A doença do vírus coroado, assim designada,
adquiriu um élan impossível a
qualquer outra época em que fosse conhecido o simbolismo da coroa. O círculo
solar da iluminação da inteligência, incompreendido há muito, foi deste modo
adaptado à designação das proteicas espigas que envolvem as microesferas virais
que aparecem nos microscópios e deste modo parece que o vírus foi emancipado de
uma designativa obscura do tipo «peste negra», mantendo-se com elegância conceptual
num quadro iluminista, aparecendo talvez como um «déspota absoluto» já que,
para já, ninguém o consegue controlar.
Como de hábito, a moderna linguagem científica
recorre a metáforas pertencentes a outros universos de referência, exibindo
deste modo a sua própria indigência criativa (é assim que a física newtoniana
fala de «inércia», ou seja «falta de arte», ou que a física einsteiniana fala,
sem ironia, de «campo», ou que a biologia anglo-saxónica refere um pequeno
lagarto que corre sobre as águas como «Jesus Christ lizard», ou que a
psicologia alemã refere um «complexo de Édipo»).
Mas por muito que se queira colocar este «novo» (hipermoderno)
vírus sob o foco emancipado das «luzes», as «trevas» teimam em reaparecer à
mentalidade luminescente sob a forma obscura e ancestral do morcego portador. Bem
longe dos caminhos da luz, um ente da noite descarrega sobre os humanos que
tiveram a insídia de o devorar a mais terrível das vinganças: projecta em larga
escala um espectro negativo do próprio homo
modernus e da sociedade de consumo como mundus
infernalis na versão de uma pandemia que consome os pulmões humanos à semelhança
do consumo humano dos pulmões da Terra. A redondeza viva do planeta é arrasada pelo
homem aos olhos de todos os viventes, ao passo que a única coisa que o Covid-19
faz (que saibamos) é replicar-se nos brônquios humanos, que oscilam entre a
travessia assintomática do processo e a indescritível agonia. Como se sabe, não
é apenas a esta última que entregamos, nós os homens, o destino de uma grande
parte dos viventes do planeta, mas à radical extinção.
Porém, o vírus não se limita a propiciar-nos uma
imagem do homo modernus em espelho
negativo.
A metáfora da «guerra» («estamos em guerra
contra este inimigo traiçoeiro», ouviu-se nos quatro cantos do mundo humano)
torna-se insignificante e desaparece como a areia na mão e o nano-inimigo nem comparece
no campo de batalha dos nossos pobres sentidos, limita-se a reproduzir-se
sempre que encontra um hospedeiro (daí que se discuta se é uma forma de vida). A
bem do conhecimento microbiológico, os hospedeiros do Covid-19 deslocam-se em
teletransportes por todo o planeta, oferecendo-nos o espectáculo singular do
primeiro televírus do mundo, tão rápido como um avião a jacto, tão imponente
como um porta-aviões, tão luxuoso como um cruzeiro transatlântico. De súbito,
parece que uma pandemia só se pode propagar sobre outra. A biomedicina ergue
impotente as mãos ao ar: não há vacina (para já) e o facto de o vírus poupar as
crianças impede o regresso das pragas veto-testamentárias (para já). Para onde
nos havemos de voltar? Só resta a fuga.
Por
ínvios caminhos, o sapiens sapiens (assim
duas vezes!) é forçado à reclusão e à imobilidade estratégica para escapar ao
alcance da invasão silenciosa. Fecha-se então nesse lugar a que chama «casa». «Reclusão»
e «imobilidade», «regresso a casa», indiciarão talvez que este homem vai regressar
ao essencial, talvez até ascender à vida interior, transfigurar-se no melhor de
si, ou é simples estratégia de biodefesa, sem mais?
Eis que sucede o inesperado: a superfície da
terra, em poucos dias liberta do mortal dióxido de carbono da respiração
tecnocientífica, exibe por momentos a magnificência dos seus relevos e
cromatismos, as árvores respiram em paz, nas cidades escutam-se as aves e
podemos ouvir os nossos passos, por instantes voltamos a ver o fundo dos canais
de Veneza e até os peixes, incrédulos, visitam a Cidade de Vénus! O mundo está
vivo. A imunologia da Terra permanece por conhecer.
Covid-19 versus
CO2: quem ganhará o combate mortal?
E chegados aqui devemos
confessar, não sem amargura, que é muito menos o gosto de qualquer paradoxo, do
que a esperança sempre por desiludir que nos moveu a este desabafo, pois esforçamo-nos
por entrever na desgraça a possibilidade, nunca extinta, de uma outra graça que
os homens teimam em não deixar vir. Essa mesma que podemos apreciar nos olhos
brilhantes das crianças de quem somos os descendentes esquecidos.
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