A história da cultura é prenhe
de casos destes: de autores muito famosos no seu tempo e que, na geração
seguinte, caem no mais completo oblívio; e, inversamente, de autores que vivem
de forma quase anónima e que só são reconhecidos postumamente.
Curiosa é também a forma que
leva a esse reconhecimento: actual ou póstumo. Tomemos aqui como exemplo
Fernando Pessoa: não sendo verdade que viveu de forma quase anónima – nem
sequer realmente o pretendeu: lembremos que Pessoa chegou a (pré-)proclamar-se
em vida, logo em 1912, nas páginas de “A Águia”, como o “Super-Camões” –, é um
facto que a sua aclamação a nível nacional e, sobretudo, internacional só se
deu postumamente.
Curiosas foram porém as razões
que levaram a isso. Com efeito, quer a nível nacional quer a nível
internacional, o Pessoa que se mais popularizou foi, dir-se-ia, o Pessoa “menos
português”, a sua faceta mais desenraizada (não necessariamente por isso a mais
universal, bem pelo contrário, como veremos adiante).
Não tinha de ser assim. Apesar
de para muitos pessoanos isso constituir ainda hoje um facto incómodo, senão
mesmo uma “vexata quaestio”, Pessoa foi também o autor da “Mensagem” – para
mais, ao contrário da mentira mil vezes contada, um livro que, por influência
clara e comprovada de António Ferro, que terá mesmo financiado a edição da
obra, ganhou, em 1935, o primeiro prémio de um organismo oficial, o SPN:
Secretariado de Propaganda Nacional (na categoria em que veio a ser considerado:
a de “poema único”).
Mas mesmo pela “ala
patriótica”, chamemos-lhe assim, Pessoa foi sempre visto, por boas e más
razões, com alguma suspeita, que se compreendem: Pessoa sempre foi demasiado
plural para poder ser aclamado como, sem mais, um vate do patriotismo. Não
tendo sido apenas isso, Pessoa foi, porém, também isso – e não apenas na
“Mensagem”. Por isso, essa visão que (com êxito, reconheça-se) conseguiu
popularizar Pessoa rasurando esta dimensão é, no mínimo, uma visão enviesada.
Com algum cinismo, os arautos
dessa visão poderão contra-argumentar que esse era o único Pessoa
verdadeiramente exportável. E poderão até dar outros exemplos análogos: como o
de Clarice Lispector, no outro lado do Atlântico. Brasileira, ainda que nascida
na Ucrânia, Clarice Lispector também se tornou uma figura de culto por essa
faceta mais desenraizada – sendo que, no seu caso, o facto de ter nascido na
Ucrânia poderá explicar porque nunca se tenha tornado uma autora (no fundo, não
na forma) “brasileira” ou “lusófona”. Ou talvez não: um outro autor nascido no
Leste da Europa, o checo Vilém Flusser, que igualmente emigrou para o Brasil,
tornou-se depois num dos maiores arautos da língua portuguesa.
Tudo isso também depende,
todavia, da circunstância. Saindo agora da literatura e passando para a música:
cada vez mais, nos nossos tempos, a música mais “exportável”, mais
“internacionalizável”, é, de forma aparentemente paradoxal, a mais “genuína”,
aquela que melhor consegue dar voz a um povo, a uma comunidade, a uma cultura.
Não é por acaso que, nestes últimos anos, o fado teve, em Portugal, um
significativo ressurgimento. No Brasil, igualmente, a música que melhor consegue
atravessar o oceano é aquela que mais assume e expressa as suas raízes. No
Brasil e em todo o mundo, exemplos não faltam.
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