UMA CARTA DO PORTO
Recebi ontem uma carta do Porto. Reconheci a letra, um bastardinho bem desenhado, mesmo antes de ler o nome de quem a enviara.
Era do Camilo. Rezava assim:
Meu caro António:
Já não conversamos há bastante tempo. Julgo que não voltámos a contactar desde a última entrevista que fez para a minha biografia. A propósito: acho que foi muito avaro nos encómios. Sei que cultiva um estilo contido, mas, de vez em quando, deveria soltar-se mais. Enfim…
Há um par de dias, tentei telefonar-lhe, mas a rede, aqui, é fraca.
Estará a adivinhar a razão pela qual lhe escrevo. Vão transferir os restos mortais de Eça para o Panteão Nacional.
Nada tenho contra o Eça de Queirós. Escreve muito bem, apesar de cultivar um estilo que me parece afrancesado. “O crime do Padre Amaro” trouxe-me logo à memória “O crime do abade Mouret”, de Zola. De incestos como o de “Os Maias” estão o mundo e o inferno cheios. Os estilos naturalista e realista fizeram-se moda na literatura e o Eça prosperou. Acho bem… Para mais, o pai dele, o juiz Queirós, escusou-se a julgar-me no caso do adultério, por ser meu amigo. Bem, são coisas que já lá vão.
O António conhece-me e sabe que sempre me dei bem com a escrita. Houve mesmo quem me considerasse, em tempos, “o maior romancista da Península Ibérica”. E olhe que o cavalheiro que escreveu esta frase não era português… Não será pecado de vaidade julgar-me com direito a um reconhecimento nacional.
Sei que o António, aqui há uns anos, propôs no seu blogue a transferência do que resta de mim para os Jerónimos. Achei bem, mas a ideia foi recebida com desagrado por alguns intelectuais do Porto. Que era preciso combater o centralismo de Lisboa e que eu era um homem do Norte e que devia ficar cá! Cebolório…
Um amigo meu que andou pelo mundo e que repousa aqui perto garante que aquilo é o complexo da segunda cidade. Enfermam dele Edimburgo e Barcelona.
Os do Porto consideram-me de cá. Sinto-me honrado com isso. É verdade que não amei outra cidade tanto como esta (nem falei tão mal de qualquer outra), mas o certo é que nasci em Lisboa, na Rua das Rosas e que, mais que do Porto, de Lisboa, da Samardã ou de Seide , me considero português.
Escrevo-lhe do cemitério da Ordem da Lapa, no Porto. Apesar de ocupar uma divisão alta, tenho vista apenas para um passeio empedrado, para mais sepulcros e para uma ou outra árvore. O jazigo do Freitas Fortuna parece-me acanhado e o meu nome está inscrito na fachada em posição secundária.
Com este meu pecadilho da vaidade, sempre procurei o reconhecimento dos meus contemporâneos. Lutei muito até conseguir um título nobiliárquico, que me pareceu importante na altura. Lá me fizeram Visconde de Correia Botelho. Confesso que a distinção me soube bem.
Pretendo mudar-me para os Jerónimos. Até já lá está o Herculano, cuja escrita nunca me agradou. As circunstâncias da vida levaram-me a pedir-lhe que apadrinhasse a minha intenção de concorrer a um lugar na biblioteca do Porto. Cheguei a oferecer-lhe um cão são-bernardo, o Tigre. O empenho de Alexandre Herculano não foi suficiente para decidir a questão em meu favor. Semanas depois, desloquei-me a Lisboa e passei pela casa do Herculano, na Ajuda. Em vez de tocar à porta, assobiei. O Tigre saltou o muro e lambeu-me todo. Levei-o comigo.
Peço perdão por me ter alargado. Já deixei escapar parte da mensagem que lhe dirijo: quero mudar-me para o Panteão Nacional. Terá, entre os seus amigos e conhecidos, quem seja capaz de advogar a minha causa?
Saberá, melhor do que eu, como é que essas coisas se fazem: um par de artigos em jornais, um abaixo-assinado… Dizem que as televisões têm muita influência, nos dias que correm mas, como já lhe disse, aqui não tenho rede .
Seu amigo agradecido
Camilo
Vou reencaminhar esta carta para um grupo de amigos e conhecidos. Nem todos concordarão comigo, mas considero que esta é uma causa pela qual vale a pena lutar.
António Trabulo
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