Este trânsito, simultaneamente
gnoseológico e ontológico, jamais, porém, poderá ser dado como cumprido, dado
que, como escreveu Marinho a este respeito, “o abismo na ordem do ser subsiste
entre Deus e homem mesmo quando pelo espírito, no âmago de todo o pensamento,
nos é dado ultrapassar a humana condição”. Quanto muito, pode o homem antever o
fim desse processo, desse duplo processo. Eis, precisamente, o que Marinho faz
no final da sua Teoria do Ser e da
Verdade – nas suas palavras: “No instante da visão, ali e onde
incessantemente regressamos, tudo é já liberto, mas no tempo e no discurso do
pensar segundo o tempo e a vida imensa, tudo é, e ainda de si duvidoso, como
longa iniciação na verdade, libertação gradual e com longas pausas e demoras
(...)./ Se agora olharmos desde o mais extrínseco ao mais íntimo, é-nos dado
compreender, num sentido, todo o imenso processo do ser como libertação. Noutro
sentido tudo vemos imediatamente como já liberto e exultante no mais secreto do
seu ser na radiosa comunhão da já não instantânea mas eterna alegria (...).”.
Eis, com efeito, a visão que, segundo Marinho, culmina todo o processo de
conhecimento, a visão com que o nosso pensador conclui a sua própria Teoria.
Culminando nessa visão, inicia-se o processo de conhecimento com a
“emergência do amor e da fé”. Da fé, desde logo, porque, como escreveu Leonardo
Coimbra na esteira de Pascal: “‘Il faut parier…’ por Deus ou contra Deus, pelo
significado ou pela insensatez do mundo.”. Do amor, igualmente, porque,
revelando-se através dele esse “sentido do que no seio da cisão é para
absolutamente unir”, “o amor aparece [já], com efeito, para além da consciência
da cisão” e, nessa medida, para além da dor: “a dor está aí, em tudo quanto nos
aparece como negativo, para ser transcendida pela sabedoria do amor”. Daí que
Marinho nos diga ainda que “o amor é assim unidade, plenitude, absoluto
antecipado”. Radica aqui, para o autor da Teoria,
“o alto interesse do amor para o filósofo”: “O alto interesse do amor para o
filósofo é que ele representa a verdade antecipada. O que o amor desde os
primeiros momentos em que o ser é consciente de si apreende e exprime é aquilo
mesmo que a razão laboriosamente irá compreender e explicar.”; “o amor é uma
experiência essencial do homem, cuja meditação atenta a autêntica filosofia não
pode dispensar”. Eis, precisamente, uma das teses essenciais da visão
filosófica de Afonso Botelho, que, em consonância com Marinho, defendeu, de
forma eloquente, que “enquanto se não entender a singularidade do amor
homem-mulher pouco ou nada se sabe da universalidade do amor divino”.
Daí, nomeadamente, a sua
valorização da história de Pedro e Inês, paradigma por excelência da
“singularidade do amor homem-mulher” – ainda nas palavras de Afonso Botelho:
“Para Fernão Lopes, que viveu mais próximo do que nós do rex e da res, a sua
substância é verdadeiramente pétrea, nos dois sentidos evidentes da palavra: é
resistente e conserva o calor./ Aos olhos do cronista, Dom Pedro, duro e
compacto na aplicação da lei, recebe o fogo do amor e conserva-o para além do
tempo que é dado ao homem conservar seus sentimentos. O fogo não nasce dele,
vem de fora, da ígnea amada, mas entra em sua intimidade e mantém-se
efervescente e vulcânico, como lava no interior da Terra./ A história geral
descreve os fenómenos pelo lado de fora, mas à crónica cabe aproximar-se da
matéria descrita para lhe captar sentidos e intenções. No caso de Pedro o Cru,
seu cronista disse o suficiente para o determinarmos como o amante mais tenaz
que o tempo, mais tenaz que a própria saudade humana, e que pela dureza e
durabilidade, terá a missão de fundar o reino perpétuo do amor homem-mulher./
Camões prefere começar a narrativa por Inês, posta em sossego, ígnea, porque,
aparentemente, só se consome. Mas o
centro de toda a construção camoneana é o amor, que recolhe em si a doçura e a
fereza partilhadas. Amor divino que, porém, aos olhos humanos, engloba as
qualidades mais extremas.”.
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