Se há algo que caracteriza o pensamento estético das figuras maiores da filosofia portuguesa é o fundamentarem ontologicamente esse pensamento estético. Não há estética sem ontologia. Do mesmo modo que, por exemplo, também não há ética. Pelo menos, uma ética fundamental e fundamentada. Vimos isso já em José Marinho[1]. Veremos isso agora em Orlando Vitorino – um dos seus mais insignes discípulos. Para tal, partiremos de um sua obra publicada já postumamente – As Teses da Filosofia Portuguesa (2015) –, onde Orlando Vitorino prova ter compreendido bem a lição marinhiana, lapidarmente expressa na sua Teoria do Ser e da Verdade (1961).
Começando por defender[2] que “é na noção de ser que tem início a filosofia” (p. 45), Orlando Vitorino salvaguarda que “logo na origem se identificou o ser com o saber” (p. 46). Desse trânsito e recurso entre ser e saber resulta a cisão, pois, como adverte, “não há movimento sem haver cisão, como demonstrará Aristóteles” (p. 50). Recorrendo a Leonardo, defenderá depois que “é o excesso do pensamento sobre a realidade que explica e firma o incessante movimento de um e outra através da síntese, do sistema e da dialéctica” (p. 65), acrescentando: “Por sua vez, a dialéctica é o pensamento em movimento. Dizer que o pensamento é dialéctico é dizer que o pensamento não se imobiliza ou, na expressão de Leonardo, não se cousifica (pp. 65-66). Daí, também, as várias “modalidades do pensamento”: “Se o princípio é o bem, a modalidade do pensamento é a ética. Se a verdade, é a metafísica. Se a justiça ou a liberdade, é o direito. Dir-se-á então que a ética é a realização do bem, a metafísica a realização da verdade, a arte a realização da beleza, o direito a realização da justiça ou da liberdade. Se, enfim, o princípio é o espírito, a sua realização é o mesmo pensamento ou a filosofia especulativa. Leonardo pôde dizer que ‘só no pensamento o espírito é real” como José Marinho disse que ‘no espírito tem o pensamento seu princípio’” (p. 76).
Daí, igualmente, a centralidade da condição humana: “Sabemos que só no homem o pensamento é real e o sabemos de um saber imediato porque só o homem, o único que pensa, tem o saber de si. Também só pelo pensamento, o único para o qual não há limite, o homem é livre” (p. 97). Como concretiza depois: “A filosofia tem sua morada no pensamento do homem./ Dizemos ‘o pensamento do homem’ não no sentido de actividade com seu princípio e seu fim no homem, mas no sentido de momento da actividade do espírito em seu movimento universal de restituição da verdade cindida à verdade inteira e una (…)./ No pensamento do homem obtém o movimento universal do espírito conteúdo e realidade” (p. 125). Sendo que, tal como acontece em José Marinho, também em Orlando Vitorino a dimensão mais “universal” não contradiz, antes implica, a dimensão mais “situada” – daí estas suas palavras: “Os homens individuais agregam-se em povos que, em alguns casos, conseguem elevar-se à entidade espiritual de pátrias. A medida ou a grandeza desses povos não é dada pela totalidade dos indivíduos que os compõem através das gerações mas apenas pelos seus indivíduos representativos, aqueles a que Carlyle chamou ‘os heróis’. São eles que elevam a pátrias os povos…” (p. 210). Daí também, enfim, toda a questão das “filosofias situadas”: “ou um povo, no caso o português, tem uma filosofia própria ou não tem existência histórica” (p. 185).
[1] “José Marinho e a questão estética”, Seminário “A Estética no Pensamento Português”, Universidade Católica Portuguesa, 13 de Março de 2014. Como então defendemos: «Numa época em que tudo tende para a sua fragmentação extrema, inclusivamente a própria filosofia, poderá parecer despropositado iniciar uma reflexão sobre a Estética que desde logo põe em causa a sua suposta autonomia. Por muito que despropositado, mas não por isso, esse será aqui, numa primeira instância, o nosso intento. Nessa medida, não nos contentaremos sequer em estabelecer um diálogo, como hoje se diz, “inter-disciplinar”, uma vez que esse diálogo estaria ainda e sempre refém de uma prévia fragmentação do espaço da filosofia que, por muito consagrada que esteja, não é por Marinho aceite. A filosofia continua a ser para ele um espaço único, um único continente, e não, de modo algum, um arquipélago. Por muito que anacrónico, mas não por isso, esse será aqui o fundamental pressuposto desta reflexão. Que a Estética tenha por direito um lugar próprio no interior desse espaço, isso não está pois aqui em questão. O que está aqui em questão, em causa, é apenas a pretensa independência dos conceitos estéticos relativamente a outros conceitos filosóficos, a pretensa independência de conceitos como os de “belo” e de “sublime” relativamente a outros, como, por exemplo, os conceitos de “ser” e de “verdade”. Relembremo-nos, se já esquecidos estamos, da mais significativa tríade conceptual do pensamento grego: o “belo”, o “bem” e a “verdade”. Por esta desde logo se consagrava a estrita dependência do fenómeno estético: só o que realizava em si o “bem” e a “verdade” era realmente “belo”. Daí que tudo o que fosse realmente “belo” realizasse em si o “bem” e a “verdade”. Daí que tudo o que fosse realmente “bom” realizasse em si a “verdade” e o “belo”. Daí que tudo o que fosse realmente “verdadeiro” realizasse em si o “belo” e o “bem”. Progressivamente, também esta fundante tríade se foi fragmentando – desde logo, por exclusão do conceito de “bem”; depois, por exclusão do conceito de “verdade”; finalmente, por exclusão do próprio conceito de “belo”. Cada vez mais, o fenómeno estético já não precisa de realizar em si nada – nem o “bem”, o que, convenhamos, seria hoje excessivo; nem a “verdade”, que, dir-se-ia, “já nem sequer existe”; nem sequer o “belo”, entidade ainda mais fantasmática. O fenómeno estético passou, também ele, a ser um mero fruto do fausto ventre das circunstâncias. No retorno à nossa mais originária tradição filosófica, propõe-nos José Marinho um caminho outro – um caminho de requalificação do fenómeno estético. Para tanto, procura, desde logo, reabilitar o conceito de “belo”. Não já, contudo, enquanto mero conceito estético – pois que, para Marinho, “o belo” não era apenas um fenómeno estético, mas, mais profundamente, a expressão de um processo ontológico: do processo de realização do ser, mais propriamente, daquele que mais verdadeiramente é em todo o ser, em cada um de nós. Designou Marinho esse processo como o processo de realização do próprio “espírito”. Daí a sua tese, sintetizadora de todo o seu pensamento estético: “Nada iguala em beleza o fluir espontâneo e perfeito de um espírito.”. É a luz de tal assunção do fenómeno estético que José Marinho considera também o fenómeno artístico – em síntese, poderíamos enunciar a sua tese do seguinte modo: a arte, em todas as suas formas, será expressão do espírito, do seu processo de realização, ou não será. Daí que, no seu entender, o fenómeno artístico, mais propriamente considerado, se consubstanciasse muito mais na pessoa do artista do que na sua obra, na obra de arte. Esta seria apenas, quanto muito, um longínquo eco, um remoto espectro, ou tão-só o mero cadáver, de um processo que, por ser essencialmente espiritual, não é materialmente concretizável. Nessa medida, não devemos pois procurar a “essência da arte” nas obras mas sim, antes, no processo que lhes subjaz, ou seja, no processo da sua criação. Eis, em suma, o regressivo caminho que José Marinho nos propõe. Porque regressivo, é esse um caminho de desconstrução – de desconstrução da obra de arte enquanto obra. Importa pois, por isso, desconstruí-la, esventrá-la, em busca da seiva, do sangue, que ocultamente a anima – mais profundamente ainda, em busca da mais originária fonte em que todo o processo de criação se inicia. Eis, com efeito, o oculto alcance, o oculto cais, desse regressivo caminho que Marinho nos prefigura. Caminho esse que procuraremos aqui, de seguida, reconstituir. No retorno a essa mais originária fonte, o mesmo é dizer, no retorno à mais funda “essência da arte”».
[2] Todas as
citações seguintes remetem para a obra As
Teses da Filosofia Portuguesa, Lisboa, Guimarães Ed., 2015.
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