Como todas as figuras mitológicas, Prometeu é uma
figura ambivalente, no sentido em que ambivalentemente pode ser perspectivada. A priori, há pelo menos duas
perspectivas possíveis: uma mais positiva, outra mais negativa. Segundo a
perspectiva mais positiva, que é, de resto, a mais corrente, a mais comummente
divulgada, Prometeu é uma figura heróica que afrontou o divino para ajudar os
homens. E que pagou por isso. Tragicamente.
Recordemos a versão do mito
mais celebrizada: “Foi por amor aos homens que Prometeu enganou Zeus. Primeiro
em Mecone, durante um sacrifício solene, dividiu em duas partes um boi: pôs
para um lado a carne e as entranhas do animal, cobrindo-as com a pele; aos ossos,
despojados da carne, cobriu-os com gordura, tingindo-os assim de branco. Disse
depois a Zeus que escolhesse a sua parte, deixando o resto aos homens. O deus
optou pelo esqueleto coberto de banha e, quando descobriu que nesse quinhão só
havia ossos, ficou revoltado contra Prometeu e contra os mortais, que a sua
astúcia tinha favorecido. Para os punir, decidiu deixar de lhes enviar o
fogo.”.
“Então – continuemos a narração do mito –, Prometeu
auxiliou-os uma vez mais: roubou algumas sementes de fogo «à roda do sol» e
levou-as para a Terra, escondidas num caule de férula. Outra tradição conta que
ele tirou o fogo da forja de Hefesto. Zeus puniu os mortais e o seu benfeitor.
Aos primeiros, enviou-lhes uma criatura por ele expressamente forjada para o
efeito: Pandora. Quanto a Prometeu, prendeu-o com grilhões de aço no cimo do
Cáucaso e determinou que uma águia, filha de Equidna e de Tífon, lhe fosse
comendo o fígado, que se ia renovando incessantemente.”. A narração do mito prossegue
ainda com as peripécias relativas à libertação de Prometeu do seu martírio –
“Contudo, Héracles passou pela região do Cáucaso e trespassou com uma flecha a
águia de Prometeu, terminando assim o seu cativeiro. Zeus, orgulhoso do feito
do filho que ampliaria mais a sua glória, não protestou, mas para que o seu
juramento não fosse em vão, obrigou Prometeu a usar um anel feito do aço dos
seus grilhões…” –, mas isso, por ora, não nos interessa. Fixemo-nos, pois, no
essencial: Prometeu afrontou o divino “por amor aos homens”, sofrendo a dura
pena acima descrita. Por isso, tornou-se uma figura amada pelos homens. O que
parece lógico: se Prometeu afrontou o divino “por amor aos homens”, parece
lógico que os homens o amem por isso.
Será mesmo? Eis a dúvida que
queremos aqui suscitar. Para tal, nem sequer iremos argumentar com o facto de,
segundo a enunciada narração do mito, tudo ter começado com um primeiro engodo
de Prometeu, que originou a ira de Zeus e a sua consequente vingança.
A nossa crítica é, procura ser, mais funda. Centra-se na própria lógica de
relação entre o humano e o divino que aqui está em causa e que subjaz à
enunciada narração do mito: a saber, uma lógica de rivalidade e, por isso, de
confronto. Nessa medida, pouco importa saber quem começou esse confronto. Se a
lógica da relação é de confronto, isso pouco ou nada importa. Se o humano e o
divino se vêem como rivais, o confronto é inevitável. Desde sempre. Aqui chegados, anteciparão
decerto aqueles que nos ouvem que a perspectiva de Basílio Teles sobre Prometeu
– por ele exposta no estudo que acompanha a sua tradução do “Prometeu
agrilhoado” de Ésquilo
– não é aquela em que mais nos revemos, por, precisamente, se fundar numa
lógica de relação entre o humano e o divino pautada pela rivalidade e, por
isso, pelo confronto. Nada de mais certo, nada de mais errado. Antes, contudo,
de dizermos em que medida isso assim é, iremos expor, sucintamente, a
perspectiva de Basílio Teles. No ensaio filosófico que
acompanha a sua tradução do “Prometeu agrilhoado” de Ésquilo, intitulado “A
Tragédia”, expõe Basílio Teles a sua perspectiva sobre Prometeu. Justifica, o
autor, a acção de Prometeu pela sua “ingénita repulsa por toda a espécie de
tirania”,
que o levou a rebelar-se contra Zeus. Em nome da humanidade, como salienta – e
por isso o define como “desinteressado amigo e educador da espécie humana”,
como “símbolo das forças progressivas que há nela, isto é, das grandes
individualidades criadoras que promoveram, e neste momento promovem, essa
marcha ascensional para a estabilidade e o embelezamento da existência
colectiva, e que pagam com sofrimento, reveses, amarguras, essa iniciativa
audaciosa”. Eis, com efeito, na perspectiva
de Basílio de Teles, do que se trata: da “afirmação insistente, impetuosa, da
liberdade de pensar e de proceder em face da ordem que o advento de Zeus
inaugurava, a do medo e do servilismo cobarde dos Olímpicos que lhe aceitaram e
defendiam o império”.
Nessa medida, plenamente justificada fica, pois, a acção de Prometeu: se Zeus
simbolizava o “império”, a “tirania” sobre os homens, havia que lutar contra
ele. Na sua revolta contra Zeus, Prometeu simboliza a revolta do humano contra
o divino, aqui tido como opressor. Só assim, nessa luta, nessa revolta, poderia
a humanidade libertar-se… Ainda na perspectiva de Basílio
Teles, nessa luta se confrontam duas “concepções divergentes”, “que
filosoficamente se designam pelas expressões transcendentalismo e imanentismo,
vulgarmente pelas de Religião e Ciência”.
“A primeira – defende Basílio Teles –, pela contradição irremovível entre deus
e o mal (lucidamente reconhecida pela religião dos Medo-Persas), entre deus e a
moral por conseguinte, e por ser quase exclusivamente moralista, não comporta
uma interpretação unitária e racional do Universo, sem soluções que não sejam sempre
dogmáticas: exigindo, pois, a cega submissão do crente a uma Lei indemonstrável
e a uma entidade incompreensível.”.
Eis, pois, em suma, na perspectiva de Basílio Teles, tudo o que Zeus simboliza:
uma ordem transcendente, que exige a plena submissão dos homens pela crença. A segunda concepção,
simbolizada por Prometeu, caracteriza-se antiteticamente àquela – ainda nas
palavras de Basílio Teles: “A segunda implica sempre conhecimento e soluções
racionais, a conformidade livre e consciente do homem, portanto, com uma
Natureza inteligível e com leis verificáveis, por ser criação pura do espírito,
em que nenhum mistério, contradição ou incoerência grave se toleram.”.
Eis, então, porque Prometeu simboliza, na perspectiva de Basílio Teles, o
espírito científico ou imanentista, em antítese ao espírito religioso ou
transcendentalista, simbolizado por Zeus. Ele nega a submissão cega, a mera
crença, ele exige a plena inteligibilidade do mundo, a plena revelação do ser.
Ele nega o lugar do enigma, do próprio mistério, ele exige a inteira luz, o
“fogo divino”, símbolo da própria verdade. Num texto inédito só publicado
postumamente, já neste século, escreveu José Marinho as seguintes palavras:
“…lendo Basílio Teles, verifico que esse sagaz pensador político, republicano
aparentemente paradoxal mas no fundo lúcido e coerente pensador político
português, na sua Questão religiosa
critica negativamente toda a tendência religiosa e metafísica
transcendentalista, semita e judaica pensa ele, e adopta e propaga a tendência
imanentista./ Ora se Basílio não fosse demasiado modernista e juvenilista (se o
não fosse no seu tempo) teria reparado em que a distinção entre imanência e
transcendência não pode pôr-se nos termos em que ele a estava pondo (…). E por
isto já Platão no seu Sofista marcara
a analogia da situação do filósofo com a da criança. Porque a criança, posta na
urgência de escolher entre o bolo e a laranja, estende as mãozitas para ambos.
Assim também, explica Platão, entre ser e não-ser, uno e múltiplo, eternidade e
tempo, não cabe escolher (…).”. Da mesma forma que,
ironicamente, José Marinho acusou algures Sampaio Bruno de o ter pré-plagiado,
também nós aqui, com a mesma ironia, acusamos José Marinho de nos ter
pré-plagiado relativamente a Basílio Teles. E isto porque, com efeito, o que
José Marinho nos diz na passagem citada é exactamente o que pensamos: Basílio
Teles vai demasiado longe na sua crítica do divino. Se ela se justifica em
relação a Zeus, bem como a qualquer seu sucedâneo Deus-Pai, ela perde validade relativamente
a muitas outras figurações do divino, que, ao contrário do que pretende Basílio
Teles, não é necessariamente uma instância opressora do humano. Daí também o
limite da sua figuração prometeica do humano: ela só é justificável face a um
divino opressor. Face a uma figuração não opressora do divino, a figuração
prometeica do humano torna-se absurda. Pois que sentido faz lutar contra algo
que não só não nos oprime como, na medida em que em nós o assumimos, nos
liberta?
Essa é, aliás, a figuração do divino
que José Marinho nos propõe – e daí o cabimento da sua crítica a Basílio Teles,
bem expressa nestas palavras: “É assim que, para muitos homens, o amor é
atributo divino, assim, para muitos, Deus dita normas e julga do bem e do mal.
E toda a existência humana perde o sentido se Deus não ama o homem, se não é um
Pai para ele, se não é um juiz e um Senhor. Para nós, é justamente o contrário
e ousamos dizer que se a maior parte dos homens (dos homens ocidentais: a
maioria do euro-americanos) está convencida de que só um Deus criador, um Deus
amor, um Deus providência, um Deus pai, um Deus juiz misericordioso, um Deus
senhor é o remate compreensível de todo o mal e de todo o possível, de toda a
existência terrestre e transcendental do homem – nós, com não menor firmeza,
dizemos que Deus não pode ser tal como o nosso coração o deseja, mas como a
nossa inteligência o vê. Deus sabe que afirmamos isto para poucos ouvidos e
talvez para nenhum. Nem na Idade Média, nem na Época de Cristo assim primitivos
estavam os homens, como hoje, tão pouco preparados para admitir uma concepção
ética-metafísica de Deus.”.
“E a tal ponto isto é assim –
continua Marinho – que quase invariavelmente, quando falamos com um ateu e um
agnóstico expondo alguma coisa das nossas ideias neste ponto, eles respondem:
«Um Deus como esse não serve para nada. Ou um Deus que intervém na vida e na
existência do homem e atende à dor e à desgraça do homem ou nenhum.». Assim
falam os homens que dizem amar a liberdade!”.
Eis, a nosso ver, a crítica que por inteiro atinge a figuração do divino de
Basílio Teles. Com efeito, ao figurá-lo, Basílio Teles desde logo o amaldiçoa
por, nas suas palavras, “consentir que as maiores infâmias se pratiquem”,
“sendo-lhe por igual indiferente a ira feroz do verdugo e o caloroso gemido da
vítima”.
Por isso, aliás, o caracterizou Marinho como “o grande irmão-inimigo de Sampaio
Bruno”
– dado que, partindo ambos da mesma denúncia da “realidade do mal”, chegam a
conclusões opostas: enquanto que Bruno procura conciliar essa denúncia com a
afirmação da “existência de Deus”,
já Teles põe em causa não só a “omnipotência de Deus” como, em última
instância, a própria “existência divina”. Há, contudo, uma
virtualidade nessa crítica do divino de Basílio Teles, mesmo na perspectiva de
José Marinho. Se, ainda nas palavras do autor de Verdade, Condição e Destino no pensamento português contemporâneo,
“o movimento da filosofia é desabsolutizar o que não é autenticamente absoluto”,
na “negação de Deus e de todo o divino enquanto é para nós”,
e assim reconhecer “o autêntico”,
e assim antecipar “o único verdadeiro”,
então a crítica de Basílio Teles concorre para este intento. Na sua
desconstrução do que perspectivava como o divino, ele, de facto, “desabsolutiza
o que não é autenticamente absoluto”. Indo demasiado longe na sua crítica do
divino, ele não vai contudo suficientemente longe, pelo menos tão longe quanto
Marinho e nós próprios gostaríamos. E por isso não reconhece “o autêntico”, e
por isso não antecipa “o único verdadeiro”. Chegou, contudo, a meio do caminho.
O que não é pouco. Sem o saber, Basílio Teles cumpriu parte dos próprios
“desígnios de Deus” – ainda nas palavras de Marinho: “Tudo se passa como se
Deus preferisse ser negado a ser minorado em qualquer forma de antropomorfismo.”;
“Deus, desde sempre, não confia na fé e no saber dos homens. Ser negado estava
também nos seus desígnios.”. Mas, porque a negação
não é nunca o verdadeiro fim último, importa ir mais além… No entanto, dado
que, de facto, todo o pensar é situado, não só no espaço como também, senão
sobretudo, no tempo, na história, talvez não fosse possível a Basílio Teles ter
ido mais além, ao que está para lá da negação. O universo cultural em que viveu
era demasiado impositivo relativamente à figuração dita “cristã” do divino. Foi
contra essa figuração do divino no seu tempo que Basílio Teles lutou. De forma
prometeica, assim pensando libertar os homens. Não foi essa apenas uma luta
teológica, ou anti-teológica. Foi também, senão sobretudo, política, sócio-política.
Na verdade, Basílio Teles lutou sobretudo contra a Igreja, por ele vista, não
sem razão, como o grande sustentáculo da ordem social e política então vigente.
O ardor prometeico com que se empenhou nessa luta fê-lo reduzir a figuração
cristã do divino ao que era defendido pela Igreja de então, mais ainda, fê-lo
reduzir o divino a uma única figuração. Daí o seu ateísmo, ou, como o
classificou Pinharanda Gomes, o seu anti-teísmo.
Ao contrário do que então não terá parecido possível a Basílio Teles, há,
contudo, muito mais vida, muito mais divindade, para além dessa figuração do
divino contra a qual ele, não sem razão, lutou. Passados 100 anos sobre o seu falecimento,
eis o que mais importa, a nosso ver, afirmar.
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