No espólio do Arquitecto Fernando Távora que se encontra na Fundação Instituto Marques da Silva, há uma pasta (27.7), intitulada “Textos sobre Fernando Pessoa”, onde encontrámos um extenso conjunto de folhas – mais de cento e quarenta páginas no total – de uma obra que Raul Leal nunca chegou a concretizar em vida, ainda que a tenha chegado a anunciar. Falamos da obra Fernando Pessoa, precursor do Quinto Império, composta por três capítulos: “Na Glória de Deus”; “Fernando pessoa, Um dos Oito Maiores de Portugal”; “A dupla personalidade do Artista-Pensador”. Saliente-se que estes três capítulos aparecem numerados numa sequência contínua (pp. 1-72), sendo que o primeiro capítulo é antecedido por um intróito, neste caso ordenado por ordem alfabética (pp. a-o) – e que, nas duas séries, as folhas têm, na maior parte dos casos, frente e verso.
Esta pasta contém também o “Índice dos capítulos da obra, em preparação, O Quinto Império e a Última Reencarnação de Henoch” – que, de forma expressa, refere os títulos destes três referidos capítulos: “Na Glória de Deus”; “Fernando pessoa, Um dos Oito Maiores de Portugal”; “A dupla personalidade do Artista-Pensador”. Anote-se que, neste Índice, os dois últimos capítulos aparecem riscados. Concluímos assim que, num determinado momento, Raul Leal terá equacionado integrar esses três capítulos numa obra maior – mas que manteve a hipótese de coligi-los à parte, sob o título Fernando Pessoa, precursor do Quinto Império. Foi de resto isso que anunciou nas páginas da Revista Presença, onde publicou um texto (pp. 1-13), com a seguinte indicação: “Publica-se o primeiro capítulo do livro em preparação Fernando Pessoa, precursor do Quinto Império”. No referido índice, a respeito do capítulo “Na Glória de Deus”, pode ler-se igualmente (em anotação posterior): “diz respeito a Fernando Pessoa, Precursor do Quinto Império”.
Tendo sido tomada a decisão de promover a publicação destes manuscritos, múltiplas questões se levantaram, sobretudo em relação à forma como esse trabalho deveria ser feito e apresentado, o que se procura justificar no prefácio e no estudo introdutório. A primeira tarefa consistiu em transcrever os manuscritos, o que desde logo levantou a questão da grafia cultivada e recriada por Raul Leal, grafia excêntrica que procurámos conservar, mesmo nos casos em que ela possa dificultar a leitura, como sucede por exemplo com o rascunho de carta a Pessoa de 1916, em que Leal adopta uma pessoalíssima escrita fonética que, porventura à maneira francesa, acentua quase todas as vogais tónicas das palavras, enquanto mais tarde opta por uma quase total ausência de acentuação. Procurámos também dar conta das relevantes rasuras do original que revelam o trabalho de releitura e revisão do autor e as diferentes opções que ao longo do tempo foi adoptando.
Parece-nos especialmente relevante a duradoura conservação do “y”, em palavras como abysmo, mysterio ou labyrinto, salientando-se, a este respeito, que Raul Leal não segue os mesmos critérios ao longo de todo o documento, o que denota que este foi sendo redigido em diferentes épocas, como o próprio, de resto, confirma – e o que nos levou a conservar essas suas opções, que exprimem posições de fundo sobre a ortografia. Outra dificuldade relativa à transcrição decorreu da legibilidade dos manuscritos – nalguns casos, quase impossível. Com efeito, se as páginas que não sofreram emendas de maior são, quase sempre, imediatamente legíveis, muitas delas, como reconhece o próprio Raul Leal (p. h), sofreram “inúmeras emendas e entrelinhas quási ilegíveis”. Ainda assim, no cômputo geral, a transcrição feita cobre a quase totalidade do texto – nos casos em que não foi de todo possível transcrever alguma passagem, ela é indicada por “[…]”; nos casos de dúvida, por “[?]”. Optámos por indicar com o sinal / os casos em que duvidamos do lugar onde inserir uma interpolação (como, por exemplo, na página i verso).
O balanço que fazemos de todo esse trabalho é pois amplamente positivo – e por isso aqui o partilhamos, publicando a transcrição dos textos conjuntamente com a reprodução digital dos mesmos e de uma extensa anotação exegética e hermenêutica. À medida que fomos avançando neste trabalho, foi-se tornando cada vez mais óbvia esta opção. Para que os leitores deste volume possam acompanhar o mais fielmente possível a transcrição realizada, respeitámos inclusivamente as translineações dos manuscritos, sendo que, em certos casos, as dúvidas só poderão ser esclarecidas no confronto com os originais, depositados na Fundação Instituto Marques da Silva, a quem agradecemos todo o apoio para a concretização deste trabalho, primeiro passo visível do muito que há ainda a fazer: dar a conhecer a transcrição dos manuscritos de Raul Leal com vista à sua interpretação e integração na história do pensamento português, contribuindo assim para uma leitura mais complexa deste que é um dos mais originais pensadores portugueses do século XX, como aqui assaz se comprova, não só pela sua leitura original sobre Fernando Pessoa, como, a partir dela, pela proposta filosófica própria.
*
Para além do inédito Fernando Pessoa, precursor do Quinto Império, este volume inclui ainda dois rascunhos de cartas a Pessoa, que se desconhece se terão chegado a ser enviadas, e alguns outros textos de Raul Leal sobre o autor de Mensagem que foram saindo na Imprensa.
Sem comentários:
Enviar um comentário