Havia algo que irritava, por
vezes profundamente, no “fenómeno” Eduardo Lourenço, sendo que isso (que
irritava) não era, de todo, responsabilidade sua. Referimo-nos à “mitificação”
da sua obra e pessoa – o que contrastava com a sua genuína humildade, que
tivemos o privilégio de testemunhar bastas vezes. Apenas um exemplo: há alguns
anos, uma revista (“Ler”, 2008) referia-se a Eduardo Lourenço como “o homem que
ensina Portugal a pensar” – esse era mesmo o destaque de capa, em “caixa alta”.
Para quem conheça minimamente
o pensamento filosófico português, afirmações como essa só poderiam provocar,
no mínimo, um sorriso de condescendência (ou, de forma menos condescendente, um
justo esgar de indignação). Acreditamos que Eduardo Lourenço sorriu sempre como
esse tipo de referências. Eduardo Lourenço – pessoa particularmente culta –
sabia bem que Portugal já bem sabia pensar antes dele…
É verdade que, ao longo da sua
obra, fez algumas referências menos abonatórias à filosofia portuguesa. No
entanto, no seu livro mais célebre, O
Labirinto da Saudade, não deixou de considerar “o famigerado movimento da
célebre ‘filosofia portuguesa’ (…) uma reacção, em boa parte justificada,
contra o pendor mimetista e o consequente descaso que ele implica de inatenção
a nós próprios (…), contra uma imagem
da cultura portuguesa, de perfil essencialmente negativa, herdado da Geração de 70, e nunca criticado à esquerda como o deveria ter sido”[1].
Palavras, a nosso ver, muito lúcidas e justas.
É igualmente verdade que,
ainda nesse seu livro, Eduardo Lourenço denunciou, aqui a nosso ver de forma
mais excessiva, o “irrealismo prodigioso da imagem que os portugueses fazem de
si mesmos”[2],
“irrealismo” esse que, alegadamente, se consubstancia nos diversos “mitos
compensadores da nossa frustração de antigo povo glorioso, como o de um Quinto
Império, que terá
Ainda assim, não deixou o
autor d’ O Labirinto da Saudade de
antever nesse nosso alegado “défice” um alcance outro, capaz inclusivamente de
fazer com que Portugal se reconcilie, enfim, consigo próprio - nas suas
palavras: “À dissolução teórica do Sentido, como ingénuos e impávidos
camponeses do Danúbio podemos opor – se não uma certeza à antiga, inalcançável
e vã nos tempos que nos cabem – a exigência de um Sentido e, em particular de
um sentido ético que nem sucesso económico, nem performance científica, nem sofisticação pensante podem substituir.
Não é em vão que a Península é a pátria de Séneca. A Europa não inventou um
tipo de humanidade mais exemplar que D. Quixote, loucura cristã para tempos
regidos pela regra de ouro da objectividade e da legalidade.”.
Acrescentando, num registo
quase épico, senão mesmo (passe a ironia…) messiânico: “É quixotescamente que
devemos viver a Europa e desejar que a Europa viva. Com a mesma ironia calma
com que Caeiro se vangloriava de oferecer o Universo ao Universo, nós,
primeiros exilados da Europa e seus medianeiros da universalidade com a sua
marca indelével, bem podemos trazer a nossa Europa à Europa. E dessa maneira reconciliarmo-nos,
enfim, connosco próprios.”[5].
Na hora da sua partida, reconciliemo-nos, também nós, com o nosso maior “mito
cultural” das últimas décadas. Até sempre, Eduardo. Ainda que nem sempre de
acordo, continuaremos a lê-lo.
Renato Epifânio
Presidente
do MIL: Movimento Internacional Lusófono
[1] Cf. O Labirinto da Saudade: psicanálise mítica
do pensamento português, Lisboa, D. Quixote, 1982 (2ª), p. 73.
[2] Cf. ibidem, p. 19.
[3] Cf. Nós e a Europa: as duas razões, Lisboa,
IN-CM, 1994 (4ª rev.), p. 20.
[4] Cf. AA.VV.,
Existe uma cultura portuguesa?,
Porto, Afrontamento, 1993, p. 38.
[5] Cf. Nós e a Europa: e as duas razões, ed. cit., p. 37.
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