicou no seu magnífico opúsculo "Teoria da Interpretação".
Caro Casimiro, tens razão quando afirmas tratar-se de um erro teoloógico grave no meu segundo parágrafo, mas na livre sensibilidade interpretativa que me assiste veja essa natureza do mal mais como exógena ( em termos culturais ) do que endógena. E nessa medida discordo do Papa nesse ponto. Dou, pois, a "mão à palmatória" pelo teu pertinente e justo esclarecimento... Louvo que tenhas confrontado a minha interpretação com o original.
No entanto, o meu pensamento continua o mesmo e, apenas, me sentiria tentado a reescrever parte do segundo parágrafo. Porquanto, não nos podemos esquecer que foi o "caldo cultural" do niilismo que potenciou o germinar do hediondo Holocausto Nazi...
Abraços a todos,
Nuno Sotto Mayor Ferrão
O Padre João Seabra conta-nos, no seu último livro, a relação entre o Estado e a Igreja na 1ª República que estou curioso em ler.
A laicidade Constitucional do Estado é fundamental, mas a meu ver a ética cristã ( não necessariamente católica ) deve influenciar os actores políticos e os cidadãos para que as políticas públicas sejam mais transparentes, generosas e se saia do marasmo moral das sociedades contemporâneas... Só, assim, um dia os Césares deste mundo deixarão de "nadar" na crise de valores que se arrasta na História Universal desde o século XIX...
Abraços a todos,
Nuno Sotto Mayor Ferrão
Caro Nuno, os 'caldos culturais' são como o mistério da criação da vida: como poderia o nada transformar-se em alguma coisa? As culturas têm a sua história, e por mais que recuemos já a história vai a meio... Que responsabilidade tiveram os Papas do Renascimento na Reforma Luterana, e portanto no cepticismo racionalista, e portanto nas 'Luzes' e portanto no niilismo e portanto no nazismo?
Traçar uma linha e dizer 'eis os maus'? Deixemos isso aos Césares. A genealogia é uma ciência perigosa.
Quanto ao critério do Klatuu - em caso de dúvida, César - acho que sim, embora isso seja complicar uma coisa simples: nada há neste mundo que não pertença aos Césares. Isso, aliás, é magnificamente dito nos livros dos evangelistas.
Não por acaso, no Evangelho discutia-se, na parte que aqui interessa, o significado do dinheiro - onde o focinho do César estava irremediavelmente gravado.
Uma das maiores obras primas do desenho animado é, para mim, sem dúvida, o Ratatouille.
Para mim, a frase mais engraçada -- e terrivelmente subtil e sublime -- foi a que o cozinheiro chefe diz ao aprendiz:
"Muitos conhecimentos de legumes às vezes não é bom..."
Papas e interpretações à parte... O MIL assim como não tem partido, não tem religião, e nenhum dos actos do MIL são a expressão seja de que religião for.
Quanto ao Nietzsche, resta lê-lo.
Quando a não sei que caldo que potenciou o nazismo... é uma das maiores falsidades que herdámos do século XX - o Nietzsche nem de perto nem de longe contribuiu fosse com o que fosse para o nazismo. Mais: o Nietzsche detestava anti-semitas. E no tempo de Hitler não havia nenhum nihilismo, nem nunca houve em tempo algum (bom, houve uns anarcas parvos russos)! Não é uma corrente filosófica, política, ou algo do género, mas apenas um «mero» conceito, com o qual Nietzsche pretendeu simbolizar o seu diagnóstico da civilização - cristã.
Aconselho o meu amigo a actualizar-se no que diz respeito ao nazismo - porque já em post anterior acerca do holocausto cometeu algumas imprecisões, nomeadamente ao denominar as SS de polícia política. A polícia política era a Gestapo. As SS substituiram as SA como exército pessoal do Hitler, mas foram mais do que isso, foram um exército ideológico ao qual cabia dar cumprimento ao nacional-socialismo, a todo o custo - pior que uma polícia política, estas não se dedicam ao genocídio sistemático. Porém ressalve-se que os Corpos de Assalto das SS (Waffen SS) foram apenas tropas de elite, sobre as quais não penderam crimes de guerra.
Voltarei ao contraditório, mais tarde e assim que possa, porque as suas objecções merecem resposta...
Nuno Sotto Mayor Ferrão
Caro Casimiro, acredito numa História estruturalista com uma metodologia própria. Acho que fazer juízos de valor, não pertence ao domínio do historiador, mas assume-se como um imperativo de cidadania!
Caro Paulo, é verdade o excesso de ingredientes nem sempre torna uma sopa mais saborosa...Mas tudo depende da habilidade do cozinheiro.
Caro Klatuu, não sou especialista no Nazismo nem sou um "Enciclopedista" de convicção, por isso os erros que detectou são naturais. Agradeço os seus esclarecimentos, mas apesar do revisonismo de alguns historiadores do século XXI, a verdade é que houve historiadores a associarem o nihilismo ao nazismo e, numa análise de aparência, a similitude entre Hitler e o "Super Homem" de F. Nietzche é grande. Para além disso, diz-se que a irmã do filósofo ofereceu a bengala deste a Hitler, o que torna a suspeita da relação ideológica bastante importante.
Abraços a todos,
Nuno Sotto Mayor Ferrão
Nietzsche morreu em Weimar a 25 de Agosto de 1900 - tinha Hitler 11 anos de idade (nasceu em 1889)! Hitler escreveu «Mein Kampf» em 1924 - e as teses desta obra nem de perto nem de longe têm seja que relação for com a filosofia de Nietzsche, e nenhum historiador contemporâneo da II Guerra Mundial estabelece esse tipo de relação. Esse paralelo ganha moda a partir do final da década de 50, e é bem miudinho, principalmente se colocado como o meu caro o coloca. Como já lhe disse o nihilismo nada é, a não ser um conceito nietzschiano de diagnóstico à decadência da civilização cristã... assim resumindo e simplificando, muito: Nietzsche não é um nihilista, nem o inventor do mesmo, mas um seu crítico feroz; «nihilistas» são os cristãos do final do século XIX para Nietzsche, de modo nenhum o nacional-socialismo que emerge nos anos 20/30. Aliás, qualquer encicloplédia lhe dirá que o nacional-socialismo é um modo (deturpado? perverso? seja!) do socialismo.
Não será decerto por uma bengala!... Ainda em vida do filósofo, a associação da sua irmã, Elizabeth Vöster Nietzsche, a ciclos nacionalistas anti-semitas fez com que alguns dos seus mentores se interessassem pela obra de Nietzsche e quisessem a proveitar-se da sua mesma, intuitos contra os quais Nietzsche protestou (em cartas históricas e inequívocas), e protestou não apenas expressando um divórcio ideológico, mas frisando bem a total incompreensão da sua filosofia, e mais, fazendo tudo isto num tom extremamente violento e de asco para com os anti-semitas (Nietzsche tinha uma personalidade irascível).
O próprio Hitler expressou mais tarde admiração pela obra de Nietzsche, mas essa admiração era do mesmo teor da que tinha por Wagner - a de um homem mediano por aquilo que considerava superior... assim uma espécie de «burro a olhar para um palácio». Não há um só pedaço da obra de Nietzsche que Hitler tenha percebido - não tinha miolo para isso.
Se há povo de quem Nietzsche diga mal é dos próprios Alemães, que designa por «bestas louras». E após o rompimento com Wagner, Nietzsche passou a afirmar considerar-se mais Polaco que Alemão.
Etc, etc, etc, etc - leia Nietzsche e tente percebê-lo. Evitará afirmações sem nexo como esta: «a similitude entre Hitler e o "Super Homem" de F. Nietzche é grande». A similitude é zero: Hitler foi um meio judeu, pequenote e mediano, psicótico e cretino - o Übermensch de Nietzsche, que por sentido teríamos que traduzir em Português por «sobre-humano», mas que por cautela semântica melhor se traduz por «supra-humano» é uma tese em muitos aspectos culturalista, mas que não se confunde com nenhuma engenharia social. Este Übermensch está muito próximo da ideia anarquista de «homem autónomo» (e Nietzsche terá lido Max Stirner, que morreu em 1856). De qualquer homem este Übermensch de Nietzsche seria o produto de uma «engenharia» espiritual e civilizacional, entre a ascese pessoal e um novo modelo de homem que alterações profundas da civilização (transmutada em todos os seus valores) produziria.
Nietzsche foi um ateu, com um forte misticismo pagão, que o fez rejeitar o cristianismo, mas também o budismo (em voga nalguns ciclos culturais alemães). A sua família filosófica é longa e antiga, vai desde os neo-pagãos helénicos e romanos até aos pioneiros do Renascentismo, é tanto parente do Celso do «Contra os Cristãos» como do Pico della Mirandola que via uma única saída para o homem futuro: tornar-se ele próprio Deus.
Errata: onde se lê «da sua mesma» leia-se «da mesma».
Caro Klatuu, por impossibilidade de responder, de momento, ao seu comentário agradeço os seus aprofundados esclarecimentos. Logo que possa cá voltarei à controvérsia sabendo que é um profundo conhecedor da vida e da obra deste filósofo.
Cordialmente,
Nuno Sotto Mayor Ferrão
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