Para o Jesus Carlos.
As palavras sábias, como estas, fazem pensar.
Sim, os povos - e essa espiritual fisionomia que em cada tempo reconheciam os poetas e as pedras, que das pedras e dos poetas se espelhava em línguas bravas de terra e mar; esse modo de estar como se ser fosse um ir estando que às vezes se fazia Estado: nação e pátria erguidas do mesmo chão. Não é de agora a visão clara.
Havia, depois, lugares que eram de língua nenhuma, de todas as pedras: lugares que eram como uma praça ou uma encruzilhada ou um bazar, assentamento de caravanas, portos de perigo e abrigo dos marinheiros do mar: cidade dos homens, bronze tebano nos portões, Alexandria é o teu nome. Nos séculos de todos os séculos.
Havia lugares que eram Alexandria, filhos das jóias de cada país, de cada sabedoria, de cada história por contar. Fraternidade dos deuses e dos homens, terraço de amor do sábio e da sua amada, tenda sombria do usurário, estalagem dos corsários, passagem e saque dos mercenários dos reis: havia lugares em que os homens se reuniam e fundiam como se os anjos quisessem fazer o Oitavo Dia, como se lhes não bastassem as paisagens que eram iguais aos homens que as habitavam. Cidades, sim, onde os reinos se fizeram império ou pó. Mas à volta de cada Alexandria-a-de-todos havia sempre os caminhos do pastor, o poço das raparigas, a árvore quieta do viajante; havia camponeses e labregos, paisagens e canções de embalar, ritos e mitos e povos e pátrias e a fisionomia deles, a doce figura e formosura deles. Alexandria-a-de-ninguém, filha da História: tu eras a excepção divina, para que os homens soubessem que a lei justa os iguala ao império.
Vivemos tempos de mar revolto, de incerta luz.
Cantam ainda a pedra e o falcão, mas onde estão os homens da natureza dos montes? Cantam os poetas e as águas, mas onde os homens da natureza dos sangues? Cantam os mortos e a saudade, mas onde a natureza das palavras? Onde anda a natureza do mar?
Nascentes.
Calaram-se os deuses em Alexandria-a-moderna, as minhas cidades são sítios de tristeza e fim. Cidades mortas. They have brought whores for Eleusis e os homens são órfãos das pátrias velhas. Das árvores velhas. Das palavras enferrujadas e mortas, cidades mortas onde se calaram as fontes e as virgens e os pássaros e não há ode marítima que as diga, saudade de império e mistério que as diga, luz nocturna e bronze mestiço e puríssimo que as diga. Fisionomia dos povos. Mas no meu tempo os povos calam, e onde estão os filhos e as casas? Onde estão a paz e o pão?
Calaram-se em Alexandria os deuses, dos terraços desertos já se não escuta o sábio e a alegria juvenil do sábio. À sua volta morreram os pastores e as pedras. O mundo é cada vez mais uma cidade em ruínas, uma tenda ávida de usurário. As cidades são campos mortos onde vagueiam exilados e mendigos, homens cortados da sua terra, da sua fala, da sua nação.
Seja.
Fisionomia dos sem-povo, far-nos-emos um rosto novo com que os deuses nos reconheçam. Das cidades mortas faremos escadaria e ponte de império, barca.
Daqui haverá nome Portugal.
Nota: "They have brought whores for Eleusis" é um verso de Ezra Pound.
1 comentário:
Um texto belíssimo, Casimiro. Obrigado.
Trouxeram as putas e não só...
Com tempo, volto.
Abraço MIL.
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