Ainda que nem sempre explicitamente, o pensamento de José Marinho
teceu-se no seu constante diálogo com alguns filósofos – em particular, Sampaio
Bruno e Leonardo Coimbra. De tal modo que o seu pensamento mais estritamente
teorético pode ser mesmo interpretado como uma tentativa de sintetizar essas
duas cosmovisões, tão, a priori,
antitéticas entre si: a brunina afirmando o primado ontológico da homogeneidade
originária do ser sobre a heterogeneidade actual do existente, a leonardina
afirmando o inverso, fazendo, nessa medida, a apologia deste “mundo de
distâncias e separações”.
Ainda que por vezes de forma tácita, o pensamento de José Marinho
teceu-se igualmente no seu constante diálogo com alguns poetas: eis o que aqui
veremos a respeito de Guerra Junqueiro.
Apesar de, como confessou numa carta a José Régio, datada de 26 de
Agosto de 1950, ter chegado a padecer de uma “junqueirianite aguda”, nunca, na
nossa perspectiva, Marinho se projectou nele a ponto de com ele se identificar
– tal como aconteceu, na nossa leitura, com Antero de Quental. Deveu-se isso,
porventura, ao facto de, em múltiplas passagens da sua obra, inclusive nos
textos que expressamente lhe dedicou, Guerra Junqueiro aparecer enquanto par
menor – nomeadamente, em relação a Sampaio Bruno e a Teixeira de Pascoaes.
Assim, Junqueiro ora é visto como “precursor” de Pascoaes, ora enquanto
“acompanhante” de Bruno, enquanto seu “amigo e irmão espiritual”.
Em diversas passagens da sua obra, eis, com efeito, como Marinho
perspectiva a obra de Junqueiro: “A meditação de Junqueiro acompanha de perto a
meditação de Bruno, o movimento de alma aparece similar nos dois íntimos amigos
e irmãos espirituais, aqueles homens, sem dúvida, que contra todo o esperado e
sabido, mais longe se adiantaram, desde o nosso abortado renascimento e antes
da nova Renascença Portuguesa, pelos
caminhos da meditação do homem e do seu universal destino.”; “…o filósofo de A Ideia de Deus e o poeta das Orações são aqueles propositores do
difícil enigma e da imperiosa verdade cuja caminhada os homens da Renascença Portuguesa logo prosseguiram”;
“…na vida espiritual portuguesa, tal qual foi, tal qual é, ele [Junqueiro]
representa, com Sampaio Bruno, algo de grave entre o mais grave: a assumpção da
negatividade”.
Segundo Marinho, eis a “tarefa” que ambos herdaram de Antero – “…o
Absoluto ficaria neste nosso pensador crucial numa forma clássica, pretérita,
como Unidade do ser enquanto ser. Para os poetas e pensadores sequentes,
nomeadamente Guerra Junqueiro e ainda também Sampaio Bruno, transitaria a
grave, a imensa dificuldade, se é bem certo que tudo quanto se concebe como
unidade (toda a unidade resulta afinal aleatória) se devolve necessariamente
não só à diversidade do idêntico, mas à multiplicidade ou à relação do
uno-múltiplo insolúvel”–, a tarefa que (só) Bruno cumpriu: “Sampaio Bruno é o
nosso primeiro filósofo da negação e da negatividade (…). A sátira do seu
grande amigo e convivente Guerra Junqueiro, se comparada à negação de Bruno e à
visão que a consente, afigura-se-nos hoje, embora fundamente significativa,
muito mais aleatória e episódica na forma que assumiu”.
Tal como, na visão de Marinho, Junqueiro aparece menorizado
relativamente a Bruno, o mesmo acontece relativamente a Pascoaes. Aliás, o
autor da Teoria do Ser e da Verdade
chegou a escrever que “o que principalmente me interessa na poesia de Junqueiro
é o caminho que nela se abre, ou tão somente se entremostra, para alguma coisa
que por todos os lados a excede: a poesia de Teixeira de Pascoaes” – ainda que,
logo de seguida, tenha ressalvado que “a poesia de Junqueiro não vale apenas
como vestíbulo da poesia de Pascoaes, ainda que tal coisa não devesse ser
desonrosa para poeta algum, pois quem se encontre nos caminhos que levam à
verdadeira grandeza, em poesia como em filosofia, participa nela”. Eis, de
resto, a tese que Marinho reiterou em diversas da sua obra, nomeadamente ao
defender, de forma expressa, que “a mais profunda herança de Junqueiro vai passar
para Teixeira de Pascoaes”, a tese que o próprio Pascoaes validou, pelo menos
indirectamente, ao ter assumido, na sua juventude, ter querido ser “um outro
Guerra Junqueiro”.
Apesar desta visão mais desapaixonada, nunca deixou, porém,
Marinho, de considerar Junqueiro como um dos “homens verdadeiramente grandes do
nosso país”. Por mais que lhe tivesse faltado a “unidade interna da obra”, por
mais que “o poeta tenha ficado muito atrás do filósofo”, foi Junqueiro, ainda
nas palavras de Marinho, “um daqueles poetas cada vez mais raros que ligam o
céu à terra e nos forçam a olhar outra face matinal dos seres e das coisas”.
Teve, nessa medida, o que tanto faltou a Antero de Quental como a Fernando
Pessoa – ainda nas palavras de Marinho, “a Antero faltou o sentido do liame
sublime”, “a Pessoa faltou, como falta a clássicos formais, ou modernistas
informes, o sentido do que liga e separa”. E por isso, com efeito, se insurgiu
enfim Marinho com o facto de “Junqueiro e Pascoaes serem injustamente olvidados
ou ignaramente aludidos”.
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