Até 1970, mais coisa menos coisa, o mundo era parecido com o que Pessoa (e Agostinho) podiam prever. Mais uns automóveis e uns telefones, um foguetãozito inofensivo a caminho da Lua, uma série de novos premios Nobel da Literatura que passavam de moda como passam as folhas caídas. Nada de especialmente diferente.
Mais precisamente: até 1970, se visto de Portugal e dos territórios do mundo não-europeus ou norte-americanos - o que quer dizer todo o resto dos lugares da lusofonia (Brasil incluído). Porque, na verdade, na Europa e nos EUA as coisas mudaram (além dos efeitos da Guerra de 39) nos espantosos anos 62 a 68, embora quase ninguém tenha na altura dado por ela. Aliás, foi a diferença entre Portugal e a Europa, que só se fez sentir a partir dessa época, que causou o 25 de Abril - não a guerra, ou qualquer outra explicação 'política'. Não era possível ouvir Bob Dylan e ver na televisão o Doutor Salazar, ouvir os Rolling Stones e ver na televisão o Professor Marcello (primeiro do nome).
Tudo isto vem a propósito da 'destinação cultural' a que podemos ser chamados. O Brasil de Agostinho era assim uma amável e imensa Galiza dos trópicos: uns intelectuais com simpatia por Portugal, diplomatas corteses em Brasília, o 'povo' (os galegos diriam 'os labregos') celebrando o Carnaval e rezando aos Orixás na Baía. Vivia sossegado, sob o olhar paternal da América como a Galiza sob o olhar severo de Castela. E a África era a África, a dispensável África de Pessoa.
E duas vezes depois disso mudou o mundo: mudou no início dos anos 80, com a derrota psicológica da URSS, para um mundo em que os computadores pessoais (que não tinham sido previstos nem pelos escritores de ficção científica) reconfiguraram as relações de socialização e poder, em que a esquerda perdeu as suas bandeiras militares, em que o mundo se revelou limitado pela primeira vez ('global', dizemos nós): mudança simbolicamente antecipada pelo negro de que a juventude da Europa se vestiu após três décadas de intensa cor; e mudou com este terramoto que foi o 11 de Setembro e a sua réplica, a chamada 'crise financeira de 2008'.
Vivemos agora um mundo imprevisto, e imprevisível.
Factores?
- a dominaçao absoluta da lógica financeira, a que nem os poderes políticos (aliás inexistentes em Portugal a não ser na dimensão folclórica) sabem como escapar;
- o colapso do que eram as 'economias nacionais' (salvo, para já, em três ou quatro mega-Estados como a China a Índia e o Brasil), e a ideia de uma auto-suficiência básica que não derivasse de uma economia militarizada (a exemplo de Cuba, Irão, etc).
- a transformação do inglês no primeiro crioulo universal, e a consequente desaparição da aprendizagem de línguas estrangeiras propriamente ditas (em Portugal: o desaparecimento de uma classe cultivada sabendo francês e frequentemente alemão ou italiano); saber inglês significava há 30 anos compreender a Inglaterra: hoje significa saber balbuciar a pior incultura universal da net, quando muito em versao da Novilíngua economesa;
- o colapso total dos sistemas educativos (não só por 'culpa' do Ministério! A educação secundária significava, desde os tempos do séc XIX em que foi inventada, basicamente formar engenheiros de pontes e minas - basta ler Julio Verne -, futuros artilheiros da Nação em armas (releiam-se as primeiras gerações da filosofia portuguesa sobre isso);
- o colapso total do equilibrio cidade-campo (em Portugal não é preciso desenvolver este tema...), e da percepção, por parte de gerações nascidas em sub-aviários suburbanos, do que seja uma coisa simples como uma maçã numa árvore ou um ovo no cu de uma galinha;
- o colapso total de uma sociabilização que não seja a decorrente do 'trabalho' (ou da ausência dele no 'exército de reserva' dos desempregados, como lhes chamou Marx - aliás transformados num lumpen-proletariado que sempre foi um dos grandes aliados, ou suportes, do sistema); consequentemente, a impossibilidade de 'integração' dos imigrantes ('integrá-los' em quê, em Fátima, Fado e Futebol? no Rock-in-Rio? no gosto por caracóis fritos ou lá o que seja que os lisboetas comem? na veneração pelo senhor dom Afonso Henriques?)
- o curiosíssimo efeito disso que passa por 'libertação sexual' (e seus prolongamentos na 'moda', na 'música' e na 'droga'), que pela primeira vez na História tornou os escravos satisfeitos;
Dir-me-ão que isto é a visão deste cantinho da Europa a que chamamos Portugal, e que o mundo é muito grande. É sim: isto não acontece ainda na Bulgária, nem em Marrocos, nem em Moçambique nem no Laos nem na Bolivia. Acontece aqui, mas aqui é o meu país e o lugar de onde eu vejo o mundo. E os mundos não se mudam a partir do ponto de vista de Deus.
Por isso, não descrendo da Pátria (não a discutirei agora) nem do Patriotismo (idem), descreio completamente de um discurso e de uma acção que não enfrentem globalmente - isto é, politicamente - a situação de hoje. Não se trata de 'afastar palhaços', de afastar 'corruptos'; não se trata de tecer loas a Aljubarrota e de ensinar às criancinhas quão grande foi o Gama; não se trata de acender fogueiras na escuridão. Trata-se de acordar para a realidade que nos cerca e cala.
Como dizia um político pouco antes da revolução republicana de 1910, o regime colapsou no domínio dos factos, embora não tenha ainda colapsado no domínio do direito. É uma questão de tempo. E agora não se trata do 'regime': trata-se dessa coisa básica que é fundamento de Nações e de Estados, fundamento da liberdade das praças públcias e da segurança dos lares em que cada homem é rei. Trata-se daquilo que ainda nos separa e protege da guerra civil mundial.
Levar a lusofonia a sério é uma tarefa revolucionária, ou não será nada.
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Desde 2008, "a única revista portuguesa de qualidade que, sem se envergonhar nem pedir desculpa, continua a reflectir sobre o pensamento português".
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"Trata-se, actualmente, de poder começar a fabricar uma comunidade dos países de língua portuguesa"
Nenhuma direita se salvará se não for de esquerda no social e no económico; o mesmo para a esquerda, se não for de direita no histórico e no metafísico (in Caderno Três, inédito)
A direita me considera como da esquerda; esta como sendo eu inclinado à direita; o centro me tem por inexistente. Devo estar certo (in Cortina 1, inédito)
Agostinho da Silva
5 comentários:
Post do Klatuu??? O post é do Renato, pá! Queres engrossar a mole de cretinóides que acham que somos a mesma pessoa? :)
P. S. Ainda assim, menos mal... Eu aborrece-me é que achem que sou o Paulo Borges! LOL!!! A maluqueira dos outros é para mim o maior mistério...
Já corrigi (não fosse algum palerma...). Quanto a comentários, vou assimilar primeiro tudo o que está escrito.
Para começo, sublinho duas frases:
"mas aqui é o meu país e o lugar de onde eu vejo o mundo. E os mundos não se mudam a partir do ponto de vista de Deus."
"Levar a lusofonia a sério é uma tarefa revolucionária, ou não será nada"
Ahahahahahah. Desculpem ambos! Fiquei com o kuduro cigano na cabeça :)
Obrigado, Renato...
Abraços!
Tu não andas bem, pá, deve ser do Natal... LOL
Natal?! Estamos no Natal?!
Céus.
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