58 - O autor voltou a encontrar-se, por ocasião das chuvas fortes e dos ventos acelerados, isto passando-se no topo da Serra, com Babalith e aquele grupo ao qual, por vezes, atende. Havia por ali um moinho, cujo interior ostentava o chão a descoberto, e que se mostrava especialmente silencioso. “Vejo,” disse-lhe, tranquilizado pelo meu próprio respeito, e recordando-me do vazio ruído de encontros anteriores “que implementaram um novo método.” Ela riu-se, um riso frágil mas intocável. “Continuamos” assegurou-me, “a fazer música o mais alto que possamos, para ferir o quanto pudermos. Vê as tuas caladas espingardas de cravos, e que a longo prazo só instalaram um silêncio de cobertura a todo o vil insecto que é próprio da falsa beleza das flores. No entanto, perante o temporal, o melhor que temos a fazer é encontrar o seu centro, eu disse centro, e lá construir moinhos de silêncio e quietude.”
59 - É altura de nomear esta gente. Cada um chama-se a si mesmo de Xamã. São por conseguinte ‘Os Xamãs’. Cada um tocou um instrumento, acompanhado após alguns segundos pelos outros, e apresentou-se deste modo. Escolheu-se um ramo e com ele fez-se passar a palavra. Um, que não tinha nenhuma das orelhas, recolheu-o do centro, iniciando: “Digam-me”, chispou “um poderoso símbolo das dinâmicas de poder na modernidade”. Eu comecei pelos anjos, profetas, e manifestantes da ira de uma qualquer divindade, ou contra essa divindade a favor da humanidade, e um místico mito de uma certa taumaturgia na obra do poeta, do filósofo, e até do cientista. Outro, em quem várias traças haviam pousado, espantando-as com o ramo, respondeu-me. “Talvez um dia tenha havido em que os anjos desciam ao mundo nas correntes do nosso sangue, nas entoações das nossas palavras e na estética das nossas ciências. Amavam o mundo e o homem e hoje, sem no entanto retornar ao seu Deus, abandonaram o homem. Não move, a poesia, a estética, ou o compêndio das superstições, uma palha que não seja por ordem do dinheiro. Obedecem os novos anjos ao tilintar do cobre e seguem o curso dos rios de notas, e o dinheiro não é servo do homem.” A Babalith, que escutava o senhor com alguma ligeireza, tomou a palavra e continuo a falar com o ar alegre e distante de quem dança no prado. “Nietzsche estava certo quando afirmou que matámos Deus, mas não lhe era ainda claro se o homem seria capaz de o substituir, se seria capaz de ser super-homem. Não foi, até agora. O dinheiro é servo do Progresso, o progresso legenda para tecnologia. O homem trabalha assim para essa luz desconhecida e intensamente material que virá (de uma intensidade material e materialista tão poderosa que se nos afigura idealista e imaterial). E no entanto, nada, em toda a história, tem escravizado o homem excepto a sua resistência ao Progresso.”
60 - Por fim, tomei a palavra. “Escuto, de vós, que a dinâmica inteira do poder está no dinheiro. Não aprendemos, em dias passados, a dominar as bestas da terra, do mar e do céu? Os demónios da virtude e os anjos do vício? Que cada um de nós, aqui, se chegue à frente e se liberte da sombra. Não estamos aqui juntos para resgatar o nosso poder? Se o poder está no dinheiro, não queimeis o papel de que é feito, com medo de alimentar o império invisível. Acordai a inteligência e empregai esse dinheiro com a responsabilidade que o poder exige, pois é o vosso poder. Apliquemos, daqui em diante, esse dinheiro entre nós.” Isto fez-me, depois, a caminho de casa, recordar da burguesia. Não estava, ainda, satisfeito, algo de essencial me parecia estar à margem do meu entendimento.
61 - Assim sendo, chegado a casa, telegrafei Babalith para vir à Internet e abri o chat. Expus-lhe a causa da minha inquietação. “Penso,” disse-me, com a leveza verde da erva “que poucas mulheres chegaram a esta intuição. Em resumo, como vês, pelo menos idealmente, o curso de vida natural de uma civilização?” Pensei, mas não muito, e avancei. “Primeiro a primazia da dimensão biológica, a lei da sobrevivência e o salve-se quem puder. De seguida e a partir daqui, desenvolve-se o conceito intelectual da competitividade, com isto os jogos, o sistema, e as diferenças sociais. Os ricos e os pobres e o que quer que haja no meio – aqui tudo é verdade, pois sem o igualitarismo a competição não reina. Finalmente, o cidadão começa a desenvolver aspectos femininos, de contenção, e aplica-se a dominar, num papel continente, os impulsos primitivos. Só é aqui permitido o que passar pela sabedoria da mulher. Finalmente e subsequentemente… a idade do entendimento e da aprendizagem, em termos de tudo o que pode ser compreendido e expressado. Tudo o que é completamente compreendido é completamente permitido.” Escreveu-me de volta. “Assim é. Agora olha, dentro da nossa civilização, para o indivíduo em si próprio e a forma como é processada a sua integração. Primeiro, ainda antes que possa, fisicamente, compreender, é ensinado (simulando compreender por mérito da memória), de resto sendo a sua educação não de natureza continente mas com os traços da formatação correspondentes já aos moldes do sistema que ainda não foi, nem chegará a ser, compreendido. Finalmente, é lançado no mundo da competição até que só responda ao salve-se quem puder. Consequentemente, como civilização, procuramos dirigir-nos para Este ensinando cada civil a dirigir-se para Oeste.”
André Consciência
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